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Pai músico não pode ser afastado do convívio com o filho por conta da pandemia
Não se justifica suspender o contato presencial entre pai e filho durante a pandemia do Coronavírus pelo simples fato de ser músico, se não demonstrado que essa atividade o expõe ao risco de contrair a doença. Com base nesse entendimento, os desembargadores da Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso – TJMT negaram provimento ao recurso para a suspensão da convivência, interposto pela mãe.
Em sua análise do caso, o desembargador-relator Rubens de Oliveira Santos Filhos ressaltou que eventos e shows, fonte dos proventos do genitor, estão paralisados e não há data prevista nem definida para cessar o período de isolamento social por conta da Covid-19. Ao manter a decisão inicial, ele destacou a necessidade preservar vínculos afetivos e o melhor interesse da criança.
A mãe alegou que o filho tem problemas respiratórios e a orientação médica recebida foi para que evitasse sair de casa durante a pandemia. Pontuou ainda que a recomendação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA para esses casos é que o contato ocorra preferencialmente por telefone ou on-line.
Corresponsabilidade e proteção integral
O magistrado ponderou que, apesar de grave, o momento de pandemia não autoriza a suspensão das visitas presenciais. Observou também que o pai está desempregado justamente por conta do momento de crise sanitária. Interpretar o caso de forma diferente seria impedir o exercício do direito de guarda de todos os profissionais dessa área.
“A permanência das crianças por tempo indefinido com apenas um dos pais fere os princípios da corresponsabilidade e da proteção integral e pode trazer consequências danosas para sua segurança e desenvolvimento, já que gera angústia, dor e sofrimento. A ausência física tem reflexos psicológicos muitas vezes irreversíveis e pode até mesmo, dependendo da idade, ser interpretada como se tratasse de morte”, defendeu o desembargador.
Não foi evidenciado que o pai tenha sido negligente com a saúde e bem-estar da criança ou mesmo descumprido as medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades competentes. Ele destacou ainda que a jurisprudência tem operado com o mesmo entendimento. “Também não cabe compensação posterior dos dias de convívio exclusivo com a agravante, pois não há como recuperar o tempo que passou, e os momentos não se repetem”, avaliou.
Compromisso com crianças e jovens
O voto do relator cita artigo sobre o tema escrito pela juíza Angela Gimenez, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Para ela, a decisão proferida recentemente reafirma o compromisso do Poder Judiciário de Mato Grosso com a proteção das crianças e dos jovens, principalmente em uma situação social e sanitária excepcional.
“Em matéria de Direito das Famílias e Sucessões, o julgador aplica a lei e os princípios de direitos humanos, atentando-se para cada circunstância pessoal e familiar que envolve o processo. Não existem fórmulas prontas. Nessa área tratamos de direitos fundamentais, ligados à existência humana”, avalia Angela.
Ela acrescenta: “Todos compreendemos a importância dos filhos serem cuidados, orientados e amados, por seus dois genitores, quando os tiverem. A participação do pai e da mãe, no cotidiano da vida das crianças, faz nascer um vínculo afetivo que é nutrido, diariamente, com a convivência, que é estruturante da personalidade humana”.
Segundo a magistrada, o Judiciário mato-grossense tem sido um protagonista e precursor na formação de uma jurisprudência contemporânea e protetiva que reconhece a importância do convívio dos filhos com toda a família neste momento de incertezas e medo causado pela pandemia.
Convivência com ambas as figuras parentais
“No passado, houve quem defendesse que a convivência entre pais e filhos pudesse se dar, apenas, pelas mídias digitais. O confinamento mostrou o quanto essa visão é distorcida, na medida que o desejo maior de todos é poder voltar a conviver socialmente. Essa é uma necessidade humana, muito mais, quando se trata de relação parental”, opina.
Ela salienta que mesmo o entendimento sobre a importância da guarda compartilhada só foi consolidado por meio da Lei 13.058/2014, que definiu o modelo legal vigente. “Essa lei tratou da igualdade parental entre os genitores, deixando de existir, o modelo pretérito de um guardião e um ‘visitante’, ou seja, um genitor de primeira grandeza e outro secundário ou dispensável. O legislador declarou que um pai ou uma mãe nunca poderão ser uma “visita” para os filhos, mas deverão participar de sua formação ativamente, em atendimento ao princípio da corresponsabilidade, existente entre pai e mãe.”
“A convivência com ambos é importante porque é por meio dela que se obtém os vínculos afetivos e, consequentemente, a transmissão de valores que vão estruturar a personalidade humana. Quando os pais se separam, o que termina é a relação conjugal em nada alterando a relação parental. Com o divórcio a família não acaba, apenas ganha um novo formato”, atenta Angela.
Mudanças de maio até setembro
O artigo da juíza citado no voto do relator é datado de maio. De lá para cá, o entendimento apresentado pela jurisprudência sobre a matéria evoluiu. A convivência dos filhos com as duas famílias está sendo mais frequentes, comparativamente com o início da situação excepcional que se instalou, como observa Angela Gimenez.
“Desde o início da pandemia até os presentes dias, o poder Judiciário foi dispondo de mais informações sobre a doença e sobre o isolamento necessário. No entanto, percebeu-se, também, que o fim da pandemia não tem data prevista para acabar, o que exige que, as famílias sejam ainda mais cuidadosas e responsáveis pela proteção das crianças.”
Recentemente, têm chegado às varas de família relatos de pais que vêm desrespeitando as medidas de proteção, o que acirra os conflitos com o outro genitor. “Muitas medidas têm sido determinadas judicialmente, de forma que os adultos não se utilizem desses subterfúgios para se desresponsabilizar do dever de cuidado que é decorrente do poder-familiar e irrenunciável”, explica a juíza.
A decisão envolve outras questões: o aumento no índice de desemprego e a crise econômica, que refletem diretamente no Direito das Famílias. “As crianças dependem de seus genitores para sobreviverem. A pauperização está se generalizando a passos largos e com isso, as crianças estão ainda mais vulneráveis”, avalia Angela.
“É imprescindível que se concretizem políticas públicas de assistência e amparo às pessoas e às famílias para que possamos passar por esse período tão difícil, sem que a fome dizime mais do que o vírus”, assinala a juíza.
Leia a íntegra da decisão no banco de jurisprudências do IBDFAM (acesso exclusivo para associados).
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