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Depreparo ou manipulação?
Poucas vezes no cenário brasileiro dos costumes se terão acumulado tantos equívocos e desvios da objetividade como no caso do recente falecimento da cantora Cássia Eller. É verdade que foram as próprias circunstâncias que forneceram não apenas às autoridades, mas também à televisão, às revistas e aos jornais um prato raro para esfaimar a voracidade da opinião pública, sempre ávida para correr do pão ao circo e voltar deste para aquele. Claro que a opinião pública é feita de vários estamentos ou camadas sociais, mas na essência seu apetite não muda. Muda, sim, a qualidade da comida e a natureza do espetáculo. A comida pode não ser uma cesta básica, mas um banquete regado a premier cru de Bordeaux. Enquanto o espetáculo nem sempre será um Corinthians e Palmeiras em tarde de verão. Pois não é certo que não faltou quem visse nos atentados às torres do World Trade Center uma figuração de rara beleza pictórica?
É contra a ética do Estado e viola o dever de informação da imprensa exagerar, reduzir ou esconder as verdadeiras dimensões das tragédias, sejam elas grandes ou pequenas, que caem no domínio público. Quem tem mais de vinte anos se lembrará bem do que ocorreu antes, durante e depois da enfermidade que vitimou o Presidente Tancredo Neves. O País inteiro consumiu por dias ou semanas a fio uma gigantesca mentira, tramada por um estranho conluio entre o poder público e a imprensa, no qual cada um deles tratava de sacar o quanto podiam de vantagens e dividendos específicos.
No caso de Cássia Eller não foi diferente. Não está sendo diferente. Vejamos.
Em primeiro lugar havia uma suspeita de homicídio. Cumpria, evidentemente, que fosse investigada. É um procedimento de rotina, que se aplica independentemente da maior ou menor notoriedade do morto. De repente, porém, a busca do suposto homicida se converteu em impiedosa devassa sobre a vida íntima da cantora, como se fosse ela, a um só tempo, vítima e autora de uma armação criminosa. O tempero da droga emprestava a tudo um teor de enigma e acutilava a curiosidade malsã de ricos e pobres. A pergunta “mataram-na?”, deixou-se logo substituir por essa outra —“consumiu ou não consumiu?”. Ora, consumir droga não é crime. E se crime fosse, o réu já estava para lá de morto e não podia mais por ele responder. É verdade que a morte do consumidor não encerra o problema da droga. Não encerra, mas também não o individua. A miséria da droga no Brasil não se chama Cássia Eller. Tem muitos outros nomes e muitos outros rostos, a maioria dos quais de gente que jamais subiu a um palco. É um problema social e como tal deve ser tratado.
E é ai que entra a declaração do titular da 10ª Delegacia de Polícia. Disse estar convencido de que não havia indícios de homicídio, mas, prudente, se dispunha a aguardar os estudos periciais. Corretíssimo. Perguntado então o que faria, se o laudo concluísse pela morte por uso de substância entorpecente, informou que passaria a “investigar a origem da droga”.
Ora, nesse momento cai subitamente o pano para se reabrir de imediato sobre um cenário estranho e surrealista. Já não estamos mais no paraíso da droga chamado Brasil, porém na mais fervorosa arena de sua repressão. Alguém morre por overdose de entorpecente e a nossa diligentíssima polícia vai ao encalço de quem o forneceu à vítima. Para quê? Para, eventualmente e se for o caso, abrir um inquérito policial por tráfico? E apurar então, porventura, que há neste país austero e clean —ignomínia das ignomínias—quem fornece drogas? Quão ingênuos éramos, que não sabíamos...
Outra constelação de desinformações aglutinou-se em torno da guarda de Chicão, o filho menor de Cássia Eller e que vivia com a mãe e sua companheira Maria Eugênia, desde o nascimento. Em decisão absolutamente prosaica e previsível, o juiz do caso deferiu a guarda provisória de Chicão a Eugênia, que já a tinha de fato. Assim se faz sempre, pois é certo que deve ter a guarda quem melhores condições oferece ao menor. E estava claro que, no caso, era Eugênia. “Decisão inédita no País!”, não se fartou de apregoar a mídia. De inédito mesmo, não havia nada. É assim mesmo que todos os dias procedem os juízes da infância e da juventude. E, muito antes deles, foi também assim que procedeu o rei Salomão na lendária sentença bíblica diante das mulheres que disputavam a guarda de uma criança. Ou o juiz Azdak, da peça “O Cículo de Giz Caucasiano”, de Brecht, em situação similar.
O suposto caráter inédito estaria na circunstância de que as companheiras mantinham um relacionamento homossexual. Eram um casal de mulheres. Pois bem, isto é totalmente irrelevante para o desfecho da história. Fossem as duas heterossexuais ou uma hetero e a outra homo, a decisão seria a mesma. Não é na preferência erótica do guardião ou da guardiã que o juiz se funda para atribuir ou manter a guarda e, sim, nas qualidades morais e nas condições materiais de quem a pretenda. Faltassem a Eugênia atributos adequados e Chicão teria de ser afastado de sua companhia, mesmo em vida de Cássia.
E aqui se insinua outro lamentável desaviso.
Em favor da solução, argüiu-se que primeiro Cássia e, falecida esta, os respectivos parentes queriam mesmo transferir a tutela de Chicão para Eugênia. Cássia o teria declarado expressamente em vida. A impressão com que se fica é a de que o pátrio poder é uma espécie de cheque ao portador, que o pai, ou a mãe, ou o avô, ou os tios passam a quem lhes aprouver. Definitivamente não é assim. Que os mais próximos tenham uma palavra a dizer, é justo, natural e razoável. Mas não têm —nem eles nem os mesmos pais — o direito de dispor do pátrio poder. O pátrio poder é uma verdadeira magistratura doméstica. Não uma simples faculdade ou um mero direito, senão um poder-dever que, sob a supervisão permanente e contínua do Estado, se exerce no interesse exclusivo do menor. Nenhuma deslocação se faz nesse domínio, sem que o juiz primeiro o investigue e depois o decida.
Questão à parte e que nada, absolutamente nada, tem com a guarda de Chicão é a do destino a dar aos bens deixados por Cássia. Salvo a hipótese de que Cássia tenha deixado testamento válido, estes bens vão na sua totalidade para Chicão, que é seu descendente único.
Ainda outra questão, também diversa daquela e desta, é saber quais são os bens de Cássia. Aí, sim, abre-se a interface para o reconhecimento de uma possível sociedade de fato, que Cássia e Eugênia houvessem mantido. Esta sociedade igualmente independe do gênero e das preferências sexuais dos parceiros. Pode se dar entre duas ou mais pessoais, mantenham ou não relacionamento íntimo, sejam ou não fiéis, promíscuas ou abstêmias. É um puro fenômeno sócio-econômico. Provada a sociedade de fato, esta se terá dissolvido com a morte de Cássia, devendo em seguida ser liquidada, atribuídos então os bens a cada uma das parceiras ou a seus herdeiros. Se, finalmente, Eugênia pretende abrir mão de sua parte em favor de Chicão, como se tem noticiado, ou se a quer manter consigo, é matéria de sua livre deliberação, que em nada influirá na atribuição do que lhe couber por lei e por direito.
*João Baptista Villela, 65, é professor titular na Faculdade de Direito da UFMG. Foi professor visitante na Universidade de Münster (1995-1996) e na Universidade de Lisboa (2000-2001).
É contra a ética do Estado e viola o dever de informação da imprensa exagerar, reduzir ou esconder as verdadeiras dimensões das tragédias, sejam elas grandes ou pequenas, que caem no domínio público. Quem tem mais de vinte anos se lembrará bem do que ocorreu antes, durante e depois da enfermidade que vitimou o Presidente Tancredo Neves. O País inteiro consumiu por dias ou semanas a fio uma gigantesca mentira, tramada por um estranho conluio entre o poder público e a imprensa, no qual cada um deles tratava de sacar o quanto podiam de vantagens e dividendos específicos.
No caso de Cássia Eller não foi diferente. Não está sendo diferente. Vejamos.
Em primeiro lugar havia uma suspeita de homicídio. Cumpria, evidentemente, que fosse investigada. É um procedimento de rotina, que se aplica independentemente da maior ou menor notoriedade do morto. De repente, porém, a busca do suposto homicida se converteu em impiedosa devassa sobre a vida íntima da cantora, como se fosse ela, a um só tempo, vítima e autora de uma armação criminosa. O tempero da droga emprestava a tudo um teor de enigma e acutilava a curiosidade malsã de ricos e pobres. A pergunta “mataram-na?”, deixou-se logo substituir por essa outra —“consumiu ou não consumiu?”. Ora, consumir droga não é crime. E se crime fosse, o réu já estava para lá de morto e não podia mais por ele responder. É verdade que a morte do consumidor não encerra o problema da droga. Não encerra, mas também não o individua. A miséria da droga no Brasil não se chama Cássia Eller. Tem muitos outros nomes e muitos outros rostos, a maioria dos quais de gente que jamais subiu a um palco. É um problema social e como tal deve ser tratado.
E é ai que entra a declaração do titular da 10ª Delegacia de Polícia. Disse estar convencido de que não havia indícios de homicídio, mas, prudente, se dispunha a aguardar os estudos periciais. Corretíssimo. Perguntado então o que faria, se o laudo concluísse pela morte por uso de substância entorpecente, informou que passaria a “investigar a origem da droga”.
Ora, nesse momento cai subitamente o pano para se reabrir de imediato sobre um cenário estranho e surrealista. Já não estamos mais no paraíso da droga chamado Brasil, porém na mais fervorosa arena de sua repressão. Alguém morre por overdose de entorpecente e a nossa diligentíssima polícia vai ao encalço de quem o forneceu à vítima. Para quê? Para, eventualmente e se for o caso, abrir um inquérito policial por tráfico? E apurar então, porventura, que há neste país austero e clean —ignomínia das ignomínias—quem fornece drogas? Quão ingênuos éramos, que não sabíamos...
Outra constelação de desinformações aglutinou-se em torno da guarda de Chicão, o filho menor de Cássia Eller e que vivia com a mãe e sua companheira Maria Eugênia, desde o nascimento. Em decisão absolutamente prosaica e previsível, o juiz do caso deferiu a guarda provisória de Chicão a Eugênia, que já a tinha de fato. Assim se faz sempre, pois é certo que deve ter a guarda quem melhores condições oferece ao menor. E estava claro que, no caso, era Eugênia. “Decisão inédita no País!”, não se fartou de apregoar a mídia. De inédito mesmo, não havia nada. É assim mesmo que todos os dias procedem os juízes da infância e da juventude. E, muito antes deles, foi também assim que procedeu o rei Salomão na lendária sentença bíblica diante das mulheres que disputavam a guarda de uma criança. Ou o juiz Azdak, da peça “O Cículo de Giz Caucasiano”, de Brecht, em situação similar.
O suposto caráter inédito estaria na circunstância de que as companheiras mantinham um relacionamento homossexual. Eram um casal de mulheres. Pois bem, isto é totalmente irrelevante para o desfecho da história. Fossem as duas heterossexuais ou uma hetero e a outra homo, a decisão seria a mesma. Não é na preferência erótica do guardião ou da guardiã que o juiz se funda para atribuir ou manter a guarda e, sim, nas qualidades morais e nas condições materiais de quem a pretenda. Faltassem a Eugênia atributos adequados e Chicão teria de ser afastado de sua companhia, mesmo em vida de Cássia.
E aqui se insinua outro lamentável desaviso.
Em favor da solução, argüiu-se que primeiro Cássia e, falecida esta, os respectivos parentes queriam mesmo transferir a tutela de Chicão para Eugênia. Cássia o teria declarado expressamente em vida. A impressão com que se fica é a de que o pátrio poder é uma espécie de cheque ao portador, que o pai, ou a mãe, ou o avô, ou os tios passam a quem lhes aprouver. Definitivamente não é assim. Que os mais próximos tenham uma palavra a dizer, é justo, natural e razoável. Mas não têm —nem eles nem os mesmos pais — o direito de dispor do pátrio poder. O pátrio poder é uma verdadeira magistratura doméstica. Não uma simples faculdade ou um mero direito, senão um poder-dever que, sob a supervisão permanente e contínua do Estado, se exerce no interesse exclusivo do menor. Nenhuma deslocação se faz nesse domínio, sem que o juiz primeiro o investigue e depois o decida.
Questão à parte e que nada, absolutamente nada, tem com a guarda de Chicão é a do destino a dar aos bens deixados por Cássia. Salvo a hipótese de que Cássia tenha deixado testamento válido, estes bens vão na sua totalidade para Chicão, que é seu descendente único.
Ainda outra questão, também diversa daquela e desta, é saber quais são os bens de Cássia. Aí, sim, abre-se a interface para o reconhecimento de uma possível sociedade de fato, que Cássia e Eugênia houvessem mantido. Esta sociedade igualmente independe do gênero e das preferências sexuais dos parceiros. Pode se dar entre duas ou mais pessoais, mantenham ou não relacionamento íntimo, sejam ou não fiéis, promíscuas ou abstêmias. É um puro fenômeno sócio-econômico. Provada a sociedade de fato, esta se terá dissolvido com a morte de Cássia, devendo em seguida ser liquidada, atribuídos então os bens a cada uma das parceiras ou a seus herdeiros. Se, finalmente, Eugênia pretende abrir mão de sua parte em favor de Chicão, como se tem noticiado, ou se a quer manter consigo, é matéria de sua livre deliberação, que em nada influirá na atribuição do que lhe couber por lei e por direito.
*João Baptista Villela, 65, é professor titular na Faculdade de Direito da UFMG. Foi professor visitante na Universidade de Münster (1995-1996) e na Universidade de Lisboa (2000-2001).
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