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O não cabimento de Danos Morais por abandono afetivo do pai
INTRODUÇÃO
Assunto que vêm gerando inúmeras controvérsias no meio jurídico e nos tribunais é o cabimento, ou não, de danos morais por negativa de afetividade paterno-materna. Neste estudo nos concentraremos no abandono por parte do pai, visto que, ainda não houve nenhuma ação promovida por abandono materno.
Que o afeto é um bem jurídico e um princípio constitucional não se têm dúvidas. Que ele se presta, e deve ser usado, para construir relações e entidades familiares, tais como o casamento, união estável, família monoparental, homoafetiva e quantas outras surgirem com base nele, também não se tem dúvidas. No entanto, a negativa de afetividade paterno poderia gerar o dever de indenizar? Haveria responsabilidade civil por abandono afetivo de filho?
Para tentar responder a indagação feita, não se pode restringir o estudo apenas à ciência do direito, deve-se caminhar por outras estradas buscando encontrar a direção certa. A psicanálise de Freud e Lacan, sem sombra de dúvidas, será instrumento de grande utilidade para se chegar ao objetivo final. O direito não pode fechar os olhos para outras ciências, sob pena de regular fatos que por sua natureza não são reguláveis.
Escrever sobre afeto não é uma tarefa fácil. Monetarizar o afeto é tarefa ainda mais árdua. Entretanto, existem decisões recentes, que reconhecem a responsabilidade civil por abandono afetivo de filho e consequentemente o dever de indenizar.
Estaria o Direito e o Poder Judiciário, dessa forma, interferindo na liberdade afetiva do indivíduo? Podemos sustentar que o amor depende da vontade? A negativa de afeto implicaria em um dano juridicamente indenizável? A denominada responsabilidade paterno-filial vai além do dever de sustento material estendendo-se ao dever de dar afeto? Ser pai não seria uma função que vai além da presença real do mesmo?
É neste turbilhão de questionamentos que se encontra a Ciência do Direito de Família.
1. A FUNÇÃO PATERNA
Segundo o psicanalista francês Jacques-Alain Miller, Lacan interpretando os mitos de Freud traz a idéia que a paternidade é uma função, uma função simbólica. Existem diversos elementos que podem preencher essa função, "[...] cuando Lacan habla de los nombres del padre no hay mas que uma pluralidad que rodea una función".
Dessa forma, diversos elementos podem exercer a função paterna. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, "[...] a verdadeira paternidade é adotiva e está ligada á função, escolha, enfim ao desejo" . O que importa, é saber o que funcionou para aquele sujeito como Nome-do Pai:
O genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mão, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção .
Além destes, podem realizar a função paterna, o discurso da mãe ou até mesmo um objeto.
Dois exemplos servem para ilustrar essa situação. O primeiro, é trazido por Rodrigo da Cunha Pereira. Trata-se do filme Central do Brasil. Josué, uma criança que nunca conheceu o pai, através do discurso da mãe, constrói uma imagem paterna. "A mãe falava bem do pai, e introduzindo para o filho a imago paterna fez presente um outro, e através de seu desejo possibilitou que o filho se estruturasse psiquicamente" .
O segundo exemplo é extraído do filme Pulp Fiction de Quentin Tarantino. Um menino recebe de um companheiro de guerra de seu pai (morto na guerra) um relógio que havia pertencido a toda sua geração passada. Tratava-se de um relógio com uma carga simbólica muito forte. O menino, que não possuía pai, passou a ter um pai simbólico. O objeto relógio fez com que o menino construísse a imago paterna.
Dessa forma, em ambos os exemplos, se observa como a função paterna pode ser exercida mesmo sem a presença física do pai. Bastando para isso, o discurso da mãe, ou um objeto com valor simbólico. Assim, cada filho constrói o pai de uma forma. Dois irmãos que possuem o mesmo pai, nunca vão possuir o mesmo pai simbólico.
A verdadeira paternidade é uma adoção, um ato, pelo qual, se estabelece uma função. Esse ato de adoção, não pode ser imposto, pois, depende de uma "escolha" do inconsciente, ou seja, é tão subjetivo que nem mesmo o sujeito sabe ao certo o porquê ou não de fazê-lo.
Essa adoção é composta de dois aspectos. Um aspecto formal-material, reconhecimento e sustento material, e um aspecto afetivo, que está ligado ao amor. Um pai pode reconhecer e atender as necessidades materiais de um filho, mas não desejá-lo como filho, não amá-lo. Esse amor é difícil de ser mensurado, pois depende da subjetividade do pai e do filho.
2. DANO MORAL E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Parte da doutrina e da jurisprudência conceitua o dano moral segundo a lição de Savatier, para quem, "dano moral é qualquer sofrimento que não é causado por uma perda pecuniária" . Esse conceito traduz a idéia de que qualquer sofrimento humano é passível de reparação. A simples dor, vexame, tristeza, humilhação, desconforto seriam suficientes para a configuração do dano moral.
Não é essa a melhor forma de conceituar o dano moral. A Constituição de 1988 em seu art. 1º, III, consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito. Assim, com o advento da Magna Charta "ganhou evidência a preocupação necessária com a proteção da pessoa humana" . A dignidade da pessoa humana é "um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais". Logo, temos hoje um verdadeiro direito constitucional à dignidade ampliando os horizontes do dano moral.
A dignidade humana "repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano" . Dessa forma a Constituição da República concebeu o homem como "centro de referência da ordem jurídica, que se humaniza e legitima imantada pelo valor que se irradia a partir do princípio da dignidade da pessoa humana" .
Através de uma análise à luz da Constituição de 1988 podemos afirmar que dano moral é a "violação do direito à dignidade" . Dessa forma "pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver dor, vexame e sofrimento sem violação a dignidade" .
Para Maria Celina Bodin de Moraes, "será ‘desumano’, isto é, contrário à dignidade da pessoa humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto" .
Para saber se houve violação à dignidade humana, se faz imperioso destrinchar os princípios corolários que a compõem. Nesse passo, o substrato material da dignidade da pessoa humana pode ser decomposto nos seguintes princípios jurídicos: princípio da igualdade, da integridade física e moral, da liberdade e da solidariedade. Haverá portanto dano moral, quando houver "violação a algum desses aspectos ou substratos que compõem, e conformam, a dignidade humana" .
Dessa forma, não se pode vincular o dano moral a meros sentimentos e sofrimentos, aliás, cada vez mais comuns na vida em sociedade. Deve-se sempre vincular o dano moral à ofensa de valores constitucionalmente tutelados, sob pena de fomentar a indústria do dano moral e consequentemente a banalização do mesmo. É comum, todavia, que na prática, esses valores constitucionais colidam, dificultando a configuração, ou não, do dano moral. Nesses casos, recorreremos à ponderação de interesses.
3. A PONDERAÇÃO DE INTERESSES COMO REALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Havendo colisão entre princípios de igual hierarquia, deve-se buscar resolver o conflito através da técnica de ponderação de interesses. Já se afirmou que:
Essa possibilidade de contradição entre diferentes normas ou princípios integrantes de um mesmo sistema é um fenômeno absolutamente natural e inevitável, pois na formação dele são acolhidas diferentes idéias fundantes, que podem conflitar entre si .
O princípio da dignidade humana, por sua essência e valor, jamais poderá ser ponderado, visto que, é considerado absoluto. Ou seja,
[...]a dignidade da pessoa humana afirma-se como o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses [...] Nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o último desta ordem .
Logo, será este princípio "o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado" . Os demais princípios corolários serão sopesados, visando descobrir, no caso concreto, qual dos valores em tensão expressam com maior amplitude o fundamento maior, a dignidade humana.
4. A PONDERAÇÃO DE INTERESSES NA RESPONSABILIDADE CIVIL
Nas relações entre pais e filhos, ponderados os interesses contrapostos, observa-se: de um lado o princípio da liberdade (do pai) e do outro, o princípio da solidariedade familiar e integridade psíquica (do filho). Explica Maria Celina Bodin de Moraes que:
Dada a peculiar condição dos filhos, e a responsabilidade dos pais na criação, educação e sustento dos mesmos, seria incabível valorizar a sua liberdade em detrimento da solidariedade familiar e da própria integridade psíquica dos filhos .
No que pese a posição da autora, ousa-se discordar em parte, de seu posicionamento.
No tocante á responsabilidade do sustento material, garantindo o direito à vida, à saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura e demais direitos previstos no caput do art. 227 da CF-88, concordamos plenamente no que tange á prevalência do princípio da solidariedade em relação ao princípio da liberdade de não prover sustento material.
Entretanto, o princípio da liberdade, não pode ser visto de maneira geral, aberta; deve ser fracionado em liberdade material e liberdade afetiva.
Já se viu que a paternidade é uma função que implica uma adoção, "[...] pode ser sustentada por alguém distinto do pai da família em questão [...]" . Essa adoção esta ligada ao desejo, à vontade a "[...] paternidade só existe se for exercida." . Não existe liberdade entre desejar ou não, essa "escolha" vai mais além do simples querer. As escolhas percorrem caminhos inimagináveis onde o direito não pode interferir. Desta forma, "É preciso demarcar o limite de intervenção do Direito na organização familiar para que as normas estabelecidas por ele não interfiram em prejuízo da liberdade do ser sujeito".
Sustenta-se, todavia, a divisão, o fracionamento do princípio da liberdade em duas expressões. A primeira delas, de ordem objetiva, mensurável, que implica em direitos e deveres. Seria ela, a liberdade de sustento material, da qual o pai não pode em hipótese alguma se eximir, sob pena de violação aos dispositivos constitucionais. A segunda expressão, de ordem subjetiva e imensurável, é a liberdade afetiva, que por estar relacionada com o desejo inconsciente, independe da vontade do sujeito .
Não se pode, portanto, quantificar o desejo e o amor, muito menos exigir que se goste ou não, que se realize ou não o ato de adoção.
Por se tratar de uma matéria com alta carga de subjetividade, por mais que moralmente rejeitada, o princípio da liberdade afetiva se sobrepõe a qualquer outro princípio para a realização da dignidade, visto que não se pode exigir afeto.
Pode-se chegar à seguinte indagação: princípio da integridade psíquica do filho estaria violado com o abandono afetivo? A resposta é negativa, visto que "[...] diante da carência do pai, é o filho que constitui a função com seus próprios instrumentos" . De certo que, mesmo que não exista pai, este poderá ser construído pelo próprio filho, através dos elementos da função paterna que estejam a sua disposição.
CONCLUSÃO
Diante de tudo exposto, conclui-se não ser cabível o dano moral por negativa de afeto de pai para filho.
Por mais que o pai possua deveres decorrentes da paternidade responsável, esses deveres não podem invadir o campo subjetivo do afeto. A negativa deste, não implica em um dano juridicamente indenizável, visto que outros elementos podem realizar a função paterna.
Não se está aqui a afirmar, que a atitude de um pai que não quer ver seu filho seja louvável, pelo contrário, é uma atitude moralmente reprovável. Entretanto, ser a favor da monetarização do afeto e consequentemente dos danos morais por negativa deste, seria monetarizar o amor, o afeto.
Ao quantificar o afeto, outras situações poderiam ensejar a reparação civil. Haveria dano moral decorrente de maior ou menor grau de afeto, um pai, que possui dois filhos, entretanto, gosta mais de um do que do outro, poderia ser obrigado a ressarcir o filho prejudicado. Enfim inúmeras situações surgiriam no dia a dia com base na quantificação do afeto
Invertendo a situação. Poder-se-ia pensar em danos decorrentes do excesso de afeto, a chamada super-proteção afetiva. Desse modo, o judiciário invadiria o campo afetivo terminado por decidir se houve ou não afeto o que corresponde ao campo do subjetivo.
A liberdade afetiva esta acima de qualquer princípio componente da dignidade da pessoa humana, sob pena de gerar um dano ainda maior para ambos. Seria muito mais danoso obrigar um pai, sob o temor de uma futura ação de reparação de danos, a cumprir burocraticamente o dever de visitar o filho.
Ademais, a responsabilidade civil ocupa uma função preventiva. Caso a negativa de afeto gere responsabilidade civil, não seria possível adotar providências acautelatórias preventivas, pois dessa forma o direito forçaria o pai a visitar a criança, supondo que visitar implica amar.
Parte da doutrina que admite o ressarcimento por abandono afetivo acredita que a simples presença do pai já supre a carência afetiva do filho. Todavia, existe uma quantidade infinita de pais que por mais que se façam presentes fisicamente, não dão afeto aos filhos, os maltratam, ou pior, os destratam.
A maior punição que pode receber um pai que não deseja seu filho afetivamente e o abandona, é não ter o prazer de conviver em uma das relações mais maravilhosas que existe sobre a face da terra. Relação esta, onde ambos aprendem um dos verdadeiros sentidos da vida. O amor!
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Francisco Alejandro Horne é sócio do IBDFAM |
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