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Violência Doméstica Contra a Mulher e As Falhas da Tipologia
As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher estão definidas no artigo 7o., e seus incisos, da Lei Maria da Penha, como: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Essas definições não contêm tipos penais, elas apenas delineam situações que implicam em violência doméstica e familiar contra a mulher, para todos os fins da Lei Maria da Penha, inclusive para a agilização das medidas protetivas às vítimas.
Essa é uma das críticas feitas à Lei Maria da Penha.
Ela não criou nenhum tipo penal novo.
Então, atualmente, para fins criminais, se integra a Lei Maria da Penha aos tipos penais já existentes no Código Penal e na Lei de Contravenções Penais, sendo que a violência doméstica aparece como causa agravante, no artigo 61, II, f.
O problema é que a Lei Maria da Penha é uma lei recentíssima, de 2006, cheia de conceitos novos absorvidos da normativa internacional, que, para fins penais, está sendo integrada a legislações de 1940 e 1941.
É praticamente o casamento de um senhor de bengala com uma debutante!
Esse descompasso fica evidente nas dificuldades que temos hoje para enquadrar casos atuais de violência doméstica nos tipos penais existentes.
Esta é a abordagem deste artigo: as falhas da tipologia, as lacunas jurídicas do artigo 7o, e seus incisos, da Lei Maria da Penha, nos quais foi prevista a proteção à mulher, porém, sem a existência de tipos penais adequados, que fossem capazes de englobar os novos conceitos introduzidos no ordenamento jurídico pela Lei Maria da Penha.
O Brasil está muito atrasado nesse ponto.
Enquanto aqui não temos tipos penais adequados aos novos conceitos de violência doméstica, os Estados Unidos, com toda a bagunça do federalismo americano, têm e discutem esses tipos penais há pelo menos 25 anos.
Vamos às lacunas da VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA (art. 7o, II), que é a que mais acontece, porém a que fica mais invisibilizada e por isso não tem uma resposta adequada da sociedade.
A violência psicológica hoje é definida penalmente pelos crimes de ameaça e injúria e pelo delito de perturbação da tranquilidade (artigo 65, da Lei de Contravenções Penais).
Ocorre que os tipos penais existentes são insuficientes para abarcar a moderna noção de ofensa psicológica, mundialmente desenvolvida na normativa internacional, e que já consta das legislações americana e francesa.
Com efeito, ela aparece no Código Penal francês, desde 2010, e no VAWA - Violence Against Women Act, desde 1994 (pela previsão do crime federal de cruzar as fronteiras estaduais com o objetivo de “stalk” ou “harass” a parceira. Isso se dá quando a mulher se muda de Estado e o sujeito vai atrás, perseguindo ou assediando).
O que seria a ofensa psicológica?
É aquele tipo de assédio praticado ao longo dos anos nas relações afetivas, de forma constante e repetida, e com tamanha eficiência, que pode levar a um transtorno psicológico da vítima, até mesmo a um quadro psiquiátrico irreversível. Não há norma penal específica para esse caso na legislação brasileira.
De fato, há condutas que um marido controlador pode praticar que não tem tipo penal adequado na legislação, como, por exemplo, o marido que não deixa a mulher sair de casa - não na hipótese de cárcere privado, que já é crime, mas no sentido de exercer um controle coercitivo sobre a vida da mulher -, que vigia seus passos, a isola socialmente, impede o seu contato com amigos e familiares. É o sujeito que controla a renda familiar, não deixa a mulher estudar ou trabalhar, nega a ela a possibilidade de autonomia financeira.
O marido que reserva adjetivos depreciativos à mulher, a chama cotidianamente de burra, feia, gorda, bruxa, que reúne os amigos em casa e humilha a mulher na frente deles e dos filhos.
Qual o objetivo desse marido?
O objetivo dele é minar a autoestima da mulher, intimidá-la, subjugá-la mesmo, para que ela não consiga reagir e continue se submetendo ao controle dele.
Essa violência psicológica afeta não somente a mulher, mas tem consequências diretas no seu meio familiar, pois os filhos crescem testemunhando esse comportamento abusivo, o que aumenta a possibilidade de reproduzirem o mesmo comportamento no futuro.
Além da ofensa psicológica, também não há previsão legal específica para os casos de stalking, quando o sujeito persegue deliberadamente a mulher, enciumado. Esses casos são muito comuns no fim dos relacionamentos afetivos. O homem segue e vigia a mulher em casa, na rua, na escola, importuna no local de trabalho, liga várias vezes em horários impróprios, na casa, no trabalho e no celular, entope a caixa de emails, manda milhões de mensagens, faz posts em redes sociais, etc.
Enfim, ele age de forma insistente e desagradável, muito além do tolerável.
Essa conduta é enquadrada hoje no delito de perturbação da tranquilidade, artigo 65, da Lei de Contravenções Penais, cuja pena, porém, é branda demais para a gravidade da conduta: prisão simples de 15 dias a 2 meses.
Vejam que a solução penal disponibilizada pelo legislador não é proporcional aos transtornos psicológicos sofridos pela vítima de "stalking", porque, mesmo que os atos isolados pareçam de pequena monta ou até inofensivos, a “ação global de perseguição” é altamente danosa em seu conjunto e persistência.
Para sanar essa lacuna em situações de violência psicológica, há um Projeto de Lei em trâmite no Congresso Nacional, cuja redação surgiu de uma parceria do Ministério Público do Mato Grosso do Sul com o Deputado Federal Fábio Trad, tipificando o crime de “assédio psicológico”, com a pena proposta de 2 a 6 anos de reclusão.
Dentro desse tipo penal, há várias modalidades de abuso psicológico, inclusive a modalidade de “maus tratos a animal doméstico” ou “pet abuse” (quando o homem abusa do animal doméstico da mulher para exercer um controle coercitivo sobre ela, mostrar do que é capaz).
Apesar de parecer exótica essa modalidade, nos Estados Unidos existem inúmeros estudos correlacionando o pet abuse à violência doméstica, inclusive com autorização para as Cortes incluírem os animais de estimação nas medidas protetivas. Nos EUA é um clássico há 25 anos. Aqui no Brasil nem mesmo é discutido.
No caso da violência psicológica, o modelo penal brasileiro favorece a impunidade.
Isso porque a lei brasileira fala que crimes como a ameaça são de ação pública condicionada e crimes como a injúria e difamação são de ação penal privada. Esse modelo acaba inviabilizando a punição dos crimes.
No Brasil, mesmo que as injúrias sejam reiteradas trata-se de crime de ação penal privada. E o problema com isso é que o ônus fica todo com a vítima, que tem que procurar um advogado e ajuizar a queixa-crime em seis meses. E geralmente as vítimas não são orientadas a fazer isso nas Delegacias de Polícia, a procurar as Defensorias Públicas ou um advogado particular, para ajuizar a queixa-crime. E a decadência é implacável.
Já os sistemas europeus têm um tipo penal específico para casos de violência doméstica e isso facilita a incriminação de condutas de violência psicológica.
As ameaças em contexto de violência contra as mulheres são todas de ação incondicionada, ou seja, não dependem da representação da vítima para serem processadas, principalmente no caso de ameaça de morte.
No caso das injúrias, quando há uma sequência reiterada, o processo também passa a ser considerado de ação pública incondicionada.* [1]
Vejam que o Brasil precisa de tipos penais mais modernos e adequados, para não deixar esse ônus nas mãos das vítimas.
Vamos agora às deficiências da tipologia quanto à VIOLÊNCIA MORAL, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria contra a mulher.
Por óbvio, vem sendo enquadrada nos clássicos crimes contra a honra do Código Penal, de calúnia, difamação e injúria. Todos crimes privados, mesmo na LMP.
Esses tipos penais em vigor são insuficientes para abarcar a moderna noção de ofensa moral e psicológica.
Principalmente se pensarmos nos casos de vingança pornográfica, que consiste no compartilhamento pela internet de fotos e videos íntimos com o propósito de causar a humilhação extrema da vítima.
