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Imposição do regime da separação obrigatória de Bens no Casamento do maior de sessenta anos de idade ¹
Introdução
A questão da imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade é assunto a ser discutido neste estudo. A questão enseja várias discussões diante da inadvertência do legislador em excluir do ordenamento jurídico a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, pois flagrante é a violação ao maior princípio constitucional, o da dignidade da pessoa humana, levando à discriminação para com o idoso e ao choque com a concepção personalista imbricada no Código Civil de 2002.
A fim de comprovar que a leitura do Código Civil de 2002, no que diz respeito ao seu artigo 1.641, inc. II, não foi feita de acordo com o texto constitucional, mister se faz adentrar em vários ramos do direito, em especial no direito constitucional, buscando os princípios constitucionais, e no direito de família, enlaçando a este ramo do direito a idéia de constitucionalização.
Embora a Carta Cidadã de 1988 consagre a supremacia do princípio da igualdade, vedando de maneira expressa qualquer discriminação em razão do sexo ou da idade, e o Estatuto do Idoso assegure proteção de todos os direitos e garantias ao maior de sessenta anos de idade, vê-se que o legislador, ao reescrever o artigo 258, parágrafo único, inc. II, do Código Civil de 1916, não atentou para o caráter protecionista emergente tanto do texto constitucional (princípio da igualdade) quanto da legislação infraconstitucional (Estatuto do Idoso), de modo a banir do novo ordenamento jurídico a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, a qual vem disposta no artigo 1.641, inc. II.
No final, atenta ao caráter despatrimonializante da concepção do Código de 2002, a exaltação do princípio da dignidade, bem como a constitucionalização do direito civil, demonstra-se a inconstitucionalidade do artigo 1.641, inc. II, do Código Civil de 2002 e a injustiça do legislador para com o indivíduo maior de sessenta anos de idade ao continuar a limitar-lhe a liberdade de escolha do regime de bens quando da realização do casamento, através do regime da separação obrigatória de bens, diante da evolução dos costumes, dos novos valores e da reformulação da família. Não há lugar no direito de família para situações que gerem insegurança e produzam injustiças ao afrontar o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
1 Imposição do regime da separação obrigatória de bens no
casamento do maior de sessenta anos de idade
A regra geral disposta no Código Civil de 2002, mais precisamente no artigo 1.639, é a da liberdade de escolha pelos nubentes do regime de bens, o qual passa a vigorar a partir do casamento. No entanto, como toda regra sofre exceção, a deste dispositivo legal vem circunscrita no artigo 1.641, incisos I e II, que se transcrevem:
É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de sessenta anos.
Extrai-se da leitura do artigo que deste indivíduo é tolhida a liberdade de escolha, independentemente de sua capacidade de discernimento. Por outro lado, esta mesma lei, que em uma determinada circunstância limita sua vontade em face da idade através da imposição do regime da separação obrigatória de bens, em outra, autoriza-o a dispor de seu patrimônio, como testar, vender, doar, independentemente da idade, aferindo-se apenas a sua capacidade de discernimento. Logo, a vida privada desse indivíduo sofre interferências do legislador, pois para a prática de alguns atos é capaz, sem limitação de sua vontade, mas para outros não. Contudo, dessa imposição defluem vários efeitos para a vida civil.
Segundo Silvio de Salvo Venosa, "o regime de bens entre os cônjuges compreende uma das conseqüências jurídicas do casamento", sendo um regulador das relações patrimoniais. Os reflexos dessa escolha, ou da imposição legal, serão sentidos por ocasião da dissolução da sociedade conjugal pelo divórcio, separação judicial ou pela morte de um dos cônjuges.
1.1 Regime da separação obrigatória de bens
Muitas são as definições sobre este regime, porém em todas elas se verificam a incomunicabilidade de bens e a divisão do patrimônio dos cônjuges.
Conforme Silvio Rodrigues: "Regime de separação é aquele em que os cônjuges conservam não apenas o domínio e a administração e disponibilidade de seus bens presentes e futuros, como também a responsabilidade pelas dívidas anteriores e posteriores ao casamento".
Para Silvio de Salvo Venosa, "a característica deste regime é a completa distinção de patrimônio dos dois cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e administração de seus bens".
Washington de Barros Monteiro esclarece que"é o regime em que cada cônjuge conserva exclusivamente para si os bens que possuía quando casou, sendo também incomunicáveis os bens que cada um deles veio a adquirir na constância do casamento".
Além de se extrair das conceituações acima a incomunicabilidade de bens do patrimônio dos cônjuges, uma vez definido o regime, seja este resultante da escolha dos nubentes ou da lei, a sua vigência inicia-se a partir da celebração do casamento, sendo o norteador das relações patrimoniais entre os nubentes.
1.2 Regime da separação obrigatória de bens frente aos princípios: da dignidade
da pessoa humana, da autonomia da vontade, da igualdade e da liberdade
Deflui da leitura do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil de 2002 que é obrigatório o regime da separação de bens no casamento do maior de sessenta anos de idade.
Este artigo representa uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, cânone maior da Constituição Federal de 1988, disposto no artigo 1°, inciso III, da lei maior, que abaixo se reproduz, ao considerar que o indivíduo, ao atingir os sessenta anos de idade, tem sua capacidade de discernimento reduzida para prática de atos, como o de contrair matrimônio pelo regime que melhor lhe aprouver, merecendo a proteção do Estado.
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituiu-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.
Todavia, a fim de restar comprovada a final, que a leitura do ordenamento jurídico vigente, mais precisamente o art. 1.641, inc. II do Código Civil, não foi feita à luz do texto Constitucional, passa-se a seguir discorrer sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, base de todos os direitos e garantias individuais.
1.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Cumpre ressaltar que segundo este princípio o ser humano deve ser respeitado como pessoa, quer no que tange a sua integridade física, moral, intimidade, sua vida, propriedade, sua liberdade de escolha e a sua autonomia, constituindo-se uma "qualidade que lhe é intrínseca, irrenunciável e inalienável, elemento que o qualifica como ser humano e dele não pode ser destacado".
Apenas para reforçar o acima expendido aduz-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce de todos os direitos e garantias individuais. Tanto que Ingo Wolfgang Sarlet afirma "este princípio tem função instrumental e integradora do sistema, na medida em que este serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico".
Buscar a conceituação do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como da autonomia da vontade, de maneira a entrelaçá-los, é condição sine qua non, para afastar a presunção de incapacidade pelo implemento da idade de sessenta anos de um indivíduo que pretende convolar núpcias, razão pela qual se traz à colação, num primeiro momento, o conceito de Ingo Wolfgang Sarlet sobre dignidade da pessoa humana:
É a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável.
Dar trânsito ao contido no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, além de representar uma afronta ao maior princípio plasmado na Constituição Federal de 1988, que é o da dignidade da pessoa humana, também fere o princípio da hermêutica constitucional, pois, neste caso específico, o ordenamento jurídico foge ao contido no texto maior. Nesse sentido preleciona Paulo Luiz Netto Lobo:
Na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços distintos e até contrapostos. Antes havia a disjunção, hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição, segundo o Código, como ocorria com freqüência (e ainda ocorre). (grifo nosso)
E complementa Gustavo Tepedino: "Com efeito, na legalidade constitucional, há que se examinar todo e qualquer tema a partir do valor máximo do ordenamento, qual seja, a pessoa humana e a sua dignidade". (grifo nosso)
Como propõe Stefano Rodotá, "vale a pena acreditar numa sociedade melhor, ao sublinhar a dimensão superior em que deve atuar o civilista, comprometido definitivamente com a promoção da dignidade humana, através da garantia das liberdades fundamentais e das liberdades (ou escolhas) existenciais".
Não há como falar em dignidade da pessoa humana sem relacioná-la com a noção de liberdade, pois estão intrinsecamente ligadas. Todavia, quando o ordenamento jurídico proíbe um indivíduo maior de sessenta anos de contrair matrimônio pelo regime que melhor atende aos seus interesses, impondo-lhe a separação obrigatória de bens, além de estar atentando contra a sua dignidade, também está ferindo o princípio da autonomia da vontade, da igualdade e da liberdade. Nesse diapasão reproduz-se a lição de Dieter Grimm:
A dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana. (grifo nosso)
Todo indivíduo deve ter o direito de escolher e decidir a forma de constituição de sua família, seja através do casamento, seja deunião estável, uniões homoafetivas e das demais espécies de família trazida pelo texto constitucional, as quais têm como elemento fundante "o afeto", objetivando a promoção da dignidade humana no grupo familiar.
Embora a escolha recaia sobre a forma mais solene, o casamento, devido a sua natureza contratual, regido por cláusulas, deve o mesmo obrigatoriamente expressar a vontade das partes, não só teoricamente, mas na sua existencialidade, com vistas a cumprir a sua função social: a comunhão plena de vidas, a formação de família onde estão presentes os laços de afetividade, sendo inconcebível, atualmente, a sua visualização pela ótica ultrapassada do Código de 1916, o qual elegia como família apenas a matrimonializada, patriarcal e patrimonialista.
Com efeito, restringir a vontade de indivíduos maiores de sessenta anos de idade de optar pela forma de constituição de família através do casamento, impondo-lhes o regime da separação obrigatória de bens, sob a alegação de que o ordenamento jurídico, mais precisamente o artigo 1.641, inc. II, reflete o caráter protetivo da norma para com a pessoa, é mascarar que a intenção do legislador continuou a expressar a preocupação para com o patrimônio, fugindo à concepção personalista trazida pelo Código Civil de 2002 e, mais do que nunca, ferindo, como dito alhures, o princípio da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, bem como da autonomia da vontade, o qual se passa a examinar.
1.2.2 Princípio da autonomia da vontade
A manifestação de vontade dos contratantes é elemento essencial para formação do vínculo jurídico, sem a qual não há negócio jurídico. Para demonstrar a importância do princípio da autonomia da vontade na formação de um contrato transcrevem-se l algumas definições.
Maria Helena Diniz define: "A autonomia da vontade consiste no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica". (grifo nosso)
Emilio Betti conceitua: "O princípio da autonomia da vontade consiste na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam".
