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A lei de alienação parental: da promessa de proteção à banalização de sua aplicação
A lei de alienação parental: da promessa de proteção à banalização de sua aplicação
Autora: Gabriela Fernanda da Silva[1]
Orientadora: Prof. Dra. Daniela de Melo Crosara[2]
Resumo: Partindo da justificativa do Projeto de Lei n°. 4.053/2008, este fortemente influenciado pelos estudos do psiquiatra estadunidense Richard Gardner (2002), até a promulgação e aplicação da Lei n° 12.318/2010, verifica-se a invocação constante e tendenciosa da alienação parental nos litígios familiares perante as Varas de Família. Desta forma, por meio do método dedutivo, utilizando-se de uma vasta bibliografia e de análise de dados, busca-se demonstrar que a aplicação da Lei de Alienação Parental bem como os motivos de sua elaboração pode significar a materialização de mais uma ferramenta de violência de gênero, uma vez que o alvo, em sua esmagadora maioria, é a figura materna. Outrossim, objetiva-se demonstrar que o uso da alienação parental é direcionado a coibir denúncias de abuso sexual, essas que, por sua vez, são realizadas pela mãe em face do pai e que, segundo pesquisas, são predominantemente verdadeiras.
Palavras-chaves: Síndrome de Alienação Parental; Alienação parental; Lei n° 12.318/2010; Gênero.
Abstract: Based in the justification of the Bill n° 4.053/2008, this strongly influenced by the studies of the american psychiatrist Richard Gardner (2002), up to the enactment and aplication of the Law n° 12.318/2010, there is a constant and biased invocation of the parental alienation in the family litigation in front of the Family Courts. Therefore, by means of the deductive method, using a wide bibliografy and datas analyses, seeks to show that the aplication of the Parental Alienation Law, as well as the reasons for its elaboration, can means the materialization of another tool for gender violence, since the target, in the most part of the cases, is the maternal figure. Furthermore, the objective is to demonstrate that the use of the parental alienation is aimed at restraining reports of sexual abuse, this reports which, for your turn, are done for the mother against the father and, accordingly to research, are predominantly true.
Keywords: Parental Alienation Syndrome; Parental alienation; Law 12.318/2010; Gender.
- INTRODUÇÃO
A alienação parental foi inicialmente introduzida pelo psiquiatra estadunidense Richard Gardner, na década de 1980, como sendo um distúrbio presente nas crianças que estão em meio a uma disputa de guarda frente ao Poder Judiciário. Segundo Gardner (2002), o detentor da guarda do infante é capaz de realizar uma lavagem cerebral na criança, de modo a programá-la para que odeie outro genitor não guardião. Baseado nisso, o legislador brasileiro promulgou a Lei nº 12.318/2010 a fim de coibir as práticas de alienação parental, esta julgada prejudicial para o desenvolvimento da criança.
Todavia, tanto os fundamentos utilizados quanto a aplicação da referida legislação foram de encontro com o objetivo que, supostamente, era inerente ao texto normativo criado, qual seja, o de efetivação do comando constitucional de proteção à criança e ao adolescente, conforme artigo 227 da Magna Carta.
O que se observou a partir da pesquisa a seguir foi que, na realidade, a Lei n° 12.318/2010 vem sendo utilizada como uma manobra do genitor não guardião, que normalmente é o pai, para ter vantagem em sua demanda frente ao Judiciário, de forma a desqualificar o outro polo da demanda, que, por sua vez, é a figura materna. A problemática se agrava quando se identifica que tal manobra também é usada para coibir a prática de abuso sexual. Quando a mãe recorre ao Judiciário para denunciar a suspeita de abuso sexual praticado pela figura paterna em face do filho ou filha, o sujeito ajuíza ação alegando estar sendo vítima de alienação parental, já que a lei, em seu artigo 2°, parágrafo único, inciso VI, exemplifica como ato de alienação a apresentação de falsa denúncia contra o outro genitor (BRASIL, 2010).
Dessa forma, fundamental se torna apresentar a gravidade dos problemas gerados pela aplicação banal e infundada da referida lei, esta que, segundo as pesquisas realizadas, tomou como alvo a mulher, por ser na maioria das vezes a responsável legal pela prole. Apoiado em pesquisas executadas em Varas de Família, o presente estudo objetiva não só evidenciar a real situação dos litígios que invocam a alienação parental, como também criticar seu aspecto normativo, que abre margens para sua banalização, o que é recorrentemente observado nos casos em espeque.
Nesse diapasão, partindo de hipóteses, baseando-se de pesquisas científicas, trabalhos acadêmicos, dados e outros recursos bibliográficos, será demonstrada toda essa problemática decorrente da Lei de Alienação Parental, usando, para tanto, predominantemente, o método dedutivo.
- DA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA: CONJUGALIDADE E COPARENTALIDADE
A princípio, cumpre destacar a origem das famílias, instituto fielmente protegido pelo sistema jurídico-normativo brasileiro. Tem-se que na formação da relação conjugal origina-se, como explicam Barbosa e Castro (2013, p. 35), um subsistema familiar com o propósito de constituir família, surgindo a conjugalidade, onde será definido o papel de cada um dos indivíduos no relacionamento. Nesse sentido, o novo relacionamento se constrói como uma mistura de seus protagonistas, sujeitando-se a transformações na medida em que surgem novidades. Não obstante, o nascimento de um filho trás fortes mudanças no relacionamento do casal e “exige-se a restruturação da família, com surgimento de novos papéis e redefinição dos antigos”, dando-se origem ao fenômeno da coparentalidade.
A coparentalidade pode ser entendida como as forças movidas pelos pais para garantir o melhor para a prole, trabalhando em equipe de maneira a fornecer o bem estar absoluto para os filhos. Durante o relacionamento, a conjugalidade deve subsistir com a coparentalidade, pois a falta da primeira pode colocar em risco o bom funcionamento desta última. Todavia, quando do término do relacionamento, há o fim da conjugalidade e, na presença de filhos, é fundamental que a coparentalidade resista. Na conjugalidade a díade é formada apenas pelo casal, sendo que na coparentalidade os filhos estão ali incluídos (BARBOSA; CASTRO, 2013. P. 35-36).
Entretanto, há um fator que obsta a efetiva permanência da coparentalidade, qual seja, a ausência paterna recorrente nas famílias brasileiras, ainda mais quando do término de um relacionamento. Em pesquisa aos processos de família do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a psicóloga Luciana de Paula Gonçalves Barbosa e a assistente social Beatriz Chaves Ros de Castro, atuantes no Serviço de Assessoramento a Varas Cíveis e de Família (SERAF) perceberam que, após a separação, muitos homens decidiram cessar o convívio com os filhos para facilitar o afastamento da ex-cônjuge (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 107). Nesse contexto, notou-se também que em 78% dos casos os filhos residiam com a mãe, independente do regime de guarda, mesmo com a maioria das mães trabalhando fora, sendo que a guarda compartilhada era exceção, o que significa que a mãe exercia tanto atividades laborais, quanto se dedicava às tarefas domésticas (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 105).
Confirma-se resultados de diferentes pesquisas apresentadas ao longo da revisão teórica deste livro, que apontam para a preservação de uma cultura na qual ainda há predominância da mãe como principal responsável pelos cuidados com os filhos, apesar das mudanças sociais dos últimos anos. Evidencia-se, também, que esse lugar de cuidadora de a mulher não a restringe no desempenho de outros papéis, como a atuação profissional e a manutenção financeira da casa. O pai, por sua vez, permanece com a função primordial de provedor, com inserções menos regulares na vida dos filhos, mas em busca desse lugar. (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 105/106)
Apesar da instituição da Lei n° 13.058/2014, que altera o Código Civil vigente para incluir a guarda compartilhada, deve-se recordar que a adesão a esta modalidade de guarda é discricionária, ainda que exista a obrigatoriedade dela ser fomentada nas ações de guarda. Nesse sentido, o pai pode, ativamente, rejeitar o regime compartilhado, dispondo da guarda da prole em favor da mãe, conforme dispõe o artigo 1.584, § 2° do Código Civil.[3]
A respeito disso, Françoise Dolto (2011, p. 36-77) adverte sobre a problemática da guarda unilateral, pois o genitor guardião, que normalmente é a mãe, figura como autoridade, como “feitor”, gerenciando o dia a dia dos filhos, de forma rigorosa, ao passo que o não guardião, comumente o pai, passa a imagem de férias e diversão, já que busca os filhos aos finais de semana e nas férias, períodos estes de extrema importância para a educação da criança. Groeninga (2011), por sua vez, arremata que o genitor não guardião, por consequência, não exerce da mesma forma o poder familiar, sendo que este fica a cargo do genitor guardião, que possui mais influência sob a criança, uma vez que detém a “guarda física dos filhos e, por conseguinte, a tomada de decisão do seu dia a dia” (2011, p. 183).
Nesse contexto de separação, durante a disputa pela guarda, certo é que a família passa por um momento de grande instabilidade, principalmente os filhos, pois experimentam uma etapa de grandes mudanças, ainda mais quando suas rotinas sofrem alterações em virtude do rompimento dos pais. Além do mais, o que se percebe é que no momento do divórcio, da dissolução ou da separação de fato, os filhos ainda, em sua maioria, estão na infância, devendo permanecer sob a guarda de um dos genitores. Sobre isso, BARBOSA; CASTRO (2013, p. 91) destacam que, em seus estudos no TJDF, em 60% dos casos de separação os filhos são recém-nascidos ou em idade pré-escolar.
É justamente com o fim da conjugalidade, quando os pais buscam junto à justiça medidas para reorganizar a estrutura familiar, que a instabilidade e o desgaste redobram. Dessa situação é que decorre o risco dos ex-cônjuges entenderem ser um momento de disputa, em que devem ser usados todos os meios necessários para sair vencedor do pleito, como se isso significasse, de alguma forma, um combate necessário.
Ademais, observa-se que durante esse combate frente ao Judiciário, uma das ferramentas que mais tem sido utilizada é a alegação de que o genitor guardião da criança a está programando para odiar o outro genitor não guardião e a preferir a si, o que demanda a invocação constante da Lei de Alienação Parental de forma banal e, por muitas vezes, cruel, quando serve de subterfúgio para coibir práticas de abuso sexual, já que o dispositivo legal abre brechas para tanto, conforme será compreendido no decorrer do presente. Todavia, em um primeiro momento, fundamental se torna fazer um apanhado histórico e social da configuração familiar, em que a mulher figura como protagonista, a fim de entender tais adversidades em sua essência.
- A IMPORTÂNCIA DA REDEFINIÇÃO DA MULHER BRASILEIRA NA SOCIEDADE PARA A RESTRUTURAÇÃO FAMILIAR
Mesmo após a promulgação da Lei n° 13.058/2014, que regulamenta a guarda compartilhada, a realidade no Brasil ainda é do regime unilateral. Inegavelmente, o regime compartilhado passou a ser adotado por mais vezes, conforme as Estatísticas do Registro Civil de 2017, do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE, 2017, p. 6), que apontou um aumento significativo na guarda compartilhada, uma vez que, em 2016, a modalidade compartilhada era presente em 16,9% dos casos e, em 2017, passou a ser 20,9%. Importante ressaltar que, no ano da publicação da referida lei, apenas em 7,5% dos casos a guarda compartilhada se fazia presente.
Entretanto, apesar desse aumento, o perfil brasileiro segue de forma que a guarda é majoritariamente atribuída às mães, ainda conforme as Estatísticas do Registro Civil do IBGE (2017, p. 6), representando quase 70% dos casos, quando da dissolução do casamento ou da união estável. Contudo, mesmo quando do regime de guarda compartilhada, a residência de referência do infante, em sua maioria, ainda é a residência materna, visto que, seja qual for o regime adotado, os filhos moram com a mãe em 78% dos casos (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 105).
A noção de que o cuidado com os filhos cabe à mãe, ainda que dentro do relacionamento conjugal ou em seu término, perdurou por muito tempo. Apesar desse pensamento não estar extinto por completo da sociedade brasileira, nós séculos XIX e XX, deu-se início a uma série de movimentos que mudaram os rumos da organização social das pessoas. A pesquisadora Joana El-Jaick Andrade (2015) explica que o movimento socialista, em meio à Revolução Industrial, trouxe mudanças na posição da mulher na sociedade, já que houve a necessidade das mulheres mais pobres assumirem postos nas indústrias para complementar a renda familiar, o que abriu espaço para o debate sobre o lugar da mulher no meio social.
A negação da identificação das mulheres como “trabalhadoras” representava ainda uma forte reação à ruptura com os valores tradicionais. Como destacara o historiador Peter Gay (2001), a ideologia vitoriana, que valorizava “o poderoso sexo frágil”, procurava restabelecer os papéis sexuais tradicionais e a rígida separação entre o público e o privado. Mas, se as mulheres das classes burguesas passavam a recolher-se em casa, circulando ocasionalmente nos salões de chá, nos magazines, na igreja e nos clubes de caridade, as mulheres trabalhadoras foram menos afetadas pelo confinamento doméstico. A necessidade de complementar a renda familiar – fosse através do trabalho industrial, fosse por meio de atividades comerciais, como a venda em bancas e cestos, a realização de faxinas, lavagem de roupas e trabalhos de costura para fora, o cuidado de crianças como amas-de-leite ou babás, a entrega de recados e mercadorias, ou a prostituição – exigia que as mulheres do povo saíssem às ruas e fragmentassem seu tempo entre tarefas domésticas e atividades suplementares. Desse modo, as mulheres transitavam incansavelmente pelos canteiros de obras, oficinas, mercados, margens de rios e lavadouros, criando laços de sociabilidade feminina e formas de expressão próprias, marcadas pela irreverência, ironia, espontaneidade e subversão (Perrot, 2006, p. 190). (ANDRADE, 2015, p. 267/268)
Antes, o padrão era de uma mulher restrita aos cuidados do lar, dos filhos e do marido, sem a possibilidade de crescimento fora disso. Após, com o fortalecimento desses movimentos sociais, finalmente a relação familiar se modificou, como de fato ainda se modifica. Com a possibilidade de ter uma renda e de assumir um emprego, aos poucos a figura feminina foi se tornando independente em relação aos homens, mormente dos pais e dos maridos, buscando uma vida senão aquela obstinada ao lar. Andrade (2015, p. 268) destaca que a mulher tradicional foi reinventada com a luta de classes, em que ela pode se estabelecer na sociedade como um ser independente.
Assim, coube, sobretudo, às mulheres trabalhadoras dos séculos XIX e XX, o rompimento com a perspectiva que as mantinha atreladas ao lar e ao papel de mães, e que considerava a família “um santuário necessário em um mundo organizado ao redor dos princípios impessoais do mercado”, não influenciada por “forças socioeconômicas impessoais” (Lasch, 1999, p. 178). Como afirmara Rosa Luxemburgo, a luta de classes proletária ampliou os horizontes das mulheres trabalhadoras, “tornando suas mentes flexíveis, desenvolvendo seu pensamento e apontando para o grande objetivo a que deveriam dirigir seus esforços” (Luxemburgo, 1912; tradução da autora). O socialismo teria conseguido proporcionar o afloramento da massa de mulheres proletárias, que implicaria o questionamento da posição ocupada pela mulher na sociedade burguesa, a ruptura com os valores tradicionais religiosos e patriarcais, a rejeição da moral burguesa, o reconhecimento de seu direito de voto, associação e expressão, o anseio pela conquista de sua independência econômica e a luta pela construção de sua individualidade, por meio de seu livre desenvolvimento intelectual e profissional. Sob essa nova perspectiva, o trabalho doméstico e o cuidado com as crianças, antes concebidos como atributos naturais da mulher, passam a ser vistos como empecilhos à sua participação na vida pública através de atividades laborais e políticas. (ANDRADE, 2015, p. 268)
Apesar de não renunciarem por completo a vida doméstica (BARBOSA E CASTRO, 2013, p. 105/106), as mulheres hoje também são as provedoras do lar, dividindo seu tempo em uma dupla jornada, ao passo que os pais, ainda, por muitas vezes, são os sujeitos secundários, quando possuem algum contato com os filhos. Apesar disso, não se pode olvidar que a instituição legal da guarda compartilhada trouxe grande avanço, que em muito contribui para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Mesmo que em pouco mais de 20% dos casos (IBGE, 2017, p. 6), é necessário destacar que tal número tende a crescer, como já é sabido, já que em um ano, houve um aumento de mais de 4% (IBGE, 2017, p. 6). Isso significa que os pais estão, aos poucos, descobrindo a importância da presença paterna, exercendo seu papel mesmo quando não mais possui vínculo afetivo com a genitora de seus filhos. Conforme afirma Dias (2011, p. 462), o homem passou a ser mais participativo na vida dos filhos, descobrindo as “delícias da paternidade”.
Em razão do exercício predominante da guarda dos filhos pela mãe, construiu-se a ideia de que ela seria responsável por modular a personalidade da prole, fazendo com que essa criança odiasse o outro genitor e que, por consequência, essa atitude acarretaria o afastamento, em razão do contexto de separação conjugal. A tal fenômeno foi dado o nome de alienação parental (AP), o que levou o legislador brasileiro a editar a Lei n° 12.318/2010 e incluir no ordenamento jurídico sanções àquele que pratica qualquer ato ensejador da AP.
Apesar de a mencionada lei não estabelecer a mãe como agente sempre responsável pela incidência de AP, nos casos em que há a discussão do tema, a mãe é dita alienadora em mais de 71% dos casos, com base no que foi pesquisado no TJDF (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 112). As alegações de alienação recaem, na maioria das vezes, sobre o genitor que detém a guarda dos filhos. Conforme já analisado, a guarda é, em sua grande maioria, da mãe, o que leva a generalizações preocupantes, no sentido de se entender que ela seria a alienadora e, portanto, a responsável pelo distanciamento do pai, o que nem sempre é verdade (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 113). Conforme veremos, tal suposição pode levar a família ao declínio, frente à gravidade dos problemas que a aplicação desse entendimento da lei pode causar. Para tanto, inicialmente, fundamental compreender a natureza jurídica da Lei de Alienação Parental.
- SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL SEGUNDO RICHARD GARDNER
Editada sob a justificativa de efetivação da proteção constitucional garantida à criança e ao adolescente, a Lei n° 12.318/2010 trouxe ao ordenamento jurídico a regulamentação do fenômeno conhecido como alienação parental, definindo-o como a atuação do guardião ou responsável do infante sob seu psíquico, com o intuito de induzi-lo a odiar ou repudiar o genitor que não detém a sua guarda. Tal definição está contida no artigo 2° da referida lei.[4]
O que serviu de substrato para a definição trazida pela lei foram os estudos de Richard Gardner, conforme já mencionado. O psiquiatra estadunidense, na década de 1980, não só definiu o que seria o fenômeno em estudo como, também, posteriormente, defendeu a importância de que a alienação parental fosse considerada como transtorno, daí propondo a nomenclatura de Síndrome de Alienação Parental (SAP) e defendendo sua inserção no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5° edição (DSM-V).
Dessa forma, definiu síndrome como uma condição na qual se faz presente um conjunto de sintomas que se manifestam juntos, a exemplo do que ocorre com a Síndrome de Down, com a qual estabeleceu paralelos comparativos. Ademais, para Gardner (2002, p. 3), também há uma causa preliminar na alienação parental, como ocorre com a Síndrome de Down no tocante à causa genética, que seria a programação em conjunto com a lavagem cerebral, ambas empreendidas pelo genitor alienante. Em consequência, a criança alienada não só é vítima de toda essa situação como também é agente, contribuindo para a desqualificação do genitor alienado.
Gardner (2002, p. 3) ainda acrescentou que, pela AP ser síndrome, há casos mais leves e mais severos, tais como: uma campanha denegritória contra o genitor alienado; racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para a depreciação; falta de ambivalência; o fenômeno do “pensador independente”; apoio automático ao genitor alienador no conflito parental; ausência de culpa sobre a crueldade a e/ou a exploração contra o genitor alienado, a presença de encenações ‘encomendadas’ e a propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do genitor alienado.
Aduz Gardner que se deve usar a terminologia Síndrome todas as vezes que a alienação parental ocorrer em face de uma programação prévia por parte do genitor contra o outro genitor, uma vez que outros motivos podem gerar a alienação que não a programação (GARDNER, 2002, p. 2) e isso será possível verificar observando se a criança possui os sintomas acima pontuados. Sendo assim, para Gardner (2002, p. 2) a SAP é a combinação de dois fatores, quais sejam, a lavagem cerebral e a programação, todos executados pelo suposto genitor alienador sob a criança, de forma que, com a contribuição do infante, a partir da programação sob ele realizada, seja realizada uma campanha de ódio e repúdio contra o outro genitor que passa a ser o alienado. O autor ainda destaca que esse distúrbio, próprio da infância, ocorre quase que exclusivamente no contexto de disputa de guarda dos filhos.
Consoante aos estudos de Gardner (2002), Dias (2011) trouxe aos seus estudos a definição de alienação parental, reconhecendo também que a criança auxilia o genitor alienador na propagação da campanha difamatória contra o genitor alienado, haja vista que ela está programada e, assim sendo, segue os passos do genitor alienador, crendo na veracidade das alegações.
Muitas vezes, quando da ruptura da vida conjugal, se um dos cônjuges não consegue elaborar adequadamente o luto da separação, o sentimento de rejeição, ou a raiva pela traição, surge um desejo de vingança que desencadeia um processo de destruição, de desmoralização, de descrédito do ex-parceiro. Nada mais do que uma “lavagem cerebral” feita pelo guardião, de modo a comprometer a imagem do outro genitor, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram ou não aconteceram conforme a descrição feita pelo alienador. Assim, o infante passa aos poucos a se convencer da versão que lhe foi implantada, gerando a nítida sensação de que essas lembranças de fato aconteceram. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre genitor e o filho. Restando órfão do genitor alienado, acaba o filho se identificando com o genitor patológico, aceitando como verdadeiro tudo que lhe é informado. (DIAS, 2011, p. 462/463)
Nesse contexto, a legislação e parte da doutrina brasileira, como mencionado alhures, segue a linha de pensamento de Richard Gardner, entendendo a Lei n° 12.318/2010 como um meio necessário e hábil para solucionar conflitos nas Varas de Família. Todavia, será novamente ressaltado os riscos decorrentes da aplicação dessa legislação nos casos concretos, haja vista que vem apoiada em uma falsa noção de que o suposto alienador “não consegue elaborar o luto da separação, o sentimento de rejeição, ou a raiva pela traição” (DIAS, 2011, p. 462), ou seja, a noção de que a alienação é feita como uma forma de vingança, mormente, pela mãe da criança.
