Artigos
Da admissibilidade de transação envolvendo direitos indisponíveis – necessária análise frente aos meios alternativos de resolução de conflitos
Da admissibilidade de transação envolvendo direitos indisponíveis – necessária análise frente aos meios alternativos de resolução de conflitos
Thatiana Biavati Silva e Marques[1]
RESUMO
Devido a um contexto, sobretudo histórico, tem-se que no sistema jurídico brasileiro os direitos indisponíveis – muito embora não haja um conceito legal no ordenamento que os defina assertivamente – são compreendidos como uma categoria especial, de forma em que detém características de irrenunciabilidade, inalienabilidade e intransmissibilidade.
Sob este panorama, tradicionalmente têm-se entendido que somente os conflitos que rezem sobre direitos patrimoniais disponíveis é que são passíveis de serem transacionados.
Em contrapartida, a cada dia mais se torna mais claro o aumento da busca da solução dos conflitos através da adjudicação privada (arbitragem) ou de meios alternativos de resolução de conflitos (conciliação, mediação ou transação), sobretudo diante da realidade de que a prática conciliatória, por muita das vezes, proporciona uma solução mais sensata e justa aos envolvidos, bem como mais célere e menos onerosa.
O presente ensaio busca, de forma simples, verificar o cabimento e possibilidade de admitir-se a ocorrência de transação que verse sobre direitos considerados indisponíveis, sobretudo diante do enfoque dos mecanismos extrajudiciais para a resolução consensual de conflitos.
Palavras-chave: Direitos fundamentais - Direitos indisponíveis - Transação - Mediação - Meios alternativos de solução de conflitos.
ABSTRACT
Due to a context, especially historical, it has been that in the Brazilian legal system the unavailable rights - although there is no legal concept in the system that defines them assertively - are understood as a special category, in a way that has characteristics of irrenunciability, inalienability and intransmissibility.
Under this perspective, it has traditionally been understood that only conflicts that pray about available property rights are likely to be traded.
On the other hand, it becomes increasingly clear that the search for the solution of conflicts through private adjudication (arbitration) or alternative means of resolving conflicts (conciliation, mediation or transaction) is increasing, especially given the reality that the practice.
The present essay seeks, in a simple way, to verify the fit and possibility of admitting the occurrence of a transaction that deals with rights considered unavailable, especially given the focus of extrajudicial mechanisms for consensual resolution of conflicts.
Keywords: Unavailable rights - Transaction - Negotiation - Mediation - Alternative dispute resolution.
Certo é que constitui premissa histórica em nosso sistema judiciário a inegociabilidade dos direitos indisponíveis. Não há como se afastar que referida proposição tenha como pano de fundo uma política protecionista, que busca engessar qualquer poder de negociação desta categoria de direitos por parte dos seus titulares, entendendo ser esta a melhor forma de assegurá-los.
No entanto, diante dos avanços sociais e dos contornos das próprias relações interpessoais, busca-se demonstrar neste ensaio que o olhar categórico acerca da dita indisponibilidade acaba por enevoar a questão da disponibilidade dos direitos fundamentais face à liberdade e autonomia das vontades.
Constata-se que em outros sistemas jurídicos já se consagra a possibilidade de negociações relativas aos direitos indisponíveis. Lado outro, na Justiça brasileira ainda não se encontra posicionamento pacificado acerca do tema, mesmo diante da nova realidade existente, que nos apresenta uma conjunção entre os procedimentos de jurisdição e os mecanismos extrajudiciais, com vistas a buscar uma adequada resolução dos conflitos e proteção dos direitos.
Neste sentir, analisando-se a legislação vigente, importante observar que através de diversos dispositivos do CPC resta nítido o estímulo à conciliação, sendo possível depreender que o Estado-juiz: (i) deve tentar buscar a solução consensual de conflitos (CPC/2015, art. 3º, § 2º); (ii) deve estimular a solução consensual de conflitos, inclusive no curso de processo judicial (CPC/2015, art. 3º, § 3º); (iii) deve cooperar para que se obtenha decisão de mérito justa, efetiva e em tempo razoável; (iv) deve, a qualquer tempo, promover a autocomposição (CPC/2015, art. 139, inciso V).
Os doutrinadores contemporâneos têm se distanciado da noção rígida de impossibilidade de transação em relação aos direitos assim categorizados, face evidente evolução legislativa e jurisprudencial, sobretudo no que tange aos meios alternativos de resolução de conflitos.
Importante mencionar o a Lei de Mediação (Lei no 13.140, de 26 de junho de 2015), assim dispõe:
Art. 3o Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação.
§ 1o A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.
§ 2o O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público
Ora, é inegável que o atual cenário jurídico está permeado de casos de solução alternativa de conflitos, devendo ser a desjudicialização dos conflitos tendência, inclusive, a ser observada futuramente, com mais enfoque, para o “novo mundo”, pós pandemia.
Conforme visto no artigo supra citado, através da solução alternativa de conflitos admite-se sobre outros direitos classificados como indisponíveis.
Há decisões não tão recentes, inclusive, em que a indisponibilidade dos direitos parece ter sido relativizada, tendo em vista a necessidade premente de pacificação social.
No ano de 2006, o STJ, em julgamento ao Recurso Especial nº 299.400 reconheceu como válida transação que versava acerca de direitos difusos, mesmo diante da discordância expressa do Ministério Público, sendo que na oportunidade, a Ministra Eliana Calmon afirmou que “a melhor composição a efetivada e não aquela que não virá nunca, ou demorará mais de dez anos, caso seja anulada a sentença, para então começar-se tudo novamente”.
Ada Pellegrini Grinover, ao comentar acerca do antigo sobre o antigo PL nº 7.169/2014 em sua obra “Conciliação e mediação endoprocessuais na legislação projetada”, afirma de modo indubitável, que as condições de cumprimento de obrigações relacionadas a direitos indisponíveis podem ser transacionadas sem que isso signifique a transação do próprio direito:
Ora, é de conhecimento geral que os conflitos de família são os que mais se adequam e mais frequentemente são submetidos à solução conciliatória. A ideia aparentemente encampada pelo PL sobre a indisponibilidade de certos direitos é equivocada e ultrapassada, pois, mesmo em relação a certos direitos indisponíveis, existe disponibilidade a respeito da modalidade, forma, prazos e valores no cumprimento de obrigações, passíveis de uma construção conjunta, e que são, assim, perfeitamente transacionáveis (como, v.g., guarda dos filhos) e em que pode haver reconhecimento da pretensão (por exemplo, investigação de paternidade) (GRINOVER, 2014. p.13-14).
Partindo desse argumento, eventual caracterização da indisponibilidade do direito não significa necessariamente impossibilidade de autocomposição, entendida como a possibilidade de voluntariedade relacionada a algum dos elementos de uma relação jurídica.
O enunciado 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis foi categórico nesse sentido, ao entender que “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.
Ora, corroborando todo este entendimento de que a transação não se opera quanto aos direitos considerados como indisponíveis em si, mas quanto às situações a eles conexas, cabe uma análise e reflexão, nos casos em concreto, de forma a se evidenciar, de fato, a impossibilidade de se transacionar acerca de eventual direito-dever tido como indisponível em relação, por exemplo à sua restrição, afastamento e/ou seu não reconhecimento, tornando-se possível e admissível, no entanto a possibilidade de negociar-se, por exemplo, em relação às condições de sua efetivação.
Nesta senda, pode-se dizer que a possibilidade de transação retira o caráter indisponível de um direito. Tal indisponibilidade prevalecerá, ainda que de forma relativizada, conquanto ainda sim o titular do direito não exerce em sua plenitude o poder de disposição, devendo observar os requisitos impostos pelo Estado.
