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Os direitos sucessórios na união estável e o respeito às situações consolidadas
09/07/2018 Fonte: ConjurPor Mário Luiz Delgado
A análise das decisões do STF que declararam a inconstitucionalidade da diferenciação das regras de concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro (CC, artigo 1.790) e mandaram aplicar à união estável o artigo 1.829 do CC/2002, conduz o intérprete por um caminho de dúvidas e de insegurança, pois diversas questões remanescem obscuras, propiciando interpretações muitas vezes colidentes.
Uma dessas questões relaciona-se à modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790. Com relação aos recursos extraordinários 878.694 e 646.721, o STF decidiu que “o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública”[1].
Destaca-se, inicialmente, a atecnia da modulação proposta, por se afastar dos parâmetros tradicionais e universais do direito intertemporal, a impor a regência da matéria sucessória pela lei vigente à data da abertura da sucessão, de modo a considerar como odiosa retroatividade a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, ou seja, às sucessões já abertas em data anterior, pouco importando o estágio processual do inventário.
A doutrina tradicional, em litania uníssona, afirma ser pela lei vigente no tempo da abertura da sucessão, “que, em geral, se regulam as sucessões. Essa lei dirá se o domínio e a posse da herança se transmitem aos herdeiros legítimos e testamentários, pelo só fato do falecimento do de cujus, fixará a quota hereditária disponível e determinará a capacidade sucessória”[2].
Ou seja, as novas regras (e também uma nova interpretação) só valem para as sucessões abertas após a entrada em vigor da lei posterior ou da mudança jurisprudencial[3]. O momento exato em que ocorrido o evento morte constituirá a linha divisória entre os dois sistemas. Assim, ainda que a lei ou interpretação posterior tenha admitido outros herdeiros à sucessão, apenas aqueles que já o eram à data do óbito partilharão a herança.
Nas sucessões abertas antes da declaração de inconstitucionalidade, quando a norma então vigente (artigo 1.790) impunha a partilha dos bens particulares exclusivamente entre os descendentes, excluindo-se o companheiro sobrevivente, essa é a regra que deveria prevalecer, em respeito à situação jurídica dos demais herdeiros, que se tornou concreta com a abertura da sucessão. Roubier distingue as situações jurídicas concretas em oposição às situações jurídicas abstratas. Estas seriam próprias de “uma categoria mais ou menos numerosa de pessoas, genericamente integradas num quadro ou grupo social pela lei, que lhes será aplicável quando se realize certo ato ou fato jurídico”[4].
Praticado o ato ou realizado o fato, a situação jurídica de abstrata passa a concreta. Quando falamos que João é herdeiro de seu pai, Pedro, estando este ainda vivo, estamos nos referindo à situação jurídica abstrata de herdeiro, que se transmudará em uma situação jurídica concreta após a abertura da sucessão com o óbito de Pedro. Antes do óbito, João será titular de uma mera expectativa de direito. Após a morte de Pedro, torna-se titular efetivo dos direitos e deveres que a lei vigente à data da abertura da sucessão lhe conferir e/ou impuser, os quais não poderão, a princípio, serem suprimidos por lei posterior.
A data de publicação da jurisprudência inovadora, que altera jurisprudência anterior, especialmente nos casos de repercussão geral, constitui linha divisória intransponível. Todos os atos e fatos pretéritos, praticados sob a vigência do precedente superado, deveriam obrigatoriamente estar protegidos e não poderiam ser atingidos pela nova decisão[5].
De qualquer forma, retomando a análise da modulação realizada pelo STF, temos que a referência ao “trânsito em julgado da sentença de partilha” não pode ser interpretada de forma literal e absoluta, sob pena de atingir um universo de outras situações já consolidadas, independentemente da conclusão do processo de inventário. Basta citar, por exemplo, os negócios jurídicos comumente utilizados nas operações de planejamento sucessório, especialmente contratos de doação e de constituição de holdings patrimoniais, por meio dos quais se promove a antecipação em vida dos quinhões hereditários. Ou ainda a partilha em vida, prevista no artigo 2.018 do Código Civil. Muitos desses atos, realizados antes da decisão do STF, levaram em conta a redação então vigente do artigo 1.790, a excluir, expressamente, a concorrência sucessória do companheiro sobrevivente com os descendentes e ascendentes, no tocante aos bens particulares do autor da herança. Obedecidos os requisitos de validade vigentes quando de sua celebração, tornaram-se “atos jurídicos perfeitos”, fora do alcance, tanto da lei nova como da nova orientação jurisprudencial.
Portanto, não se poderia admitir, sob pena de ferir de morte a própria segurança jurídica que a modulação quis preservar, que tais atos e negócios jurídicos sejam atingidos pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, mesmo que o processo de inventário esteja em curso ou que ainda não tenha sido lavrada escritura de partilha.
Em outras palavras, podem-se divisar diversas outras situações consolidadas que ficarão ao abrigo da declaração de inconstitucionalidade, mesmo antes de lavrada a escritura ou proferida a sentença de partilha nos autos do inventário. São relações jurídicas que se constituíram e se consolidaram à luz da lei censurada, de modo que a retroação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acarretaria prejuízos de difícil reparação aos jurisdicionados e à sociedade.
A decisão do STF pretendeu resguardar as situações já consolidadas ou estabilizadas e foi esse, precisamente, o sentido da referência feita ao “trânsito em julgado das sentenças de partilha”. O que se quis dizer, ou se preferirmos, o que se quis modular, in concreto, foi a proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas.
É de se afastar, pois, qualquer pretensão de exegese literal da referência ao “trânsito em julgado da sentença de partilha”, de modo a prejudicar situações jurídicas completamente idênticas àquelas que a modulação quis preservar. A interpretação deve ser necessariamente teleológica, de que resulta aplicar-se a modulação a casos que, embora aparentemente não mencionados no texto da decisão, estão abrangidos no seu espírito.
Os elementos lógico e sistemático devem fazer o espírito, a ratio, da decisão de modulação prevalecer sobre a expressão literal da fórmula, ampliando a sua aplicação a hipóteses que a redação do acórdão parece não abranger, mas que indubitavelmente fazem parte do seu conteúdo, segundo aqueles elementos. Assim, apesar de não incluídas expressamente as situações consolidadas no dispositivo modulador, cabe ao intérprete e aplicador fazê-lo, lendo subjacentemente que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 será “aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública” quando não prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, o fato consumado e as situações consolidadas, para que se possa compatibilizar a decisão com a cláusula pétrea constitucional do inciso XXXVI do artigo 5º .
Em resumo, a modulação dos efeitos da decisão do STF não pode ser aplicada “em tiras”, isoladamente, interpretação meramente literal, fora de seu contexto sistemático. As consequências seriam nefastas à própria efetividade das decisões do STF, à medida em que proporcionaria o enfraquecimento de sua autoridade, pela vulneração do princípio da segurança jurídica, ante a desnaturação dos institutos do ato jurídico perfeito e do direito adquirido e violação do princípio da irretroatividade, veiculado em cláusula pétrea.