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Mulher trans registrada como mãe socioafetiva consegue retificação no assento de nascimento do filho biológico; especialista comenta
Duas mães, uma delas transexual, conseguiram na Justiça do Rio Grande do Sul o direito à retificação do assento de nascimento do filho. Concebido por relação sexual, sem auxílio de reprodução assistida, o bebê havia sido registrado como descendente biológico da mãe cisgênero, que deu à luz, e descendente socioafetivo da mãe transgênero. O entendimento pela procedência do pedido de alteração foi apresentado pela 5ª Vara de Família do Foro Central da Comarca de Porto Alegre.
Há quatro anos, o casal iniciou a união estável quando uma delas ainda não havia passado pelo tratamento hormonal de redesignação sexual, que teve início após o início da gestação, mas antes mesmo de sua companheira dar à luz. Nesse meio tempo, foram feitas as alterações de nome e identidade de gênero no registro civil, independentemente de qualquer intervenção cirúrgica. Em 2018, nasceu o primeiro filho.
No assento de nascimento da criança, contudo, a mulher transexual foi registrada com mãe socioafetiva por ser companheira daquela que deu à luz. A determinação não correspondia à realidade, uma vez que, a despeito de serem efetivamente companheiras, ambas são ascendentes biológicas do menino. Elas aceitaram a condição, na época, com a finalidade de incluir o recém-nascido no plano de saúde.
No cartório, foi requerido às mães a comprovação de inseminação in vitro, caso que não correspondia à realidade da família. O fórum local concedeu que a mãe transexual aparecesse como biológica desde que apresentasse atestado médico comprovando que era do sexo masculino antes da concepção da criança. Também foi exigida uma declaração da mãe que gestou o bebê garantindo que ambas haviam tido relação sexual. Elas entraram na Justiça por considerarem as exigências discriminatórias e pugnaram a ação de alteração do registro de nascimento para que ambas fossem designadas como mães biológicas.
Retratar a realidade dos fatos
“Nesse cenário, conquanto se trate de caso incomum por envolver registro civil de nascimento de filho concebido por pessoa transgênera, não se pode perder de vista a verdadeira ascendência biológica desta em relação à criança, fato que não pode ser ignorado. E mais do que isso, a verdade biológica sempre que possível deve constar no assento de nascimento da criança, pois, como sabido, todo e qualquer ato registral deve primar sempre que possível por retratar a realidade dos fatos”, destacou o magistrado responsável pelo caso.
A decisão também atentou às determinações da Corregedoria Geral de Justiça – CGJ sobre registro de crianças por genitores transgêneros ao de conferir à mãe o direito de ser incluída na certidão de nascimento como ascendente biológica da criança. O Ministério Público, que também opinou pela procedência do pedido, salientou que o campo pai e mãe foi suprimido das certidões de nascimento, constando apenas o espaço de filiação.
A advogada Gabriela Ribeiro de Souza representou as autoras da ação.
Verdade biológica e autodeterminação
A advogada Chyntia Aquino da Costa Barcellos, segunda vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, opina que a decisão foi acertada por dois motivos: reconheceu a verdade biológica do menino e respeitou a autodeterminação quanto à identidade de gênero da mãe.
Ela lembra que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275, o Supremo Tribunal Federal – STF deixou claro o direito à autodeclaração da pessoa transgênero, independentemente de cirurgia, tratamento hormonal ou relatório médico que ateste sua transexualidade.
“Se a identidade de gênero, que é autodeclaratória, e a forma que a sexualidade é exercida refletem na parentalidade, não podem ser suprimidas por uma socioafetividade quanto o vínculo é biológico. A decisão é muito importante, pois reafirma o direito à dignidade da pessoa humana, além do melhor interesse da criança”, comenta Chyntia.
Discriminação revela necessidade de capacitar profissionais
A especialista concorda com o casal de mães que apontou discriminação nas imposições feitas pelo cartório e fórum no registro da criança. “Felizmente, elas buscaram a Justiça para colocar as questões em seus devidos lugares. Acredito que foram determinações discriminatórias, provavelmente destituídas de um conhecimento sociológico, identitário e jurídico sobre os direitos das pessoas transgênero”, afirma.
“Talvez tenha havido também uma confusão com os provimentos 63 e 68 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que tratam do reconhecimento da filiação socioafetiva com a necessidade de comprovação da clínica em que a reprodução assistida foi feita. Provavelmente quiseram utilizar dessas normativas para reconhecer socioafetividade neste caso que é de filiação biológica”, acrescenta Chyntia.
Ela destaca a importância da capacitação dos profissionais que atuam na área. “É um cartório de registro civil, que não pode cometer esse tipo de falha. Deve estar afinado com as legislações atuais, sem trazer nenhum prejuízo às partes ou uma sensação de discriminação”, opina.
“Há também a necessidade de esclarecermos questões da identidade de gênero e orientação sexual para as quais muitos profissionais (do Sistema de Justiça) não estão preparados. A sociedade precisa publicizar esse tema e falar sobre isso para que se desmistifique”, defende Chyntia.
Garantia de direitos e superação da transfobia
Da comunidade LGBTI, transexuais e travestis são os que mais sofrem com a discriminação, segundo a advogada. Os direitos em relação ao nome social e gênero, consolidados pelo STF e pelo Provimento 73 do CNJ, bem como a criminalização da homotransfobia pelo Supremo, coexistem com um cenário de muita violência.
“Os direitos estão garantidos, mas a consolidação deles e o alcance efetivo depende de uma transformação social que estamos passando, em especial por parte dos órgãos públicos e das instituições. Deve-se fazer prevalecer o direito ao uso do nome social e a independência do órgão sexual ao gênero com que a pessoa se identifica”, frisa.
Os avanços propiciados pelo Poder Judiciário contribuem, mas não bastam para a superação do problema. “O Brasil, com as normativas citadas, vem na vanguarda da garantia de direitos da população trans. Contudo, até a efetivação do crime de homotransfobia equiparado ao racismo, por exemplo, há um longo caminho que precisa ser construído principalmente com a ajuda da sociedade civil como um todo, não só do órgão público”, destaca Chyntia Aquino.
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