Arnoldo Wald aduz:
O princípio da autonomia da vontade se apresenta sob duas formas distintas: liberdade de contratar: é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a liberdade contratual: é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização. (grifo do autor)
O maior significado que se extrai do princípio da autonomia da vontade é a liberdade conferida ao indivíduo de contratar, ou seja, liberdade de auto-regência, o arbítrio de decidir segundo seus interesses e conveniências, liberdade de escolher se deseja contratar ou não, bem como com quem contratar, estabelecendo o conteúdo e as cláusulas da avença.
O conteúdo do contrato é livremente determinado pelos contratantes. Nesse sentido cita-se Caio Mario Pereira:
O princípio de contratar exerce e se concretiza em quatro momentos fundamentais, que nomina de: "faculdade de contratar ou de não contratar"; "escolha da pessoa com quem fazê-lo, bem como o tipo de negócio a efetuar"; "o poder de fixar o conteúdo do contrato"; e "a constituição de fonte formal do direito, uma vez concluído o contrato".
Alicerçando-se no entendimento do jurista acima nominado e comparando o casamento a um contrato, aos contraentes é concedida a liberdade de casar ou não casar; se casar, escolher com quem fazê-lo, bem como o regime a vigorar a partir do casamento, desde que atendidos os requisitos do artigo 1.525 do Código Civil. A regra é que o casamento nasça de uma vontade livre e consciente dos contraentes, sendo a sua durabilidade regulada pelo regime escolhido.
O Estado, através da atuação do Poder Judiciário, assegurará aos contraentes a igualdade e o equilíbrio contratual de tudo aquilo que restou convencionado no termo de casamento, independentemente de o regime ser resultado da escolha dos envolvidos ou da imposição legal. Na sociedade hodierna, jamais a organização estatal terá o condão de intervir na vida privada de maneira a limitar a autonomia da vontade dos contraentes, sob pena de estar ferindo os princípios constitucionais: da liberdade, da dignidade e autonomia da vontade.
Em linhas gerais, esse princípio espelha a faculdade das pessoas de concluírem livremente seus contratos. Argumenta Humberto Theodoro Júnior: "Na visão do Estado liberal, o contrato é instrumento de intercâmbio econômico entre os indivíduos, onde a vontade reina ampla e livremente, salvo apenas limitações de lei de ordem pública". Acrescenta o autor: "É a autonomia da vontade que preside o destino e determina a força da convenção criada pelos contratantes". (grifo nosso)
Não há dúvidas de que a constitucionalização do direito civil provocou significativas alterações em vários ramos do direito, reclamando uma leitura da lei civil em conformidade com o texto constitucional.
Ainda discorrendo sobre o princípio de autonomia da vontade, pode-se afirmar que este princípio foi fortemente limitado pelo princípio da função social do contrato, o qual passou a exigir dos contratantes uma conduta proba, reta, honesta nos limites da ordem pública e dos bons costumes, objetivando o equilíbrio contratual. Tal limitação deflui da leitura do artigo 421 do Código Civil: "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".
Nessa mesma esteira preleciona o eminente jurista Miguel Reale: "um dos pontos altos do novo Código Civil está em seu artigo 421, segundo o qual a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Acrescenta, entretanto, o festejado jurisfilósofo brasileiro:
Como se vê, a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as pessoas naturais ou jurídicas livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas represente um dos seus meios primordiais de afirmação e de desenvolvimento.
Ao considerar a natureza contratual do casamento, pode-se afirmar que o princípio da função social, embora seja um limitador da autonomia da vontade, contribuirá para completa afirmação da igualdade na escolha do regime de bens dos contraentes em relação a outros contraentes, independentemente de a idade ser superior a sessenta anos, sem tolher-lhes a liberdade.
Nesse sentido aduz Glauber Moreno Talavera: "A única forma de igualdade, que é a compatível com a liberdade tal como compreendida pela doutrina liberal, é a igualdade na liberdade, que tem como corolário a idéia de que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros".
O respeito à vontade dos contraentes, independentemente da idade, significa consagrar alguns dos princípios constitucionais como o da liberdade e da igualdade.
1.2.3 Princípio da igualdade
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º consagrou o princípio da igualdade ao afirmar que todos são iguais perante a lei, sem qualquer discriminação. A idéia central deste mandamento constitucional é garantir a igualdade a todos cidadãos no âmbito social com vistas a atingir o ideal de justiça. Sem igualdade não há justiça. Como bem diz Rodrigo da Cunha Pereira:
A idéia de igualdade interessa particularmente ao Direito, pois a ela está ligada a idéia de Justiça. A Justiça é a regra das regras de uma sociedade e é ela que dá o valor moral e o respeito a todas as outras regras dessa mesma sociedade. Portanto, é a questão da Justiça que permite pensar a igualdade. (grifo nosso)
Em nome dessa igualdade e com vistas alcançar o ideal de justiça, deveria ser concedida aos cidadãos maiores de sessenta anos a liberdade de escolha do regime de bens quando da opção de formação de família através do casamento, não a limitação de sua vontade com a imposição do regime da separação obrigatória de bens, o que induz, na maioria das vezes, à permanência da união estável, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens.
E ainda, se o Código Civil de 2002 consagrou o princípio da igualdade no âmbito do direito das famílias, estabelecendo igualdade de direitos e deveres dos cônjuges na própria na própria organização e direção da família, da pessoa e bens dos filhos, ao acréscimo do sobrenome por qualquer um dos cônjuges, no planejamento familiar, por que não o fez com referência à escolha do regime de bens? É gritante a afronta não só ao princípio da igualdade, mas também ao da liberdade.
1.2.4 Princípio da liberdade
Representa, em sede constitucional, mais um princípio destinado a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana, o qual vem insculpido no artigo 5° da Carta magna. No âmbito familiar, este princípio redimensionou as relações familiares, assegurando aos indivíduos a liberdade de escolha do tipo de entidade de constituição de família, com vistas a consagrar os laços de afetividade entre seus membros.
Nesse sentido aduz Maria Berenice Dias: "Os princípios da liberdade e da igualdade no âmbito familiar são consagrados em sede constitucional. Todos têm a liberdade de escolher o seu par, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser constituir sua família".
Também se assenta neste princípio a liberdade para a dissolução do casamento e da união estável, bem como a formação de novas estruturas de convívio.
Diante do primado de liberdade, uma importante e significativa alteração foi introduzida no casamento: a possibilidade de mutabilidade do regime de bens na vigência da sociedade conjugal, a fim de atender aos interesses dos contraentes, conforme dispõe o artigo 1.639, § 2º, do Código Civil. Contudo, na hipótese de casamento do maior de sessenta anos de idade não é permitida tal alteração, restando restringido o seu direito à liberdade.
A respeito preleciona Marilene Silveira Guimarães: "A regra do art. 1.641, II, destinada aos adultos maduros é de caráter eminentemente discriminatório, pois ignora a crescente longevidade e provoca um cerceamento à liberdade e à autonomia de quem desejar reconstituir sua vida erótico-afetiva".
Cada vez mais é sentida a presença do princípio da liberdade no âmbito do direito de família, e uma prova disso é o estabelecimento da igualdade dos cônjuges no exercício conjunto do poder familiar, contribuindo para o fortalecimento dos laços de solidariedade entre pais e filhos, no intuito de atender ao melhor interesse dos filhos.
É evidente, portanto, a afronta ao princípio da liberdade, bem como a forte discriminação ao idoso em razão de sua idade.
2 D3 DO IDOSOÇiscriminação do idoso
Tanto a Constituição Federal de 1988 como o Estatuto do Idoso, alicerçados nos princípios da liberdade e igualdade, asseguram proteção especial ao indivíduo maior de sessenta anos de idade, vedando de maneira expressa qualquer tipo de discriminação em razão da idade e do sexo. A leitura dos dispositivos abaixo esclarece o que foi acima aludido:
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Art. 2°: O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Apesar do caráter protetor insculpido na lei maior e na legislação infraconstitucional, a codificação civil de 2002 não teceu especial atenção à terceira idade, haja vista a permanência da proibição do maior de sessenta anos de idade de escolher o regime de bens quando da convolação de núpcias, como se não tivesse capacidade suficiente para decidir sobre o destino de seus bens. Ou o indivíduo é plenamente capaz, e essa capacidade o legitima para prática de todos os atos da sua vida civil, ou dele deve ser retirada mediante o devido processo legal de interdição. Mais uma vez, pois, denota-se a grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Ainda dando vazão a tal proibição, um ministro do Supremo Tribunal Federal com mais de sessenta anos de idade tem capacidade para julgar e decidir questões envolvendo os diversos ramos do direito, porém, se desejar casar, sua capacidade é reduzida, pois não terá discernimento suficiente para decidir sobre seus próprios bens e escolher o regime que melhor lhe aprouver.
Absurda se mostra tal limitação em função da idade, pois não há uma razão plausível a justificar a imposição deste regime ao maior de sessenta anos de idade. Ao contrário, essas pessoas demonstram ter maior maturidade, experiência de vida pessoal, familiar e profissional, do que um jovem de dezoito anos de idade, ou de dezesseis anos emancipado, a quem é dada a liberdade de escolha do regime de bens, estando tanto um como o outro sujeito aos riscos patrimoniais da ilusão e da farsa.
Outro aspecto que depõe contra essa proibição é a elevação da expectativa da média de vida do ser humano para setenta anos de idade, em face dos avanços da medicina moderna, da melhoria das condições de existência da população e da busca constante pela qualidade de vida. Também nesse sentido converge o entendimento jurisprudencial ao fixar como expectativa de vida do indivíduo a idade de setenta anos, conforme se constata pela leitura da ementa do acórdão resultante da apelação cível julgada em 24 de março de 1998 pela Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo como relator Francisco José Moesch:
Acidente de transito. Culpa. Age com imprudência o motorista que, ao tentar ultrapassagem, perde o controle do veiculo, atravessando a pista, atingindo veiculo que vinha em sua mão de direção. Indenização devida. Indenização. Dano moral. Verba reduzida para 600 salários mínimos. Pedido de parcelamento. Impossibilidade. Pensionamento. Tempo de duração. E devido ate a data em que a vitima completaria 70 anos, considerando que a expectativa de vida media do gaúcho ultrapassa este nível. Verba honorária. Mantida a fixada na sentença. Apelo provido parcialmente. (Apelação Cível Nº 197139181, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 24/03/1998).
Ainda se evidencia "através de pesquisas efetuadas pelo IBGE que a idade média do brasileiro está em ascensão, sendo maior do que a apontada no início do século passado, quando promulgado o Código de 1916".
Embora o princípio da dignidade da pessoa humana tenha se espraiado pelo direito de família, o legislador de 2002, ao impor o regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, faz refletir uma postura preconceituosa e discriminatória deste indivíduo em relação aos demais, ferindo draconianamente tal princípio, num verdadeiro retrocesso social, além de traduzir a concepção patrimonialista do Código Civil de 1916, a qual perdeu espaço para nova concepção personalista trazida pelo Código Civil de 2002, o que é objeto de estudo do próximo capítulo.
3 Concepção do Código Civil de 2002
Enquanto o Código Civil de 1916 elegeu como objetivo maior a proteção do patrimônio, refletindo uma concepção patrimonialista, o Código Civil de 2002, inspirado nos princípios constitucionais, elegeu a pessoa humana como seu objetivo maior, refletindo uma concepção personalista, tanto que um dos fundamentos do Estado democrático de direito é a dignidade da pessoa humana, conforme se depreende da leitura do artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988.
O ordenamento jurídico de 1916 tutelava como bem maior o patrimônio, o domínio irrefutável sobre os bens; logo, ocupava a pessoa humana papel coadjuvante, sendo o patrimônio o centro desse ordenamento. Já o Código Civil de 2002 tem a pessoa humana como centro deste ordenamento jurídico, como aduz Gustavo Tepedino:
O texto constitucional empreendeu radical transformação no direito civil, elegendo a dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento, ao qual funcionalizou as relações jurídicas patrimoniais. Suplantou, com isso, todas as formulações conceitualistas que idealizavam o direito civil como estatuto das relações patrimoniais. (grifo nosso)
A Carta magna passou a ser o foco do conhecimento e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana adquiriu destaque nas relações pessoais. A pactuar com esse raciocínio assevera Luiz Edson Fachin:
A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, em especial, Código napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais, visando à sua emancipação. Nesse contexto, à luz do sistema constitucional, o aspecto patrimonial, que era o elemento de maior destaque é deixado em segundo plano. Não tem mais guarida constitucional, uma codificação parimonial imobiliária, ranço que marcou a edição do Código Civil em 1916.
Ainda, faz-se mister enfatizar que o ordenamento jurídico de 2002 retrata uma concepção personalista, na qual o indivíduo é valorizado como pessoa, respeitando-se seus direitos e limitações e, acima de tudo, a sua dignidade,"constituindo cláusula geral, remodeladora das estruturas e da dogmática do direito civil brasileiro". Tão grande foi a valorização do indivíduo que se reservou um capítulo específico dentro deste ordenamento para discorrer sobre tal, que é o dos Direitos da Personalidade, inexistente no Código de 1916. Assevera Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
Atualmente, o Direito Civil é constitucionalizado, com forte carga solidarista e despatrimonializante, atribuindo-se maior valor à pessoa humana – o "ser" – do que ao seu patrimônio – o "ter". No âmbito da concepção da tutela da pessoa humana como centro de preocupação e de atenção do ordenamento jurídico, é mister considerar a funcionalização das situações patrimoniais em favor das existenciais.
Ocorreu o fenômeno chamado "constitucionalização do direito civil", ou seja, "a interposição de princípios constitucionais nas vicissitudes das situações jurídicas subjetivas está a significar uma alteração valorativa do próprio conceito de ordem pública, tendo na dignidade da pessoa humana o valor maior, posto ao ápice do ordenamento".
Essa constitucionalização é fortemente sentida no direito de família, onde o princípio da dignidade da pessoa humana é aplicado nas relações familiares como forma de propugnar pela realização pessoal de todos integrantes do grupo familiar, é a chamada "família eudemonista". Denota-se evidente a preocupação para com a pessoa e não mais para com o patrimônio; é o que se chama de "fenômeno da despatrimonialização e a repersonalização das relações familiares". Segue esse raciocínio Lourival Serejo:
Qualquer que seja a família do futuro, as tendências previsíveis em suas características já estão presentes em grande maioria das famílias atuais, a saber: despatrimonialização (substituição da preocupação capitalista de acumular bens pela valorização das relações familiares autênticas entre os membros de uma família), valoração dos aspectos afetivos da convivência familiar, igualdade dos filhos, desbiologização do conceito de paternidade, guarda dos filhos a terceiros, companheirismo, democracia interna mais acentuada, instabilidade, mobilidade e inovação permanente.
A família adquiriu cara nova. O autoritarismo, a discriminação nas relações familiares, a figura do marido como cabeça do casal, que detinha a priori o pátrio poder, desapareceram em face da busca pela efetivação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, fazendo com que florescessem os valores de igualdade, respeito e, principalmente, de afetividade nas relações familiares.
Oportuna mostra-se a observação feita por Márcio Sotelo Felippe em seu trabalho sobre a razão jurídica e dignidade humana: "Quem pensa o Direito hoje tem que pensar em indivíduos livres e iguais. E quem pensa em liberdade e igualdade pensa na dignidade dos homens." E mais adiante arremata: "Pode-se ter dignidade sem ser feliz, mas não é possível ser feliz sem dignidade". (grifo nosso)
Aproveitando a observação feita pelo autor acima de que os indivíduos devem ser tratados com igualdade e liberdade, o legislador, ao transcrever no artigo 1.641, inc. II, do Código Civil de 2002 a proibição contida no artigo 258 parágrafo único, inc. II, do Código 1916, não observou os vetores constitucionais, pois fez permanecer a discriminação ao indivíduo maior de sessenta anos de idade, limitando a sua vontade no tocante à escolha do regime de bens quando da realização de casamento, impondo-lhe a separação obrigatória. O legislador, assim agindo, mais do que imiscuir-se na autonomia da vontade deste indivíduo, afrontou impetuosamente o maior princípio constitucional, o da dignidade da pessoa humana, além de dificultar, nesta fase da vida, as possibilidades deste indivíduo buscar a felicidade, verdadeiro retrocesso social.
Teresa Negreiros afirma: "O legislador e a jurisprudência mais atenta estabelecem o nexo de legitimidade entre a Constituição e as leis infraconstitucionais, bem como entre os princípios normativos e o conteúdo das clausulas gerais".
No caso do artigo 1.641, inc II, do Código Civil, o legislador não fez esta correspondência, ou melhor, a redação deste artigo afronta os princípios constitucionais, sendo de todo inconstitucional.
Maria Celina Bodin de Moraes afirma: "Se a proteção aos valores existenciais configura momento culminante da nova ordem pública instaurada pela Constituição, não poderá haver situação jurídica subjetiva que não esteja comprometida com a realização do programa constitucional". (grifo nosso)
Conforme o entendimento esboçado pela civilista, a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, por ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, deveria ser tida como inexistente, não escrita. Embora este artigo não tenha sido recepcionado pela Constituição, por ferir aos princípios constitucionais, sua aplicação vem sendo efetivada, provocando forte sentimento de repulsa e descontentamento de todos aqueles que, coercitivamente, a ele aderem, dando ensejo à busca da tutela jurisdicional através da aplicabilidade da súmula 377 do STF, como forma de amenizar a desigualdade que este regime encerra, a qual se passa a analisar.
4 Súmula 377 do STF
A fim de abrandar o rigorismo e a situação de absoluta injustiça que ensejava a aplicação do artigo 258, parágrafo único, inc. II, do Código de 1916, o STF em 1964 editou a súmula 377, a qual autorizava o Judiciário a alterar o regime imposto pela lei para o regime de comunhão parcial de bens, passando a haver a comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento.
O espírito norteador desta súmula, já na concepção do Código de 1916, era preservar a partilha igualitária dos bens amealhados durante o casamento, a fim de evitar o enriquecimento ilícito de um dos contraentes em detrimento do outro, todas as vezes em que aos nubentes era imposto, pela lei, o regime da separação obrigatória de bens.
A evidenciar tal situação traz-se à colocação a ementa do acórdão resultante do agravo de instrumento 70008214793, julgado em 22.04.2204, pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do qual foi relator Alfredo Guilherme Englert.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Sucessões. Inventário. Preliminar de intempestividade superada. Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento. RECURSO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70008214793, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alfredo Guilherme Englert, Julgado em 22/04/2004).
Ainda nesse sentido, cita a ementa do acórdão resultante da apelação cível nº 70004864476, julgada pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo como relator Agathe Elsa Schmidt da Silva.
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. ALIENAÇÃO DE COISA COMUM. EXISTÊNCIA DE LITÍGIO SOBRE O BEM. AQUISIÇÃO DO BEM, PELO CÔNJUGE, NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. INCIDÊNCIA DA Súmula 377 DO STF. É possível a formação de aqüestos no regime da separação de bens por força de lei. Estes aqüestos são patrimônio comum a ser partilhado. Súmula 377 do STF. APELO PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70004864476, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Agathe Elsa Schmidt da Silva, Julgado em 23/02/2006)
Entretantio, na vigência do Código de 1916, o legislador, dando-se conta do caráter injusto que emergia do seu artigo 258, parágrafo único, inc. II, passou a dar aplicabilidade à súmula 377 do STF, dispendendo tratamento igualitário aos nubentes maiores de sessenta anos de idade, através da partilha equânime dos bens adquiridos na vigência do casamento por ocasião de uma eventual dissolução da sociedade conjugal.
Por outro lado, inconcebível, no estágio de desenvolvimento da sociedade, o Código Civil de 2002 reproduzir dispositivo anacrônico e injusto, mantendo a proibição da opção de escolha do regime de bens ao contraente maior de sessenta anos de idade, conforme se constata pela leitura do artigo 1.641, inc. II, numa época em que se propugna pela repersonalização das relações familiares, com a supervalorização da pessoa, ficando evidente a superproteção da figura do cônjuge.
Conclusão
Evidencia-se através da pesquisa empreendida que, embora a Constituição exerça supremacia sobre a legislação infraconstitucional, no tocante à reconstrução do Código Civil de 2002, essa não é visualizada em sua plenitude, haja vista alguns de seus artigos se confrontarem com o texto maior. A exemplificar essa situação tem-se a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, contida no artigo 1.641, inc. II, do Código Civil, limitando-lhe a autonomia da vontade, tolhendo-lhe a liberdade de escolha e discriminando-o em razão da idade, e o que é mais gritante, afrontando a sua dignidade como ser humano, merecedor de respeito, consideração e, acima de tudo, de ter garantido o direito de escolher a melhor maneira de ser feliz.
Em tempos atuais não há como aceitar uma norma imbuída de preconceito, que diferencia o indivíduo maior de sessenta anos de idade em relação ao indivíduo de menor idade, pois reflete um conceito de uma época distante, a do Código de 1916, quando era justificável a ingerência do Estado sobre a vontade individual como forma de proteger a família, que era patriarcal, matrimonializada e patrimonializada. Dita proibição reflete a postura patrimonialista do Código Civil de 1916 e representa uma ofensa grave ao indivíduo maior de sessenta anos de idade no tocante a sua dignidade.
No entanto, a doutrina e a jurisprudência, ainda na vigência do código anterior, mais precisamente no ano de 1964, por considerarem injusta a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, procuraram amenizar essa situação de injustiça através da edição da súmula 377 do STF, firmando orientação de que os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam, não importando se haja resultado ou não do esforço comum.
Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 provocou uma verdadeira revolução no direito de família ao estabelecer a igualdade entre os cônjuges; o homem perdeu o status de cabeça-do-casal, a adjetivação dos filhos também deixou de existir, adquirindo estes apenas condição de filhos. O afeto conquistou espaço nas relações familiares, com vista à realização individual, elegendo-se como modelo de família a eudemonista e igualitária. Houve a consagração dos princípios constitucionais, pelo que muitos artigos do código anterior foram revogados.
Diante do forte influxo do texto constitucional no direito Ccvil, a reconstrução do ordenamento jurídico de 2002 deve ser feita à luz da lei maior, sob pena de ser considerado inconstitucional; é o chamado "fenômeno da constitucionalização do direito civil". Todavia, o legislador, sob o pretexto de outorgar proteção ao indivíduo da terceira idade e sob o disfarce de ignorar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana da liberdade e da igualdade, reedita no Código Civil de 2002 a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos de idade, o que representa flagrante violação da lei maior, resultando inconstitucional tal dispositivo.
É tão visível a inconstitucionalidade do artigo 1.641, inc. II, do Código Civil de 2002 que já tramita no Senado Federal o projeto de lei n° 209/2006, de autoria do senador José Maranhão, postulando a revogação deste dispositivo por estar em desarmonia com os princípios constitucionais, conforme anexo.
Portanto, enquanto não houver a revogação expressa desse artigo com a completa efetivação dos princípios constitucionais, aos indivíduos maiores de sessenta anos de idade continuará sendo imposto o regime da separação obrigatória de bens, pois o dispositivo, mesmo que se mostre inconstitucional, existe, é aplicado e produz efeitos, restando àqueles que se sentirem prejudicados buscar, via judicial, a partilha dos bens havidos a partir do casamento, através da incidência da súmula 377 do STF, independentemente da prova do esforço comum na formação do patrimônio. E aos juízes restará a tarefa de fazer justiça, ouvindo a súplica de todos que por ela esperam.
1.BRASIL. Código Civil. 55 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
2.VENOSA, Silvio de Salvo. Curso de direito civil. 3 ed. São Paulo. Editora Atlas. 2003. v. 6. p. 169.
3.RODRIGUES, Silvio. Curso de direito civil. v. 6, Direito de Família, 28 ed., 2006, Ed. Saraiva, p. 190.
4.VENOSA, Silvio de Salvo, op. cit., p. 196.
5.MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 2, Direito de Família, 34 ed., 1997, Ed. Saraiva, p. 178.
6.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
7.DURIG, G. Der Grundsatz der Menschenwürde, apud, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidadeda pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed., Editora Livraria do Advogado, 2004. p. 41.
8.SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3ª ed., Editora Livraria do Advogado.
9.SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 59-60.
10.LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=507. Acesso em: 01 out. 2006
11.TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Ed. Renovar, RJ, 2006, p. 365.
12.RODOTÁ, Stefano, apud, TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Ed. Renovar, RJ, 2006, p. 372.
13.GRIMM, Dieter. apud, SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit. p. 151.
14.DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. v. 3, Editora Saraiva, 18ª ed., 2003, p. 32.
15.BETTI, Emilio, apud, RODRIGUES, Silvio. Curso de direito civil. v. 3, 29ª ed., Editora Saraiva, 2006. p. 188.
16.WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro. Obrigações e contratos, 17ª ed., Editora Saraiva, 2006, p. 188.
17.PEREIRA, Caio Mario, apud, O novo código civil comentado, v. 1, Editora Freitas Bastos, 2003, p. 319.
18.JÚNIOR, Humberto Theodoro, apud, COSTA, Geraldo Gonçalves da. Revista Jurídica 316, Fev/2004, Editora Nota Dez, p. 51.
19.BRASIL. Código Civil. 55 ed. São Paulo. Saraiva, 2004.
20.REALE, Miguel, apud, COSTA, Geraldo Gonçalves. op. cit. p. 51.
21.TALAVERA, Glauber Moreno, apud, RIZZARDO, Arnoldo. Contratos, 3ª ed., Ed. Forense, RJ, p. 21.
22.PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 92.
23.DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 3ª ed., Ed. Revista dos Tribunais LTDA, 2006, p. 53.
24.GUIMARÃES, Marilene Silveira, apud, In Anais do IV Congresso brasileiro de direito de família, IBDFAM, p. 458.
25.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
26.ESTATUTO DO IDOSO. Lei 10.741 de 1° de outubro de 2003.
27.RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 2ª Câmara Cível. Relator Francisco José Moesch , 24 março de 1998.
28.CHINELATTO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil, v. 18, Ed, Saraiva, 2004, p. 290.
29.TEPENDINO, Gustavo. op. cit., p. 358.
30.SARLET, Ingo Wolfgang. O novo código civil e a constituição, 2 ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2006, p. 51-52.
31.TEPEDINO, Gustavo. op. cit., p. 342.
32.GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Personalidade e capacidade jurídicas no Código Civil de 2002. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, anos VIII, v. 37, agost/set/2006, p. 28.
33.TEPEDINO, Gustavo. op. cit., p. 42.
34.SEREJO, Lourival. Direito Constitucional da Família, 2 ed., Del Rey Ed. LTDA. p. 23.
35.FELIPPE, Marcio Sotelo, op. cit., p. 18.
36.NEGREIROS, Teresa, apud. TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 43.
37.MORAES, Maria Celina Bodin, apud. TEPEDINO, Gustavo, op. cit. p. 42.
38.RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 8ª Câmara Cível. Relator Alfredo Guilherme Englert, 22 abril de 2004.
39.RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 18ª Câmara Cível. Relatora Agathe Elsa Schmidt da Silva, 23 fev de 2006.
Referências
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WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
ANEXO: Projeto de lei 209/2006.
PROJETO DE LEI DO SENADO N° 209, DE 2006
Revoga o inciso lido art. 1.641 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir às pessoas maiores de sessenta anos a livre decisão sobre o regime de bens no casamento.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1° Revogue-se o inciso II do art. 1.641 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Art. 2° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Justificação
O Código Civil (CC) de 1916 estabelecia, em seu art. 258, parágrafo único, inciso II, a obrigatoriedade do regime de separação de bens para todo casamento de homem maior de sessenta ou de mulher maior de cinqüenta anos.
Embora o legislador do novo Código tenha se dedicado a promover, sob esse aspecto, a igualdade substancial entre o homem e a mulher, ao determinar uma idade comum a ambos a partir da qual passa a valer condicionante, logrou atrair, em contrapartida, críticas severas de diversos juristas e magistrados. Eles consideram tal imposição de regime de bens não apenas uma intervenção estatal abusiva na instituição familiar, como também uma evidente violação, de caráter discriminatório, do princípio da dignidade da pessoa humana, que se encontra consubstanciado no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal (CF). Ademais, tem-se argüido afronta também a outros dispositivos constitucionais, a saber: ao art. 50, incisos I e X, e ao art. 226, do qual emerge o princípio da liberdade de constituir entidade familiar.
Na obra em que discorre sobre a matéria (Comentários ao Código Civil, vol. 18, São Paulo: Saraiva, 2004), a doutrinadora Silmara Juny Chinelato expõe argumentos contundentes. Ela sustenta que não há razão científica para que o legislador do início do milênio considere como pessoa de pouco tino e, por isso, com necessidade de proteção da lei, a que tiver mais de sessenta anos. Longe disso, tais pessoas aportariam a maturidade de conhecimentos da vida pessoal, familiar e profissional, devendo ser prestigiadas quanto à capacidade de decidir por si mesmas. Entender que a velhice chega aos sessenta seda, assim, uma forma de discriminação, cuja inconstitucionalidade pode ser argüida tanto em ação direta de inconstitucionalidade como em cada caso concreto. Analogamente, a plena capacidade mental deveria ser aferida em cada caso particular, não podendo a lei presumi-la por capricho do legislador, que meramente reproduziu razões de política legislativa, fundadas no Brasil do início do século passado.
A jurista conclui seu arrozoado lembrando que a vida prática nos dá incontáveis exemplos de pessoas de mais alto discernimento que ultrapassaram os sessenta anos de idade, entre elas incluídos muitos juízes e desembargadores que julgarão causas que envolvam, direta ou indiretamente, o inciso II do art. 1.641 do CC. Não me posso furtar de acrescentar que tal observação pode ser estendida a muitos dos parlamentares que deverão apreciar esse projeto. Depreende-se, portanto, que as causas mais relevantes para a mudança do inciso II do art. 1.641 do Código Civil possuem sede constitucional. Supor, de modo apriorístico, que a pessoa, por ter atingido determinada idade – seja qual for –, tem sua capacidade de raciocínio e de descimento comprometida, implica incorrer em patente de discriminação, bem assim em ofensa ao princípio da dignidade humana. E, para harmonizar a legislação infraconstitucional com os preceitos constitucionais, cremos inarredável a revogação do inciso II do art. 1.641.
Pelas razões expendidas, contamos com a colaboração dos ilustres Pares para a aprovação deste projeto de lei.
Sala das Sessões, 6 de julho de 2006. – Senador José Maranhão.
Joana Darca Malheiros Knaack é membro do IBDFAM e aluna do Curso de Extensão Notarial e Registral da AJURIS, Porto Alegre (RS) |
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