Direito de Família na Mídia
Filhos e irmãos de criação: parentesco por afetividade e sua repercussão no Direito Eleitoral.
20/01/2005 Fonte: IBDFAM MaranhãoRESUMO: 1. Os filhos do afeto 2. O alcance do artigo 1.593 do CC 3. Repercussão no Direito Eleitoral 4. Conclusão
Lourival Serejo (IBDFAM-MA)
1. Os filhos do afeto
A figura do filho de criação sempre esteve presente em nossa cultura e em nossas famílias. O termo “criação” desponta aqui como afeição, adoção, aceitação, sustento e guarda.
Pode ser um parente distante ou o filho da empregada de confiança, ou um órfão, o filho da comadre, de um amigo pobre, de qualquer origem, enfim. Basta que se faça a opção de criar e ele será ungido com os cuidados de um filho.
Ao longo do tempo, principalmente em se tratando de uma comunidade interiorana, esse filho passa a ser conhecido na cidade inteira, podendo até receber um apelido que o identifique com o seu pai ou com sua mãe, como José de Maurício, Maria de Creuza, ou qualquer outro indicativo da família que o abriga.
Em casa, ele recebe todo o afeto que é dedicado aos filhos consangüíneos como amor, assistência material, lazer, tudo.O que falta, então, para que o filho de criação seja oficialmente reconhecido como filho? Apenas o ato de adoção legal, pois a adoção de fato está consumada no dia-a-dia, por anos e anos de convivência.
O mais importante é que os pais adotivos, que fizeram livremente a opção de receber esse filho, mantêm tal vínculo até a morte. Se o tratamento que é dispensado ao filho consangüíneo é o mesmo dado ao seu irmão de criação, não há como negar essa relação filial e admitir as suas conseqüências, notadamente sob a perspectiva da igualdade constitucional.
Com razão Rolf Madaleno quando leciona:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. [1]
Nessa mesma linha de entendimento, Maria Christina de Almeida afirma: “o elo entre pais e filhos é, principalmente, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico.” [2]
2. O alcance do artigo 1.593 do Código Civil
No ato de aplicar a lei, deve o intérprete buscar o contexto da norma em consonância com as peculiaridades do caso concreto. Então, com apoio na lógica do razoável, encontrará a conclusão mais justa, que corresponda à efetiva aplicação da lei e atenda ao anseio de justiça.
Diz o artigo 1.593 do Código Civil: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem.
A expressão “ou outra origem” tem a mesma natureza de tantas outras que caracterizam o novo Código Civil, onde se encontram inúmeras expressões de conteúdo jurídico indeterminado que desafiam o intérprete para definir o seu alcance.
Nem se pode objetar alegando que a expressão “outra origem” significa somente adoção, como constava da redação original do artigo. No momento em que foi substituída pelo legislador, pretendeu-se que a nova redação tivesse uma abrangência maior que a adoção, para alcançar também os filhos da reprodução heteróloga, os filhos de criação etc.
É sabido que a afetividade afirmou-se hoje como o paradigma do amor autêntico que orienta todas as questões de Direito de Família.
Em relação aos filhos de criação é coerente afirmar-se que se trata de um parentesco socioafetivo, devendo esta idéia de afetividade abrigar-se na expressão “outra origem” do art. 1.593, do Código Civil.
Ao juiz caberá concretizar essa norma, com fundamento nos princípios constitucionais e nos valores sociais da comunidade.A doutrina tem contribuído muito bem para a elucidação da mens legis do art. 1.593, no que pertine ao alcance da idéia de parentesco. Paulo Luiz Netto Lôbo entende que “constituem parentescos de ‘outra origem’ os parentescos por afinidade e por adoção.”[3]
Sílvio Rodrigues faz a seguinte análise do artigo em referência:“Pelo artigo 1.593, será natural o parentesco consangüíneo ou de outra origem, assim acrescentado no texto quando da redação final elaborada pela Câmara dos Deputados, para contemplar a situação da inseminação artificial, em que o próprio Código também considera a paternidade presumida, com resultado idêntico à filiação consangüínea (art.1.597)”. [4]
Em comentários ao referido artigo, em obra coordenada por Heloísa Maria Daltro Leite deparamo-nos com esta conclusão mais aberta, que se direciona para nosso propósito:“Tem-se, assim, no art. 1.593 do novo Código Civil, elementos para a construção de um conceito jurídico de parentesco em sentido amplo, no qual o consentimento, o afeto e a responsabilidade terão papel relevante, numa perspectiva interdisciplinar.” [5]
3. Repercussão no Direito Eleitoral
Em julgamento feito pelo TRE do Maranhão, do qual fizemos parte, tivemos oportunidade de ser voto vencido no julgamento de um recurso de registro de candidatura em que foi levantada a inelegibilidade de uma candidata que era irmã de criação do atual prefeito de um município, em seu segundo mandato.
Na ocasião, argumentamos que se tratava de um fato que não podia ser negado, principalmente depois da instrução que fora feita, considerando-se a realidade de uma cidade pequena do interior, onde a candidata tinha a fama e o tratamento de filha de criação dos pais do prefeito, portanto, irmã deste.
Neste caso, tentamos convencer que estávamos diante de um novo parentesco, o parentesco por afetividade, pela ocorrência da adoção de fato que se estabelecera, a posse de estado de filho, o que não podia deixar de ser considerado pelo Direito Eleitoral, em que pese a teoria das inelegibilidades não admitir interpretação extensiva.
Aplicar-se-ia, então, uma interpretação teleológica, recomendada pelo artigo 219 do CE, fortalecida pela inadmissibilidade de perpetuação da mesma família no poder, conforme reiteradas decisões do Tribunal Superior Eleitoral. O julgamento ficou resumido na ementa do acórdão nº 5.935 (TRE– MA), assim expresso:
Eleições 2004. Recurso inominado. Adoção de fato. Inelegibilidade. Descaracterização. Recurso conhecido e desprovido.
– Adoção meramente de fato não rende ensejo à inelegibilidade de que trata o art. 14, § 7º, da CF.
– Recurso conhecido e desprovido.
A jurisprudência do TSE tem um precedente com referência à adoção de fato, em que o ministro relator rejeitou a ocorrência da inelegibilidade, em acórdão que teve a seguinte ementa:
Registro de candidatura. Parentesco. Adoção. A adoção meramente de fato não enseja a inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Recurso não conhecido.(Acórdão nº 13.068. Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 11.3.1997)
A Súmula nº 7, do TSE tem o seguinte teor: É inelegível para o cargo de prefeito a irmã da concubina do atual titular do mandato. Posteriormente, essa súmula foi revogada pela Resolução nº 20.920/TSE, tendo em vista decisão do STF. Entretanto, em votos recentes, sua incidência foi praticamente repristinada, após a vigência do novo Código Civil, que trouxe a previsão legal (art. 1.595) para sustentar a incidência que antes não havia (Cf. Resolução nº 21.376, de 1º.04.2004, Rel. Min. Carlos Madeira), pois o código anterior não reconhecia a união estável.
Ora, esse mesmo argumento teleológico que levou o TSE a adotar a Súmula nº 7, pode ser usado para reconhecer a inelegibilidade do irmão de criação. Se o cunhadio, em uma relação de fato, gera a inelegibilidade, a irmandade também deve gerar esse mesmo obstáculo à elegiblidade, por se tratar, em ambos os casos, de parentes colaterais em 2º grau.
Depois do precedente de Viseu (PA), em que o TSE reconheceu a existência de união estável numa relação homoafetiva, com certeza, aquele tribunal modificará sua posição em relação à adoção de fato.
4. Conclusão
Não é possível deixar-se no leito da indiferença uma relação de afeto tão forte como é aquela que existe entre filhos e irmãos de criação.
O Direito, como relação intersubjetiva, não pode desconsiderar que os efeitos culturais da filiação por afeto são tão fortes quanto os da consangüínea, ou, em certos casos, até superam os efeitos desta última.
O conceito jurídico indeterminado que se encontra na expressão outra origem, do art. 1.593 do CC deve ter sua adequação aos casos concretos em que se constatam relações de afeto como autênticas manifestações de parentalidade.
No campo do Direito Eleitoral, quando este busca no Direito de Família elementos para corroborar seus julgamentos, já é tempo de considerar-se o afeto com força suficiente para influenciar na teoria da inelegibilidade, a exemplo do avanço protagonizado pelo caso de Viseu (PA). A parentalidade socioafetiva é uma realidade que não poder ser mais desconhecida.
[1] Madaleno, Rolf. Filhos do coração. In: Revista Brasileira de direito de família, n. 23, p.22.
[2] Almeida, Maria Christina de. Paternidade biológica, socioafetiva, investigação de paternidade e DNA. In: Família e Cidadania. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família, p. 459.
[3] Lôbo, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado. Vol. XVI. São Paulo: Atlhas, 2003.
[4] Rodrigues, Sílvio. Direito Civil. Vol. 6. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, p.318.
[5] Amin, Andréa Rodrigues [et. Al] O novo código civil: livro IV do Direito de família.Coord. Heloísa M. Daltro Leite. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 174).