Esse material é muitas vezes capturado e armazenado com o consentimento da parceira, que nutria, porém, a expectativa de privacidade sexual. O ex viola essa confiança e divulga o material na internet, geralmente por motivo de humilhação ou vingança.
Como o conteúdo disseminado na internet é de propagação fácil e incontrolável, ele causa danos graves e, por vezes, irreparáveis às vítimas, como demissão, reprovação escolar, banimento social, mudança de cidade e até o desenvolvimento de doenças psíquicas que podem levar à depressão e ao suicídio, especialmente entre as mais jovens.
Em 2014, três jovens brasileiras se suicidaram por conta de vingança pornográfica.
A legislação atual permite o enquadramento dessa conduta sob a ótica da responsabilidade civil (dano material e moral) e criminal.
Na esfera penal, como não tem tipo penal específico, essa conduta acaba sendo enquadrada no crime de difamação, que tem 2 problemas.
Primeiro, possui uma pena branda demais para a gravidade da conduta (detenção de 3 meses a 1 ano, e multa).
Segundo, o tipo penal é inadequado para a vingança pornográfica. De fato, prosseguir tipificando essa conduta como difamatória, vale dizer atentatória à honra, é reforçar o viés machista com que a vida sexual da mulher é julgada no meio social.
Ela está difamada por quê? Por que estava fazendo sexo com o namorado? Se for por isso não deveria, pois isso não desqualifica a honra de mulher nenhuma.
Vejam que o bem jurídico a se proteger não é a honra da vítima, mas, sim, a sua integridade psicológica, por ter tido sua intimidade e privacidade violadas e expostas à apreciação pública na rede, onde não se tem qualquer controle da disseminação.
Para resolver a lacuna penal com relação à vingança pornográfica, há um outro Projeto de Lei em trâmite no Congresso, cuja redação também nasceu da parceria entre o Ministério Público do Mato Grosso do Sul e o Deputado Fábio Trad, que cria o novo tipo penal de “violação de privacidade”.
A pena proposta é de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão, mais compatível com a gravidade da conduta e a extensão dos danos causados às vítimas.
Alguns questionam se a “Lei Carolina Dieckman”, aprovada em 2012, serviria para enquadrar a vingança pornográfica.
Não serviria. Aquela lei tipificou a conduta de quem invade computador alheio e subtrai dados, para obter vantagem ilícita. Porém, ela não previu especificamente a conduta de “vingança pornográfica”, quando não há a invasão e subtração das imagens, mas sim a veiculação sem consentimento.
Com relação à esfera cível da vingança pornográfica, é de importância crucial para que o agressor sinta o desvalor do seu comportamento.
Sobretudo porque a imputação penal atual, pelo crime de difamação, é branda demais, restando somente à vítima buscar a responsabilização civil do agressor, por meio da ação de indenização por dano moral.
Apesar do dano moral ser extenso e inegável a quem tem sua imagem e intimidade assim expostas na internet, principalmente às mulheres, ainda temos algumas decisões que invertem a culpa nesses casos e julgam a moral da mulher, ao invés de punir efetivamente o agressor.
Em um caso mineiro recente - que deixo à consideração e reflexão dos leitores, pois não me cabe rejulgar o caso -, uma moça processou o ex-namorado por ele ter divulgado fotos íntimas dela para amigos e familiares.
Em primeira instância, ele foi condenado a pagar uma indenização por dano moral de R$ 100 mil.
O réu recorreu para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e reduziu a indenização de R$ 100 mil para R$ 5 mil.
O relator do processo já havia proposto a redução do valor do dano moral para R$ 75 mil, mas reforçou que não se poderia considerar a vítima culpada pela situação.
Porém, o revisor discordou e reduziu a indenização para R$ 5 mil. Segundo ele, por ter ousado posar daquela forma, em um relacionamento curto (de 1 ano) e à distância, a moça provava que tinha um “conceito moral diferenciado, liberal”, que “não cuidava da própria moral”.
Esse foi o voto vencedor. Um julgamento ocorrido recentemente, em 10 de junho de 2014.
Passemos agora às deficiências da legislação quanto à VIOLÊNCIA PATRIMONIAL, entendida como qualquer conduta que implique em reter, subtrair ou destruir, total ou parcialmente, os bens da mulher.
É certo dizer que violência patrimonial direta é representada pelos crimes de dano, furto, apropriação indébita, estelionato, roubo, incêndio e supressão de documento, com as limitações do artigo 181, do Código Penal.
Vamos a um caso prático de violência patrimonial: o marido e a mulher estavam separados de fato, pois ele tinha sido afastado do lar por medida protetiva. Uma certa madrugada, ele passou na frente da casa e viu as roupas de outro homem penduradas no varal. Ele surtou, invadiu a casa, rasgou as roupas da mulher e do outro homem, quebrou o celular dela, a TV, e destruiu todos os documentos que encontrou à vista.
Ora, rasgar as roupas, quebrar a TV e o celular da mulher, é um crime de dano, de ação penal privada.
Então, se a vítima não procura a Defensoria Pública ou um advogado particular e ajuíza a queixa-crime em 6 seis meses, extingue-se a punibilidade em razão da decadência.
O problema é que, em casos de ação penal privada, as vítimas geralmente não são orientadas a fazer isso, nas Delegacias de Polícia. Conclusão: o modelo favorece a impunidade do agressor.
Porém, o problema mais sério que temos na violência patrimonial é outro. Diz respeito às imunidades absoluta e relativa dos artigos 181 e 182, do Código Penal.
Para preservar os laços afetivos existentes entre marido e mulher, o Código Penal optou por isentar de pena o cônjuge que comete crimes patrimoniais dentro da sociedade conjugal, desde que sem violência ou grave ameaça.
Assim, crimes patrimoniais que, de regra, são de ação pública incondicionada como furto, apropriação indébita e estelionato, ou não se aplicam ao casal, quando ele estiver junto, ou se transformam em ação pública condicionada à representação, quando o casal estiver separado.
Ou seja, foi chancelado o furto nas relações afetivas.
Após a superveniência da Lei Maria da Penha, essa questão das imunidades passou a ser polêmica: alguns doutrinadores começaram a questionar se a Lei Maria da Penha, dentro do seu espírito protetivo à mulher e por ser uma lei especial e posterior, não teria afastado a incidência dessas imunidades do Código Penal.
Outros entendem que, por uma questão de política criminal e de proteção à família, as imunidades devem ser mantidas.
No meu entender, devem ser afastadas, sim.
Admitir o contrário seria reduzir a letra morta o artigo 7o, inciso IV, da LMP, que instituiu a violência patrimonial, pois sempre que o marido subtraísse algo da mulher no contexto doméstico, faria jus a alguma imunidade legal.
Seria reduzir a letra morta o artigo 226, parágrafo 8o, da Constituição Federal, que determina ao Estado agir positivamente, com medidas que combatam a violência intrafamiliar.
E seria reduzir a letra morta o artigo 7o., da Convenção de Belém do Pará, que diz que os Estados signatários se comprometem a abolir dosseus ordenamentosqualquer norma que respalde a tolerância à violência contra a mulher.
Diante de tantas deficiências na tipologia, é fácil concluir que o remédio das vítimas é mesmo o cível.
Seria interessante que a OAB conscientizasse os advogados da necessidade de manejar ações de indenização por dano moral, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Praticamente não se vê esse tipo de ação, pedindo a responsabilização civil do agressor, especialmente se já houver a condenação na seara criminal, por crime de violência doméstica.
E também seria fundamental que os operadores do direito não encarassem a Lei Maria da Penha apenas com tecnicismo jurídico, mas como uma ação afirmativa para promover a igualdade material entre homens e mulheres.
(Monica Barros Reis – Advogada – Presidente da Comissão de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do IBDFAM/MS - Vice-Presidente do Instituto dos Advogados de Mato Grosso do Sul)
[1](fonte: Livro Modelos Europeus de Enfrentamento à Violência de Gênero, organizador Thiago Pierobon, MP/DF).
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