Artigos
A Responsabilidade Civil por Alienação Afetiva - O terceiro ofensor na conjugalidade
A Responsabilidade Civil por Alienação Afetiva - O terceiro ofensor na conjugalidade
"I can live without money, but I cannot live without love.” (Judy Garland)
De acordo com a Lei de Alienação Afetiva da Carolina do Norte, após o fim de um casamento de 12 anos, Kevin Howard demandou contra o amante de sua ex-esposa e obteve em 2019 uma indenização de $750,000: “Eu acredito na santidade do casamento”. Segundo Kevin, “outras famílias devem avaliar as consequências não somente da quebra de um juramento religioso, independente de qual você profere, mas também as responsabilidades legais”. O réu no processo foi considerado um “homewrecker”, literalmente um “destruidor de lares” que intencionalmente seduziu a esposa alheia, tendo se prevalecido de uma amizade com o casal. Para a advogada do marido abandonado, o resultado do processo foi uma “vitória moral”, já que o seu cliente provavelmente nunca verá o dinheiro da indenização, apesar de que o demandado assumirá um ônus real em qualquer propriedade que titularizar e o seu crédito será afetado negativamente. A responsabilidade civil por alienação de afeto – “alienation of affections” – baseia-se em um ato ilícito que priva uma pessoa casada do afeto de seu cônjuge. A pretensão remonta a preceitos da antiga Common law Inglesa do século XVII e não se assenta propriamente na questão sexual, porém nos benefícios advindos do amor, companhia e conforto decorrentes do relacionamento conjugal. Com efeito, apesar da pretensão ser geralmente exercida em face da sedução pelo amante, também pode ser direcionada contra o sogro(a) ou parente que de forma exitosa persuadiu o cônjuge desertor a deixar o relacionamento conjugal. O cônjuge demandante precisa demonstrar que havia um lar feliz antes que o amante ou o terceiro "se interpusesse" e causasse o fracasso do relacionamento.
A Carolina do Norte é um dos 6 estados norte-americanos que ainda admitem a responsabilidade civil por alienação afetiva ou a “fratura marital”. Os outros são Hawaii, Mississippi, Novo México, Dakota do Sul e Utah. Trata-se de um remédio para compensar ofensas pessoais e cuja racionalidade consiste na proteção da promessa de monogamia que consubstancia a maioria dos arranjos matrimoniais. Os tribunais consideram que o delito promove um substancial interesse estatal. Em reforço, em uma análise bem ao gosto da “law and economics”, um relacionamento de longo prazo, como o casamento, não funcionará eficientemente sem sanções por má conduta, dos quais o adultério é um exemplo. Todavia, nos Estados Unidos há um embate constitucional contra esta indenização com fundamento em ofensas a 1. e 14. Emendas que garantem direito à intimidade da vida sexual e liberdade de expressão com o consentimento de outra pessoa adulta. Ademais, há uma crítica social sobre o impacto das referidas indenizações com uma forma de “extorsão legalizada”, ou seja, uma corrupção da própria essência do afeto, partindo da suposição de que uma mulher casada seja propriedade do marido. Os adversários desta modalidade de responsabilidade civil afirmam que ela não exerce função protetiva de casamentos, pois as pretensões são ajuizadas após a frustração do matrimônio e que os processos não são movidos contra o cônjuge, mas contra o terceiro participante. Some-se a isto o fato de que os casos se tornam públicos e os filhos das partes deles terão ciência, impactando em seu desenvolvimento psíquico e na construção das relações afetivas com os pais.
Esta discussão poderia encontrar uma racionalidade jurídica no direito brasileiro?
Para aqueles que concebem o casamento como uma espécie de contrato, não seria surpreendente a alegação de que a violação ao dever lateral de proteção se daria não apenas entre as partes (com base na boa fé objetiva), como quando um terceiro contribui para o descumprimento de uma relação obrigacional em curso, mediante a realização de um segundo contrato – incompatível com o primeiro –, frustrando as finalidades do credor, propiciando o inadimplemento e a consequente destruição da obrigação inicial. A tutela externa do crédito tem por objetivo, a proteção destes direitos contra ofensa por parte de terceiros, que impeçam o devedor de adimplir a obrigação assumida. Na linha da função social do contrato e da prevalência da eticidade, propugna-se que o terceiro ofensor seja responsabilizado não propriamente pela prestação convencionada, mas pela ofensa a dever de conduta nela consubstanciada. Afinal, os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse. Em princípio, os terceiros não têm o dever de conhecer a existência do crédito alheio, mas quando o conheçam na sua existência e na sua configuração mínima, então aquele dever geral de respeito concretiza-se, passa a configurar como um concreto dever de respeito, que se incrusta na esfera jurídica desse terceiro e limita então a sua liberdade de agir. O conhecimento do crédito constitui uma condição de oponibilidade efetiva do direito de crédito a terceiros. O terceiro ofende o crédito alheio através da realização de um segundo contrato com uma das partes. Cuida-se de uma interferência ilícita, pois a incompatibilidade entre os dois contratos induz à violação do negócio jurídico primitivo. O grande avanço na temática consiste na possibilidade de o ofendido pela quebra de seu contrato demandar diretamente contra o terceiro ofensor, mesmo não havendo avença entre eles. Há, inclusive, dispositivo específico sobre a tutela externa do crédito no Código Civil, em que o legislador estipula uma verdadeira pena privada contra o aliciador. Nesse sentido, o artigo 608: “Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 2 (dois) anos.”
“Devagar com o andor porque o santo é de barro”, já alerta o adágio popular. Ao contrário da vasta experiência do direito comparado no trato da interferência ilícita em contratos, no Brasil este tema é abordado de forma incipiente. É claro que nos negócios jurídicos de natureza patrimonial há certa promiscuidade em nossa vida social, tolerando-se a conduta dos “aliciadores”, que provocam o rompimento de relações contratuais celebradas em caráter de exclusividade. Profissionais abandonam contratos de prestação de serviços em andamento, ao som da primeira proposta, sem que o proponente (e pior, a ordem jurídica) perceba nesta conduta qualquer ofensa ética à força obrigatória dos contratos. Instigar alguém a violar um dever jurídico – sem que para tanto haja qualquer justificativa legítima – é um comportamento inaceitável e, se passivamente consentido, indutor de um sem-número de comportamentos ilícitos reiterados. Talvez o mais célebre dos eventos que traduza a conduta de um terceiro “cúmplice” localiza-se no “affair” Zeca Pagodinho. O famoso cantor de samba realizou um contrato de cessão de direito de uso de imagem com exclusividade para a Schincariol por um prazo de 12 meses para promover um novo produto em razão de sua popularidade. Em plena vigência do contrato e, tendo recebido o seu valor integral, o cantor abandonou a sua obrigação de fazer e participou de campanha publicitária de marca de cerveja concorrente em flagrante violação do pactuado. A Schincariol ingressou com demanda contra o cantor exigindo indenização por quebra do contrato e reparação pelo dano moral e a discussão se estendeu à órbita do terceiro ofensor. A questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (REsp 1316149/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3–T, DJe 27.6.2014). Todavia, mesmo no campo contratual clássico é indispensável o cuidado com a distinção entre as situações de grave interferência delitual nas relações negociais – suscetível de conduzir ao colapso o ambiente de confiança entre os parceiros – e uma situação de interferência contratual benigna e introduzida por meios lícitos, em que a oferta de condições contratuais mais vantajosas é própria da concorrência. Uma repressão desenfreada é muitas vezes anticompetitiva e ineficiente por paralisar uma via normal para a promoção de soluções mais eficientes no seio de um mercado.
Aliás, nas jurisdições da “common law” também se aplica a diferença entre o “breach of contract” (quebra do contrato) para a responsabilidade baseada nos “torts” (ilícitos extracontratuais), levando-se em consideração não apenas a violação do contrato, porém outras circunstâncias que poderiam legitimar a conduta do suposto “terceiro predador”. O filme “O informante” é centrado na tentativa de obtenção de um “furo de reportagem” mediante uma entrevista de um ex-executivo de empresa de cigarro para revelar em emissora nacional de televisão fatos estarrecedores sobre componentes utilizados na produção do fumo. Instaura-se conflito entre a postura ética de revelar questão de saúde pública à sociedade americana em detrimento do contrato de sigilo que o executivo havia firmado com a sua empregadora em troca de benefícios financeiros que compensavam a sua saída da empresa. A emissora atuaria como terceiro ofensor ao persuadir o “informante” a quebrar o contrato, utilizando como argumento a gravidade dos fatos em sigilo. No exemplo reproduzido em Hollywood (com base em evento real), o estímulo oferecido ao devedor para o descumprimento da prestação obrigacional foi qualificado pelo interesse público no conhecimento de fatos relevantes ligados à tutela da saúde, justificando-se a conduta. Por isto, não estarão no mesmo patamar o sindicato que estimula os empregados de uma sociedade comercial à greve e o concorrente mercantil que apoia a referida paralisação para arrasar economicamente o adversário; a associação que conclama os partícipes a interromperem contratos em razão de alta injustificada de preços do fornecedor e a que faz isso para extorquir vantagem indevida.
Afinal, o relacionamento conjugal cria um "interesse específico" que possa ser protegido pela responsabilidade civil contra violações de terceiros? Evidentemente, a lei deve proteger os relacionamentos, porém processar terceiros por danos conjugais não ajuda nesse objetivo. O casamento não deve impor nenhuma obrigação a terceiros e a lei deve evitar transmitir qualquer mensagem moral sobre esse assunto por meio de regulamentação ou interpretação das regras legais. Justamente pela percepção contemporânea de que a axiologia que permeia as várias composições familiares é centrada no afeto, na proteção da integridade psicofísica dos membros da família (e não só do par conjugal), bem como na promoção da liberdade, desenvolvimento e exercício das situações existenciais, fatalmente não se estenderá ao direito brasileiro a responsabilidade civil por alienação de afeto para os casos em que de um adultério resultou a dissolução da conjugalidade. Apesar da “tentadora” hermenêutica do artigo 1513 do Código Civil (“É defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”), no pretenso sentido de que a norma encamparia como ilícito extracontratual, o ato de interferência do amante que frustre a vida familiar, parece-nos incabível resgatar a figura do terceiro ofensor para as situações existenciais, quando o intuito do cônjuge abandonado é pleitear reparação em face daquele que pretensamente teria “aliciado” o outro cônjuge. Prevalece na doutrina brasileira a aplicação do princípio da subsidiariedade (consagrado pela Corte Constitucional da Alemanha), como mínima interferência estatal no que concerne à privacidade da família e a autodeterminação de seus componentes. Aliás, em “leading case” sobre a hipótese, o Superior Tribunal de Justiça considerou que “em que pese o alto grau de reprovabilidade da conduta daquele que se envolve com pessoa casada, o ‘cúmplice’ da esposa infiel não é solidariamente responsável quanto a eventual indenização ao marido traído, pois esse fato não constitui ilícito civil ou penal, diante da falta de contrato ou lei obrigando terceiro estranho à relação conjugal a zelar pela incolumidade do casamento alheio ou a revelar a quem quer que seja a existência de relação extraconjugal firmada com sua amante” (REsp 922.462-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 4.4.2013
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM