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Interrupção voluntária da gravidez está entre os debates mais acirrados em Biodireito e Bioética, diz especialista
A gravidez de uma menina de 10 anos, vítima constante de estupro por parte do tio, comoveu o Brasil na semana passada. Após controvérsia criada por grupos contrários ao aborto, a criança pôde realizar a interrupção legal da gestação em um hospital especializado. O caso, que suscitou atenção aos índices de violência sexual contra meninas e mulheres no país, também levantou um debate sensível nas áreas de Biodireito e Bioética.
“O Biodireito seria a positivação jurídica de permissões de comportamentos médico-científicos, e de sanções pelo descumprimento destas normas. O Biodireito caminha ao lado da Bioética, estudando as relações jurídicas entre direitos e avanços tecnológicos conectados à medicina e à biotecnologia”, explica a advogada Marianna Chaves, presidente da Comissão de Biodireito e Bioética do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Ela define a Bioética como uma ponte entre as culturas científica e humanística. “É o estudo transdisciplinar entre as ciências da saúde, as ciências biológicas, a Filosofia e o Direito, que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e ambiental”, acrescenta.
“Ambas as disciplinas consideram, portanto, questões sobre as quais não existe consenso. Indubitavelmente, a interrupção voluntária da gravidez gera um dos mais acirrados debates da perspectiva do Biodireito e da Bioética”, contextualiza Marianna.
Brasil permite interrupção de gestação em casos específicos
Segundo a especialista, o Brasil está no rol dos países que permitem a interrupção voluntária da gravidez em casos específicos. “O Código Penal descriminaliza o aborto quando a vida da mãe se encontra em risco em razão da gravidez, o chamado aborto necessário, ou quando a gravidez é fruto de violência sexual, denominado aborto sentimental ou humanitário”, aponta Marianna Chaves.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal – STF autorizou o aborto em casos de fetos anencéfalos. Além disso, segundo a advogada, os tribunais vêm alargando a possibilidade a outras situações médicas irreversíveis para além da anencefalia, como em casos de agenesia renal bilateral, síndrome da banda amniótica gemelaridade imperfeita de gêmeos toracópagos e de gêmeos dicéfalos toracoabdominopófagos, acrania fetal com exencefalia, displasia tanatofórica, Síndrome de Patau e Síndrome de Edwards.
“No caso específico da menina de 10 anos, trata-se de estupro de vulnerável, o que caracteriza, sem sombra de dúvidas, o direito à interrupção da gravidez. Há, no caso em tela, uma colisão de interesses em que deve prevalecer o direito da criança violentada ao aborto”, defende Marianna.
A advogada atenta ainda que, além do fato de a gravidez ser fruto de estupro, trata-se de uma gestação de alto risco, considerando a idade da vítima. “Estamos a falar de uma pessoa em processo de formação psicofísica. Além do trauma psicológico, essa criança não tem uma formação corpórea apta a levar uma gravidez a cabo.”
“Há riscos e complicações de toda sorte em gravidezes na infância, como pré-eclâmpsia e eclampsia, que causa convulsões e pode levar a menina gestante à UTI ou mesmo a óbito. Temos ainda um elevado risco de aumento de pressão, de hemorragia após o parto e de desenvolvimento de anemia severa. A chance do bebê ser prematuro e nascer com baixo peso é enorme, além da probabilidade de morte neonatal precoce”, acrescenta Marianna.
Questão de humanidade
Para a advogada, o caso da menina do Espírito Santo, que conseguiu realizar o procedimento em um hospital de Pernambuco, não deveria envolver divergências. “Sem sombra de dúvidas, a interrupção da gravidez era uma questão de humanidade, de proteção do melhor interesse daquela criança e da sua dignidade. Temos de lembrar dos mais medulares princípios bioéticos, o da não maleficência, o da beneficência, o da autonomia e o da justiça”, destaca Marianna Chaves.
“Evidentemente, qualquer médico tem direito à objeção de consciência e se recusar a executar a interrupção voluntária da gravidez. Entretanto, o acesso deve ser garantido, e o médico pernambucano que executou o ato estava amparado pela lei e pelos princípios bioéticos”, pontua a especialista.
Ela observa, por outro lado, que o direito à objeção de consciência deve ceder sempre que a necessidade da interrupção da gravidez for necessária para salvar a vida da gestante. O mesmo deve ocorrer quando não houver outro médico disponível para o aborto legal e a mulher em causa estiver correndo riscos em razão da omissão ou atraso no atendimento.
Idade gestacional superior a 22 semanas
Uma das principais complicações do caso envolvia a idade gestacional. “Relativamente ao fato de a criança estar grávida há mais de 22 semanas, deve-se lembrar que a imposição do limite de 22 semanas para o aborto advém de uma norma técnica que, a rigor, não é vinculante, já que não se trata de norma jurídica.”
A determinação está prevista em regulamento editado pelo Ministério da Saúde, sem caráter legislativo. “Não indicando o Código Penal um prazo e nem fazendo referência à tal norma técnica do Ministério da Saúde, salvo melhor juízo, não há qualquer infração legal oriunda do fato do feto ter 22 semanas e 4 dias, e pesar mais de 500 gramas”, observa Marianna.
“Este caso específico deve ser analisado com isenção, de forma desapaixonada e olvidando julgamentos morais e princípios religiosos. Trata-se da vida de uma criança que foi brutalizada por anos a fio. Pelejar pela manutenção daquela gravidez apenas evidencia uma sanha voltada para um suposto direito à vida do feto, descurando da dignidade humana, da incolumidade física, da saúde mental e psíquica daquela criança. Manter aquela gravidez seria perpetuar uma violência a maximizar o trauma vivido por aquela menina”, opina a especialista.
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