Trazendo-se a discussão para o âmbito do direito das famílias, torna-se possível fazer singelas reflexões capazes de nos apontar acerca da viabilidade da questão. Por exemplo, a questão do direito à percepção de alimentos, em nossa doutrina, tipicamente enquadrado como direito indisponível. De fato, o direito aos alimentos não pode ser renunciado, mas pensando-se sob o enfoque prático, admite-se a transação em relação a valores, por exemplo, nas ações de cumprimento de sentença de verbas desta natureza que estejam inadimplidas. Não se admite, portanto, a negociação em relação ao direito em si, mas a situações conexas e secundárias.
Pertinente trazer à baila excerto de julgamento do STJ, que afastou o pedido formulado pelo Ministério Público, que visava a anulação de homologação de um acordo onde a representante legal do menor havia renunciado determinada quantia dos valores a que o mesmo fazia jus:
(....) o que se vislumbra é a atuação ponderada da genitora que, representando a adolescente, entendeu ser do interesse dessa o acordo, que permitiu o recebimento de parcela significativa da dívida existente, que, frise-se, consubstanciava-se, na prática, em “cr dito podre”, pois nem com a coação extrema – o alimentante estava preso – logrou-se o seu recebimento. Note-se, mesmo que assim não fosse, estaria o acordo dentro do feixe outorgado ao representante legal, pelo poder familiar, não vingando a tese de impossibilidade de renúncia à fração dos créditos. Irrenunciável, nos precisos ditames legais (art. 1.707 do CC-02) é o direito a alimentos, não o seu exercício. (Brasil, 2013)
Diante desta perspectiva, não haveria razão de ser para não se admitir transações concernentes ao exercício de guarda, direito de visitas, questões relativas à filiação, adoção, invalidade de casamento, entre outros. Ademais, em havendo interesse de menores, a questão obviamente deverá passar pelo crivo do Ministério Público e seguir para homologação judicial.
Conclui-se, permissa vênia, que nem a indisponibilidade do direito e nem mesmo a indisponibilidade da pretensão da tutela judicial são hábeis para afastar a possibilidade de celebração do negócio jurídico processual e/ou atos que levem à autocomposição.
Desse modo, sob o enfoque ainda mais “moderado” de que tão somente as obrigações decorrentes de direitos considerados como indisponíveis são transacionáveis, tem-se um parâmetro cabível para a compreensão do art. 3º da Lei nº 13.140/2015, não podendo tal situação ignorada nos âmbitos dos Tribunais, e, sobretudo, na vida cotidiana dos advogados, que buscam transpor para “o papel” a vontade mais íntima, real e livre de seus assistidos que, muita das vezes encontra barreiras para ser efetivada.
É sob este aspecto da possibilidade cada vez mais visível de apuração da intenção dos titulares dos direitos indisponíveis em exercê-los ou negociá-los, que passa-se a exigir do Estado-Juiz posturas mais criativas e humanizadas, bem como contribuições doutrinárias sobre o tema, sobretudo, diante das lacunas legais ainda existentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.246.711 – MG. Terceira Turma. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: J L F. Interessado: W M L representado por M G M. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 20 de agosto de 2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 299.400 – RJ. Segunda Turma. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Recorridos: Município de Volta Redonda, Banco Bamerindus do Brasil S/A., Companhia Siderúrgica Nacional. Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins. Relatora para acórdão: Ministra Eliana Calmon. Brasília, 01 de junho de 2006.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Conciliação e mediação endoprocessuais na legislação projetada. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 13, n. 91, p. 71-92, set. /out. 2014. p.13-14.
[1] Advogada, sócia da banca Chalfun Advogados Associados, atualmente é presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões da 20ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil / MG; pós-graduada em Direito de Família e Sucessões; Associada ao IBDFAM psicanalista em Formação pela Associação Mineira de Psicanalise Contemporânea.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM