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Possibilidade de perda de herança em decorrência do abandono afetivo inverso
Possibilidade de perda de herança em decorrência do abandono afetivo inverso
Yasmim Fernandes Teixeira
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ.
E-mail: yasmimmft@gmail.com
RESUMO
O trabalho tem o objetivo de abordar o problema do abandono, tentando comprovar, por meio do auxílio da Psicologia, os efeitos nocivos que podem ser desencadeados na vida das pessoas, sobretudo nos idosos. O texto introduz o tema explicando não só o contexto histórico e a situação atual vivida por essa grande parcela da sociedade, mas também fazendo uma breve apresentação acerca dos temas que envolvem o direito sucessório, como os diversos tipos de herdeiros (necessários, facultativo e testamentários) e as causas de exclusão sucessória vigentes até o momento.
Apesar de a produção acadêmica almejar a atualização do Código Civil vigente no sentido de prever a possibilidade de perda de herança em decorrência do abandono afetivo inverso, esta não visa discutir, por ora, a possibilidade de responsabilidade civil, tão pouco discutir a aplicabilidade da possível futura norma, mas sim apontar questões problemáticas a serem pensadas e refletidas, pois somente após obtermos conhecimento é que conseguimos expandir nossos horizontes.
Além do auxílio da Psicologia, a pesquisa se utiliza de doutrinas, normas, direito comparado entre Brasil e Portugal e pesquisas de campo e jurisprudenciais.
Palavras-chave: Sucessões. Idosos Abandono. Indignidade. Deserdação.
ABSTRACT
This work aims to address the problem of abandonment, trying to prove, through the help of Psychology, the harmful effects that can be triggered in people's lives, especially in the elderly people.This work introduces the theme by explaining not only the historical context and the current situation experienced by this large portion of Society, but also giving a brief presentation on the themes involving inheritance law, as the different types of heirs (necessary, optional and testamentary) and as causes of succession exclusion in force until now.
Although academic production aims to update the current Brazilian Civil Code in order to provide for the possibility of loss of inheritance as a result of reverse affective abandonment, this is not intended to discuss, for now, the possibility of civil liability, nor discuss the applicability of future norm, but rather to point out problematic issues to be thought about and reflected on, since it is only after obtaining knowledge that we are able to expand our horizons.
In addition to the assistance received by Psychology, this paper uses legal doctrines, rules, comparative law between Brazil and Portugal and jurisprudential research.
Keywords: Successions. Seniors. Abandonment. Indignity. Disinheritance.
- INTRODUÇÃO
Até que inventem uma pílula milagrosa, a velhice é a fase da vida que todos os seres humanos estão sujeitos, mas será que o nosso ordenamento jurídico está preparado para lidar com essa situação, será que está atento o suficiente para, dessa forma, proceder na devida proteção do interesse desses indivíduos?
Quando falamos em idosos estamos tratando de uma fase, provavelmente, muito diferente da que a maioria dos leitores deste artigo estão vivendo; contudo, se seguirmos o fluxo natural da vida, certamente essa será a realidade em breve. Por isso, e não é somente por isso, que os convido a refletir um pouco mais acerca do tema.
Segundo Tânia da Silva Pereira, “o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana” (2007, p.1) e ainda acrescenta que o não cuidado desenvolve sentimento de impotência, perda e desvalorização como pessoa, pois, com esse novo período da vida, algumas situações vêm de “brinde”, como as doenças, os esquecimentos, as dores e, muitas vezes, o pior de todos deles, o abandono.
Situações nocivas como o abandono são causas a serem tuteladas pelo Direito e por esse motivo não faz sentido tratar o abandono somente em uma via, ou seja, abandono parental, mas também no sentido inverso; afinal, além da pirâmide etária da população brasileira ter sofrido mudança brusca, alertando ainda mais para a necessidade de destinarmos atenção a esse grupo de pessoas, ambos são pessoas que sentem com grande intensidade a sensação de desvalorização.
Sendo assim, faz sentido quem não prestou assistência financeira, psicológica nem afetiva ao idoso receber o quinhão que a lei diz que lhe é de direito?
- BREVE ENQUADRAMENTO HISTÓRICO
É cientificamente comprovado que o ser humano é um ser social, que necessita estar e se relacionar com outras pessoas; um resultado da aversão à solidão.
Com o advento da agricultura e da prática de criação de animais, o ser humano deixou de ser nômade e passou a ter a necessidade de estabelecer raízes, criando laços e adquirindo bens que eram perpetuados por aqueles que deles se apossavam. Com o tempo, o ser humano passou a entender o valor desses bens e isso foi determinante, pois as pessoas passaram a se reunir em grupos com afinidades em comum.
Após diversas mudanças, a cultura familiar passou a ser o núcleo da sociedade; verdadeira passagem do estado de natureza para o estado da cultura. A família se define em um conjunto de normas, práticas e valores que têm seu lugar, seu tempo e uma história (BIROLI, 2014, p.20)
Em uma sociedade capitalista a sucessão hereditária surge com o reconhecimento natural da propriedade privada; está ligado à continuação do culto familiar que, desde os tempos remotos, advém da ideia de propriedade (VENOSA, vol. VII, 4ª ed., p.17). É certo dizer que, nas sociedades onde não existe direito de propriedade nem interesse na preservação da família, não existe Direito das Sucessões (DIAS, 2019, p. 44) e é nesse sentido que os filhos, em regra, passaram a ser ferramentas essenciais para manter sempre viva a cultura e a individualização da família.
Com o tempo e a modernidade, o testamento, invenção romana, passou a ser instrumento importante para uma melhor disposição dos bens pelo “de cujus” e é dentro dessa dinâmica que surge a ideia do herdeiro legítimo necessário e todos os subsequentes, os chamados legítimos facultativos (ou não necessários), que irão herdar na falta dos primeiros.
- LINHAS GERAIS SOBRE DIREITO DAS SUCESSÕES
- Ordem de vocação hereditária e a parte legítima
Dentro das responsabilidades do Direito Civil está a regulação da interação do humano com as relações econômicas e é de extrema importância que haja regras capazes de manter todas as engrenagens da sociedade funcionando em perfeita harmonia. No sistema atual o dinheiro desempenha papel extremamente importante em todas as fases da vida. Entretanto, é fácil perceber que na velhice há uma maior necessidade dele e é com base nessa lógica que as pessoas são educadas a trabalhar e a construir patrimônio.
Com a morte alguns direitos e obrigações adquiridos ao longo da vida serão cessados; porém nem tudo, pois o instituto da sucessão tem início justamente em detrimento desse evento. Este instituto é responsável por garantir o efetivo cumprimento da última vontade do falecido, destinando aos herdeiros (testamentários ou determinados por lei) todos os bens do acervo, garantindo, dessa forma, que nenhum direito ou vontade seja lesada.
Os incisos XXII e o XXX do artigo 5º da Constituição Federal se relacionam perfeitamente ao assunto, uma vez que um garante a herança como um direito de todos e o outro garante o direito de propriedade, respectivamente. Há uma ligação natural e lógica entre os dois conceitos, pois se não houvesse a garantia à propriedade, os bens adquiridos ao longo da vida seriam passados para o Estado e não aos entes queridos.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - É garantido o direito de propriedade;
XXX - É garantido o direito de herança;
Qual seria o sentido de trabalhar a vida toda para formar um patrimônio que não teria respaldo jurídico no sentido de garantir a livre disposição da maneira que o detentor bem entender? As pessoas passariam a trabalhar o suficiente para ter uma aposentadoria boa, com dignidade e isso certamente seria um grande ônus para o Estado e para a sociedade como um todo, pois a mão de obra seria reduzida a níveis consideráveis.
De acordo com Silvio de Salvo Venosa “Quando houver testamento, atende-se, no que couber, segundo as regras hereditárias, a vontade do testador. Quando não houver testamento ou no que sobejar dele, segue-se a ordem de vocação hereditária legitima, isto é, estabelecida na lei” (VENOSA, vol. VII, 4ª ed., p. 22).
O testamento é um ato de última vontade do falecido. A missão deste negócio jurídico é a de designar os bens do falecido àqueles indivíduos determinados antes de sua morte, desde que essa manifestação de vontade esteja de acordo com a legislação; isto é, não havendo herdeiros necessários, a liberdade do disponente é total. Entretanto, “havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança” é o que diz o artigo 1.789 do Código Civil que se complementa com o artigo 1.846, CC: “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.
Dessa forma, após a morte será dado início ao processo de cumprimento do testamento, caso haja, antes do processo de inventário, no qual serão apurados pelo Ministério Público todos os eventuais vícios e impedimentos que o testamento possa sofrer. Após esse período será avaliado se há ou não manifestação de credores reivindicando o adimplemento das obrigações contraídas.
Diferente do que alguns acreditam, o herdeiro não sucede o “de cujus” nas dívidas, mas sim o espólio. O espólio é o conjunto de obrigações, bens, valores e direitos adquiridos ao longo da vida e deixados pelo falecido àqueles de sua vontade ou aos que pela lei encontram-se elencados no rol dos “herdeiros legítimos”. Sendo assim, o(a) inventariante fica responsável por gerenciar todo espólio a fim de honrar as obrigações contraídas pelo falecido perante os credores. Somente após esse procedimento é que os herdeiros poderão suceder na posse do que restar.
Como podemos perceber, ainda que seja verdade que a vontade do falecido tem que ser respeitada, essa afirmativa não é completamente absoluta, pois na sucessão legítima a lei destina obrigatoriamente 50% do patrimônio aos herdeiros necessários que são: (i) os ascendentes; (ii) os descendentes; (iii) o cônjuge; e, embora seja polêmico, (iv) a(o) companheira(o). Já os outros 50% são livres para que o testador possa dividir da forma que achar melhor.
Ainda nesse sentido, com o objetivo de ter certeza com relação ao montante que será passível de divisão, é importante observar o regime de bens do casamento, caso haja, pois se a celebração se deu no regime de comunhão universal, o cônjuge passa a ser meeiro e essa parte correspondente à meação não entra na divisão dos herdeiros necessários. Lembrando que cônjuge – ainda que seja herdeiro necessário –, se for meeiro não participa da divisão da legítima.
Ainda utilizando a ordem de vocação hereditária, há os herdeiros colaterais ou transversais, que são os parentes de quarto grau: irmãos, tios e primos. Estes são herdeiros legítimos facultativos e herdam apenas na ausência de testamento e de herdeiros necessários ou se contemplados em testamento, pois não havendo herdeiros necessários, a liberdade do disponente é total.
Carlos Roberto Gonçalves aborda a escassez de testamento entre os brasileiros e explica que, por termos em lei a sucessão legítima e por esta ser a mais difundida, uma vez que determina exatamente as pessoas que o “de cujus” elencaria se, na ausência de regras, tivesse de elaborar um testamento, a adoção do testamento não é algo muito procurado pelos brasileiros (2017, p.37). A situação econômica da sociedade também é um dos maiores motivo para essa opção ter se tornado algo cultural. O testamento público, feito em cartório, é custoso, requer conhecimento, auxílio profissional e principalmente bens que justifiquem testar. Como a sociedade é composta, na sua grande maioria, por uma parcela desprovida de grandes aquisições e não há uma cultura de perpetuar bens de família, muitas vezes esses poucos bens são deixados e os herdeiros tomam posse de forma irregular.
- Da exclusão no direito sucessório:
Após entender que ao grupo de pessoas chamado "herdeiros necessários" cabe obrigatoriamente metade de todos os bens do “de cujus”, é importante perceber que esse direito, ainda que muito protegido, não é absoluto e livre de qualquer sanção. Para determinados casos considerados de maior ofensividade ao falecido, o Direito Civil reservou um instituto fundamentado na moral e na ordem pública chamado de exclusão de herdeiros. Afinal, o direito sucessório se pauta no afeto presumido do “de cujus” para com as pessoas designadas em testamento, ou que venham a suceder no seu patrimônio em virtude da lei; a ruptura desse sentimento em decorrência de atitudes graves, pode desencadear uma sanção.
Há duas possibilidades de exclusão da herança, a indignidade e a deserdação que são extremamente importantes justamente por tornar o sistema mais justo. Nesse sentido, vale parafrasear Antônio Elias de Queiroga: “Não fosse a reparadora intervenção da lei civil, a sociedade assistiria, sem a mais tênue esperança de punição, ao espetáculo horrendo, oferecido pelo algoz que carrega os despojos da vítima ou pelo vilão que colhe os frutos de sua miséria moral” (2005, p. 33).
A indignidade constitui pena civil privando do direito de herança não só os herdeiros necessários, mas também os testamentários que cometeram atos criminosos e/ou reprováveis contra o(a) autor(a) da herança, desde que estas condutas estejam de acordo com as hipóteses previstas em lei; ou seja, o Direito Civil faz juízo de reprovação e determina quais atos são passiveis de conceder o afastamento da sucessão. É uma questão que envolve certo aspecto da moral e da lógica de que quem pratica atos de indignidade seja impedido de receber os benefícios ofertados pela vítima.
Na indignidade, diferente da incapacidade, o indivíduo possui pleno direito e capacidade para figurar como herdeiros ou legatário. Entretanto, em determinado momento e em decorrência de algum ato há uma quebra de afeição e o resultado é justamente a transformação de um herdeiro ou legatário apto em indigno, também chamado de sucessor indigno. As causas para assim se tornar encontram-se no artigo 1.814, CC que podem ser, de forma resumida, expressas em uma pequena lista: atentados contra a) a vida; b) a honra; e c) a liberdade do autor da herança.
Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
Como o efeito da privação à herança não é automática, existe a necessidade do ajuizamento da ação declaratória de indignidade, visto que, ainda que a ilegitimidade decorra da lei, a exclusão se dá por sentença, sempre observando se houve ou não reabilitação concedida pelo falecido àquele herdeiro.
A sentença tem o efeito de tomar o bem do indigno, pois, considerando que a herança se transmite no momento da abertura da sucessão, o herdeiro indigno recebe seu quinhão hereditário de imediato. Os bens retirados do excluído são chamados de ereptícios, e os sucessores, a quem são devolvidos, são chamados de ereptores (DONIZETTI; QUINTELLA, 2016, p. 1.220). Ademais, de acordo com o §1º do artigo 1.815, o procedimento deverá ser iniciado até 4 (quatro) anos após a abertura da sucessão, tratando-se de prazo decadencial.
Passando para a deserdação, Orlando Gomes ensina que “é a privação, por disposição testamentária, da legítima do herdeiro necessário” (2015, p. 239) e tem como causa o disposto nos artigos 1.962 e 1.963 do CC que diz que sofre a deserdação aqueles que cometerem: a) ofensa física; b) injuria grave; c) relações ilícitas; e d) abandono de ascendente ou descendente em casos específicos, além das causas de indignidade listadas no artigo 1.814, CC.
Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes:
I - ofensa física;
II - injúria grave;
III - relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
IV - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes:
I - ofensa física;
II - injúria grave;
III - relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta;
IV - desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade
Por tratar-se de exclusão de herdeiro legítimo necessário, as hipóteses de exclusão são taxativas e por isso não se pode, por analogia ou por interpretação extensiva, excluir da sucessão herdeiro ou legatário, senão nos casos expressamente previstos em lei (QUEIROGA, 2005, p. 35). Ao contrário da indignidade em que as pessoas interessadas, incluindo o Ministério Público, poderá requerer judicialmente essa penalidade civil, na deserdação somente o autor da herança, em ato de última vontade, poderá deserdar.
Contudo, buscando evitar “injustiças”, é necessária a confirmação por meio de sentença judicial. Sendo assim, é imprescindível que o testamento exista, que seja válido, que haja herdeiros necessários e sobretudo que conste cláusula que motive o afastamento, sob pena de nulidade absoluta, por desrespeito à forma e à solenidade.
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
IV - não revestir a forma prescrita em lei;
V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
O art. 1.965, CC traz a satisfação da possível dúvida quanto à “como se daria a execução da vontade do autor da herança”. Isto é, cabe ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, o ônus de provar a veracidade da causa alegada pelo testador dentro da ação de confirmação de deserdação. O interessado terá 4 (quatro) anos após a abertura do testamento para provar as alegações feitas pelo “de cujus” e fazer valer a sanção civil.
Assim como os herdeiros dos indignos, exceto cônjuge/companheiro(a), os do deserdado também podem representá-lo como se morto fosse, diferente de como ocorre na renúncia da herança. Na deserdação o excluído também não terá direito ao usufruto, à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual do montante.
Art. 1.816. São pessoais os efeitos da exclusão; os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão.
Parágrafo único. O excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens.
Na deserdação também cabe o perdão e para isso as formalidades não são essenciais. Lembrando que o perdão somente é possível para atos praticados até a abertura da sucessão, os posteriores não serão considerados e a indignidade poderá ser invocada.
- OS EFEITOS DO ABANDONO
“A psicologia ajuda a interpretar e compreender determinadas atitudes baseadas no emocional do indivíduo, facilitando assim a vida do julgador” (TEBALDI, 2015). É uma disciplina, muitas vezes, de auxílio ao Direito, pois estuda e compreende o comportamento do indivíduo diante de determinadas condutas que afetam o psicológico, trazendo desconfortos e ônus para a vida do indivíduo, como é o caso do abandono.
Em uma pesquisa do Instituto IDOR e da UFRJ publicada no ano de 2019 foi divulgado que o cérebro pode ser treinado para curar doenças por meio de treinamento cerebral (GUATIMOSIM, 2019, FAPERJ); portanto, o contrário é possível e mais fácil de ocorrer. Quando a cabeça de um idoso é enfraquecida, a probabilidade de agravar doenças já existentes e/ou de gerar novas doenças é muito grande.
Dessa forma, o abandono, sobretudo nessa altura da vida, é nocivo para a saúde não só mental de um idoso, mas também física e é por esse motivo que há uma grande necessidade de regular esse assunto. Sendo assim, pode-se perceber que a Psicologia busca explicar, orientar e atualizar o Direito para que este possa, de modo mais adequado, exercer seu papel na sociedade, isto é, proteger o cidadão.
- A solidão e a depressão
Dentre as formas de solidão, encontramos as mais vivenciadas: a social e a emocional. A social muitas vezes é vivida e sentida devido à uma percepção pessoal do indivíduo. Já a emocional é a mais sentida pelos idosos, pois são muitas vezes abandonados por pessoas próximas, sendo a forma mais dolorosa de isolamento.
O trabalho e a família são o eixo central que estrutura e define a existência humana. O idoso, em determinado momento da vida, perde a capacidade laboral, parte da capacidade cognitiva e alguns perdem os companheiros logo na sequência. Somado a isso, o afastamento de pessoas da família acaba sendo um golpe doloroso e muitas vezes fatal.
A sensação de solidão e de desvalorização se agrava quando o idoso percebe que perdeu participação na sociedade devido ao nível de saúde física e psíquica. Estes indivíduos passam a se ver, de uma hora para a outra, dependentes de outras pessoas para conseguir realizar atividades simples; isto é, são privados de papéis e relações sociais em torno dos quais a sua identidade havia sido construída.
A solidão leva a diversos sentimentos, como os de desmotivação e tristeza; a depressão surge maximizando e adicionando diversas outras angústias. Esta mazela é muito mais que um sentimento, é considerada a “doença mental do século”, grave e incapacitante, podendo atingir a todos, sem critérios.
Ainda que a depressão não seja parte normal do envelhecimento, é um problema comum entre os idosos (NIA,2020), pois estes são especialmente vulneráveis à solidão e ao isolamento social, o que pode afetar seriamente a saúde mental do indivíduo propiciando o aparecimento dos sintomas da depressão (NHS UK, 2020).
- A situação do idoso brasileiro e a institucionalização
O Brasil dispõe de um número de telefone de apoio chamado “Disque Direitos Humanos” (Disque 100) e tem o objetivo de receber, encaminhar e monitorar as denúncias de violação de direitos humanos. Em 2018, a central notou um aumento de 13% em denúncias relacionadas aos idosos, tendo como base o ano anterior.
Segundo a Agência Brasil, a violência física encontra-se em quarto lugar (12,6%); ocupando o topo estão os casos de negligência (38%) e a violência psicológica totalizando 26,5% dos casos. A maior parte desses maus tratos ocorrem dentro de casa e contra mulheres; dois terços dos agressores são os próprios filhos e/ou netos. Em decorrência disso, os idosos quase não denunciam; em parte por medo e em parte para proteger os familiares.
O papel fundamental exercido pela família tem especial importância na vida do idoso, pois a presença ajudará o idoso a se adaptar melhor às mudanças provenientes do envelhecimento. É fundamental que o indivíduo se sinta amado e sobretudo indispensável pelos entes queridos, para que os sentimentos de abandono, incapacidade, solidão sejam afastados.
Entretanto, se estar em casa nem sempre é seguro, muitas vezes a melhor saída é a institucionalização do idoso; porém outros problemas acabam surgindo, pois os idosos independentes, quando internados, pode desenvolver diferentes graus de dependência devido à dificuldade em aceitar as novas condições de vida e à falta de motivação e encorajamento que são comuns no ambiente asilar (MEDEIROS, vol. 11, 2012). Um outro aspecto importante é que a admissão do idoso nesses lugares pode significar uma ruptura definitiva dos velhos laços afetivos.
Em relatório realizado no ano de 2002 pelo Deputado Federal Marcos Rolim (PT-RS) foi possível notar os grandes problemas que envolvem a institucionalização, como não serem concebidos como cidadãos, sendo muitas vezes tratados sem a individualidade mínima e tratados como absolutamente incapazes, mesmo quando no gozo pleno de suas faculdades mentais ou independentes fisicamente. São situações que vão de encontro ao que prevê o inciso VI do artigo 49 do Estatuto do Idoso, pois em muitas instituições os funcionários não sabem nem ao menos seus nomes – nitidamente não há um ambiente de respeito e dignidade (Deputado Marcos Rolim, 2002).
O idoso deve gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, bem como é de obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar a efetivação do direito à vida, à dignidade, ao respeito, entre outros direitos fundamentais – é o que dispõem os artigos 2º e 3º do Estatuto.
No quesito financeiro, alguns desses estabelecimentos - pequenos empreendimentos privados - apropriam-se das aposentadorias, pensões e outros benefícios dos idosos; muitas vezes manipulam os cartões bancários de seus “clientes” e quando há recusa do idoso a dar procuração à entidade, o acolhimento é negado. Essas situações mostram o nível de abandono dos idosos pelos familiares e pelo Estado.
Nas instituições filantrópicas as boas intenções costumam ser rapidamente ultrapassadas pelas carências e dificuldades. São instituições desprovidas de fins lucrativos e sobrevivem por meio de caridade. Por esse motivo, esses asilos acabam passando por grandes dificuldades em que os pacientes, muitas vezes, não têm a assistência necessária.
Todas as situações degradantes impostas pelos estabelecimentos, ou até mesmo pelos familiares aos seus idosos, diminuem o indivíduo acabando por ferir não somente a Constituição, mas também o Estatuto de Proteção do Idoso. Importante salientar que, ainda que os filhos ou parentes próximos deixem o idoso em alguma casa de repouso e paguem a mensalidade pelos serviços prestados, o abandono afetivo inverso é caracterizado caso não haja visita e suporte adequado. É importante que a família faça visitas regulares a fim de verificar seu estado de saúde e/ou emocional. Além disso, caracterizado esse cenário, caberá o ajuizamento de ação de reparação por danos morais (GIRUNDI, 2018).
- O abandono de idosos no cenário do Covid-19
Em dezembro de 2019, o mundo se deparou com um cenário jamais visto no último século. Uma epidemia estava prestes a tomar proporções mundiais, ocasionando diversas mortes, desastres econômicos e conflitos políticos. Ainda que o mundo tenha se organizado para desenvolver em menor tempo histórico uma vacina a fim de combater esse mal, o vírus ainda é consideravelmente desconhecido pelos cientistas, pois a cada momento demonstra faces que antes não eram conhecidas.
Com a globalização, diversos benefícios culturais, econômicos, tecnológicos surgem, e com eles as responsabilidades aumentam. Tendo em vista a falta de organização e planejamento das nações para lidarem com uma possível pandemia, o vírus viajou o mundo atingindo quase 100% dos países.
O Covid-19 demonstrou-se, sobretudo na Itália, extremamente nocivo à população mais velha e o assunto relativo ao abandono tomou proporções tão extensas a ponto de ser qualificado pelos peritos da ONU como “alarmante e inaceitável”, condenando, sobretudo, a discriminação em decorrência da pandemia. O principal motivo que os levaram a atribuir este status ao assunto é o recorrente abandono de idosos em lares, seja após a morte, em decorrência da doença, seja em outras instituições por outros motivos (Notícias ao Minuto, Portugal, 23 de março de 2020).
A perita da ONU, a chilena Rosa Kornfeld-Matte, no mesmo comunicado, frisou que o distanciamento social recomendado em muitos países "não deve converter-se na exclusão social" dos idosos, aos quais devem ser facultados meios para conseguirem manter o contato com as respetivas famílias e amigos, por exemplo através da Internet.
Para Lisbeth Nielsen, diretora da divisão de pesquisa comportamental e social do National Institute of Aging, a solidão nem sempre tem a ver com o isolamento social, pois a solidão é um “sentimento de sofrimento por estar desconectado de outras pessoas, que é diferente do isolamento social que é simplesmente não estar próximo de outras pessoas ou não tendo conexões próximas" (DAVID, 2020).
Além de considerar “absolutamente criminoso” o ato de abandonar pessoas idosas, o alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville, completou: "Os idosos têm exatamente os mesmos direitos que os outros, mas são um grupo muito vulnerável. É muito importante dar atenção a estas pessoas, principalmente em casos em que vivem sozinhas, têm uma doença ou uma incapacidade ou sofrem de Alzheimer”.
As atenções se voltaram para esse assunto devido aos diversos escândalos envolvendo lares de idosos ao redor do mundo. O caso que indignou a todos ocorreu em abril de 2020 em um lar no Canadá onde os funcionários saíram do estabelecimento em Quebec deixando os internados sem comida, cuidados e higiene, levando à morte 31 (trinta e um) dos idosos internados, sendo encontrados, alguns vivos, por um grupo de militares e não por familiares preocupados ou pela administração do estabelecimento destinado a cuidar dessas pessoas.
O curioso é a repetição dessas condutas em outros países considerados desenvolvidos, como na Espanha onde funcionários abandonaram os lares deixando os idosos à própria sorte ou como em Portugal que de todas as vítimas registradas no país, 1/3 encontrava-se em lares (RIBEIRO, 2020).
O objetivo não é defender a tese de que todos os indivíduos que estão temporariamente ou não em lares são vítimas do abandono, mas sim alertar para o problema do abandono propriamente dito. A fragilidade emocional, física, psíquica de um idoso já é amplamente reconhecida e, por esse motivo, merece especial atenção, com ou sem pandemia, pois o abandono mata.
- O CAMINHO ATÉ A MUDANÇA DO CÓDIGO CIVIL
É exatamente pensando nesse assunto que Projetos de Lei surgem, muito em resposta à situação vivida no dia a dia por essa parcela da sociedade. Tapar o “buraco” e suprir as necessidades dos idosos que sofrem com o descaso é um dos objetivos de iniciativas como a do Projeto de Lei 3.145/15 no Brasil e da "Estratégia de Proteção ao Idoso" - RCM nº 63/2015, de 25 de agosto em Portugal.
Portugal está entre as 5 (cinco) nações mais envelhecidas do mundo. Cerca de 20% da população portuguesa tem mais de 65 (sessenta e cinco) anos e estima-se que em 2050 Portugal ocupará o posto de país mais envelhecido da União Europeia (PEREIRA, 2019) e no Brasil a realidade não é diferente. De acordo com uma matéria disponibilizada no jornal da USP, em 2030, o Brasil terá a quinta maior população mais idosa do mundo, ultrapassando o total de crianças entre zero e 14 anos (Jornal da USP, 2018). O aumento dessa população é um fenômeno mundial iniciado, a princípio, nos países desenvolvidos, em decorrência das grandes conquistas médicas, da melhoria nutricional, da elevação dos níveis de higiene pessoal, entre outros.
Em contrapartida, por mais espantoso que os dados possam parecer, um estudo realizado em 2015 pela Organização Internacional do Trabalho concluiu que Portugal está entre os países da Europa que mais abandona seus idosos. Para completar tal situação, a Organização Mundial de Saúde coloca Portugal entre os cinco piores países da Europa no quesito “tratamento da população envelhecida”.
Algumas casas de repouso relatam que próximo a feriados longos o número de abandono é maior, pois as famílias se programam para viajar sem incluir os mais idosos que acabam por ser levados para passar uma “temporada” nos asilos, mas nunca retornam para buscá-los; os asilos não conseguem estabelecer contato com os responsáveis, pois estes informam dados errados, isso quando não são literalmente abandonados como objetos na porta das instituições.
A iniciativa de proposta de lei que fora apresentada pelo “Centrão” tem como objetivo repreender todas as formas de violência, abuso, exploração, discriminação e criminalizar o abandono de idosos, incluindo no Código Civil português como uma das causas de exclusão sucessória, corroborando, assim, com o proposto no presente texto.
Parecido com a “Estratégia de Proteção ao Idoso”, mas não tão abrangente, está o Projeto de Lei 3.145/15 proposto pelo Deputado Vicentinho Júnior (PL-TO) que visa alterar o texto do Código Civil brasileiro no sentido de considerar a possibilidade de deserdação daqueles que abandonam. Com a mudança do Código Civil nesse sentido, abre-se a alternativa de excluir da sucessão, por meio de testamento, tanto filhos e netos que abandonam os pais e avós, quanto pais e avós que abandonaram filhos e netos.
Por mais que essa proposta pareça inovadora, o Estatuto do Idoso (Lei 10.471/03) já considera crime, com pena de detenção de seis meses a três anos e multa em seu art. 98, abandonar idosos em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou não prover suas necessidades básicas. Contudo, ainda que o Estatuto tipifique tais condutas como crimes, o Código Civil continua defendendo e garantindo, sem sentido nenhum, a essas pessoas a possibilidade de usufruir dos Art. 98. Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa bens do idoso que sofreu todo abandono e violência psicológica.
permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado:
Pena - detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa.
O Projeto de Lei fora analisado conclusivamente pelas Comissões de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, de Seguridade Social e Família, e de Constituição e Justiça e de Cidadania em junho de 2017 e em agosto de 2019 a Câmara dos Deputados aprovou a proposta e seguiu para aprovação do Senado onde hoje aguarda votação, assim como em Portugal.
Essa modificação propõe um equilíbrio no cenário de abandono sofrido por esses idosos e não a resolução do problema principal, pois para isso seria necessária a mudança comportamental das famílias. Entretanto, um assunto nunca abordado nunca é percebido pela sociedade. O problema deve ser debatido exigindo a reflexão das pessoas para que algum dia a situação de fato mude.
Um dos casos recentes que pode ser utilizado para fundamentar a necessidade de votação positiva em favor de projetos como esses – e de elaboração de outros mais completos –, que visam criminalizar e punir condutas de abandono, foi o ocorrido em Brasileia no Acre. A decisão da Vara Cível responsabilizou por abandono moral e afetivo inverso a herdeira do “de cujus” que durante sua velhice esteve internado em uma instituição de repouso.
O abandono foi caracterizado e como punição o juiz Gustavo Sirena determinou que 50%, apenas o determinado por lei, do patrimônio do idoso fosse destinado à filha e os outros 50% referentes à parte disponível fora encaminhada à instituição que cuidou dele até o último dia de vida (Site TJAC, notícias):
“Ao demonstrar ingratidão, desapreço ou ausência de sentimento afetivo para com o de cujus, submetendo-o ao desamparo e a solidão, nada mais justo que deferir o pleito em somente 50% do valor existente em conta bancária em favor da autora, proporção esta que a lei lhe garante no direito sucessório”, relatou o juiz Gustavo Sirena.
Casos de abandono como esse, e até piores, acontecem diariamente e julgamentos como esse demonstram o pedido de socorro que a legislação emite nas suas entrelinhas.
- Pontos controversos a serem observados
Nesse sentido, vale destacar a incoerência do Código Civil em não incluir o abandono de forma geral como causa de exclusão de herança apontando algumas questões como:
a) Inciso III, art. 1.962, CC – Autoriza a deserdação de descendente por ascendente se este mantiver relação ilícita com madrasta ou padrasto;
Esse inciso cai em grande polêmica, pois o adultério deixou de ser crime em 2005 e até hoje o Código Civil não foi atualizado. Entretanto, parte da doutrina continua entendendo essa expressão como práticas de atos sexuais, envolvimento afetivo e considerando-a como causa passível de deserdação; esse é o caso do doutrinador Paulo Nader que ignora a expressão “relações ilícitas” e conclui que por esta deve-se entender vínculo entre homem e mulher no âmbito da sexualidade, pois não somente cópula caracteriza a ilicitude, o namoro também, pois tais atos deteriora de forma insuportável as relações familiares (2016, p. 519).
É de consenso da maioria que essa causa tem respeitável espaço no instituto da exclusão, pois fere a confiança, traz transtornos ao testador, rompe com as bases familiares tornando, quase sempre, insuportável a convivência e é nesse caminho que o abandono toma para si mais legitimidade para figurar como uma das causas de exclusão da sucessão, pois os efeitos do abandono na vida de um idoso não são muito diferentes.
Afinal, como já dito, sensação de abandono, de solidão, de estorvo e de não ter mais serventia são sentimentos que corroem e degradam cada vez mais o indivíduo, trazendo, dentre muitos sentimentos, tristeza, rancor e depressão. Frente a isso, o que faz a traição ser mais corrosiva que o abandono?
b) Inciso IV, art. 1.962, CC - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade;
Neste inciso é perceptível que o legislador conseguiu entender a nocividade do abandono e chegou a contemplá-lo de certa forma, mas o restringiu à “alienação mental ou grave enfermidade”.
O abandono por si só é prejudicial à mente e ao corpo devido aos efeitos colaterais que são desencadeados no indivíduo e se tratando de um idoso, essa situação é agravada consideravelmente. Como já mencionado em outra oportunidade, há diversos estudos que afirmam a capacidade do cérebro de se curar e de desenvolver doenças, por isso a atenção com o emocional é tão importante.
A legítima por si só acaba por limitar a liberdade do testador. Nesse sentido, o instituto da exclusão deveria minimizar esse “desequilíbrio” a fim de evitar injustiças, mas muitas vezes essas possibilidades são tão restritivas que acabam por dificultar esse almejado “equilíbrio” protegendo os “maus” e garantindo a impunidade.
c) Art. 98, Lei 10.471/2003 – Estatuto do Idoso.
Como já tratado, é prevista multa e pena de reclusão de 6 meses a 3 anos a quem abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
Mais uma vez o abandono é considerado causa nociva e plausível de ser tutelada pelo ordenamento a ponto de prever pena de reclusão a quem cometer, mas não é considerado causa mais do que suficiente para ser invocada a exclusão como herdeiro; e ainda, em uma ação procedente de reparação de danos em face dos herdeiros, tendo o abandono como causa, ter apenas a possibilidade de multa como punição, será mesmo um meio justo de atingir o equilíbrio das relações?
Em outras palavras e se utilizando de um caso hipotético em que o filho é obrigado judicialmente a pagar indenização em detrimento do abandono de seu pai, qual sentido faz essa sanção se após a morte este dinheiro volta para o herdeiro em forma de herança? Isto é, considerando um idoso institucionalizado, será que este é capaz de usufruir do dinheiro que fez jus por anos de abandono ou este dinheiro ficará guardado e no final da vida deste será revertido aos filhos, aqueles que o abandonou?
É claro que em alguns casos esse dinheiro, frente a um abandono, pode ser de grande ajuda, já que os idosos necessitam de muito apoio financeiro, além do emocional, mas cabe a reflexão, pois é extremamente incoerente que tais medidas paliativas sejam aplicadas como forma de “tapar o buraco” que Estado insiste em não enxergar, seja por comodismo, seja por falta de vontade.
Além dessas situações controvertidas, há muitas outras. É inconcebível que o ordenamento jurídico brasileiro admita penalidades como multa ou detenção do familiar responsável pela falha da prestação de necessidades básicas ao idoso, perda de poder familiar do genitor que abandona seus filhos – incluindo a perda deste ao direito de suceder os bens dos filhos –, entre outros e não preveja a perda da herança em decorrência dessa conduta tão nociva.
Vale ressaltar a opinião do advogado Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, que diz que “um dos motivos pelos quais existe uma situação tão evidente, clara e nefasta de abandono está exatamente no fato de que a nossa lei prevê mais garantias do que punições e por isso a impunidade reina solta e tranquila” (IBDFAM, notícias, 2018).
CONCLUSÃO
Antigamente, a família era um núcleo rural onde a prole representava mão de obra. Com a Revolução Industrial as pessoas migraram do campo para as cidades e construíram conglomerados com residências cada vez menores e mais lotadas. Essa lotação logo representou uma maior aproximação e o aparecimento da figura do vínculo e a valorização do afeto no seio familiar foi evidente. Quer dizer que, desde então, cessado o afeto, está ruída a base segura de sustentação da família (FARIAS, p. 4).
Dessa forma, é fácil concluir que: (i) a família é núcleo essencial não só na formação, mas na qualidade de vida do indivíduo nela inserido; (ii) o abandono é nocivo a todas as pessoas, mas em especial aos idosos e crianças; (iii) o Direito é mutável e deve destinar todos os esforços para atualizar as normas à realidade atual, de forma a proteger todos.
Tendo em vista toda a problemática apresentada, torna-se inaceitável a possível negativa dos legisladores a esse Projeto de Lei, pois o assunto atende a todas as necessidades para que haja alteração; ou seja, há a presença de mudança estrutural/cultural associada à problemática a ser resolvida por meio de mudança legislativa.
Parafraseando o professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama “A hipótese não é um dever de amar, mas sim um dever de cuidar. E esse dever de cuidar ele é jurídico. (...)Então o não cumprimento do dever de cuidado caracteriza exatamente o fundamento da responsabilidade civil por abandono afetivo.” (GAMA, IBDFAM, notícia, 2019), ou seja, a sanção patrimonial e/ou a possibilidade de privação do herdeiro errante à herança não tem o objetivo de “comprar” o amor dos familiares ou alterar o sentimento de rejeição que inevitavelmente irá atingir o idoso, mas sim cumprir o papel do Direito na sociedade, que é reestabelecer a condição anterior das relações, quando possível, e quando não, amenizá-las.
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