- A PROMESSA DE PROTEÇÃO ATRAVÉS DE JUSTIFICATIVAS ENCOBERTAS POR CONCEPÇÕES TRADICIONAIS MISÓGINAS
Apesar de promulgada a partir dos conceitos de Gardner, a normativa não recepcionou integralmente sua teoria, uma vez que não trouxe a terminologia defendida por ele, não adotando a nomenclatura Síndrome de Alienação Parental. De toda sorte, a legislação preocupou-se em exemplificar as ações capazes de ensejar AP, muito semelhantes àquelas trazidas por Gardner, conforme se depreende do artigo 2º, da Lei n° 12.318/2010, já citado.
O projeto de lei n° 4053/2008, que originou a Lei de AP, justificou a necessidade estatal de interferir no íntimo das famílias em razão do comando constitucional presente no artigo 227, em que são assegurados às crianças e aos adolescentes direitos fundamentais com absoluta prioridade. Entretanto, tal justificativa passa a ser controversa no ponto em que promete a proteção a todo custo às crianças e aos adolescentes, utilizando-se todos os meios necessários para coibir suposta prática de AP, mas positiva a normativa de forma que se torna viável a sua utilização contra o infante.
O artigo 2° da Lei n° 12.318/2010, inciso VI, acrescenta como formas de AP a “falsa denúncia contra o genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente”. Com isso, a legislação entende que o genitor guardião, de modo a programar o infante conta o outro genitor ou familiar, pode formular denúncia falsa, alegando prática de abuso sexual e, assim, configurar AP. Gardner (2002, p. 2) conta que a denúncia de abuso sexual é comumente usada pelo genitor alienador como uma forma de garantir melhores resultados junto ao Tribunal. Na sequência, ainda afirmou que há casos em que a AP age em um nível tão extremo, podendo repercutir até na vida adulta do infante, que passa a ser pior do que o próprio abuso sexual.
Sobre isso, no Brasil, a realidade quanto aos abusos sexuais contra menores de idade é chocante. Segundo Cerqueira e Coelho (2014) na Nota Técnica n. 11 “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estima-se que 527 mil pessoas sofrem a tentativa ou são estupradas por ano (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 6), sendo que 70% delas são crianças ou adolescentes (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 7). Analisando o perfil desses abusadores, o resultado é ainda mais perverso: 70% deles são próximos à vítima, sendo que em 24,1% dos casos eles são os pais ou padrastos do infante (CERQUEIRA; COELHO, 2014, p. 9).
O problema que surge com o advento dessa lei nasce justamente da grande probabilidade de a denúncia de abuso sexual ser verdadeira. Fundamental ressaltar que a legislação ainda impõe penalidades sérias ao suposto alienador, quando se constata a existência de uma das formas de AP prescritas no artigo 6° da mesma lei.[5] Quando em um processo o magistrado entender estarem presentes uma das formas de AP, a depender da seriedade, o genitor acusado de alienar o filho pode chegar a perder a guarda da criança, a autoridade parental, dentre outras sanções, que agem como reais punições às práticas do genitor que podem, ainda assim, serem ferramentas de proteção aos filhos.
Em análise dos dados do IPEA (CERQUEIRA; COELHO, 2014), é perfeitamente possível que um pai esteja, de fato, abusando do filho. Com as medidas penalizadoras arroladas no artigo 6°, a mãe que suspeita do suposto abuso é impedida de acessar a Justiça, a fim de manter o abusador distante da prole, em face do temor de ver contra si aplicadas as penalidades citadas no referido artigo, ressaltando a dificuldade de prova do abuso sexual. Nesse viés, a Lei n° 12.318/2010 ganha uma nova face, apesar de incluída em nosso ordenamento sob a justificativa de efetivação do comando constitucional que determina a proteção às crianças e adolescentes, torna-se uma arma poderosa que pode ser usada para entregar a criança abusada nos braços do abusador.
Insta ressaltar que ordenamento jurídico deve ser orientado pelo Princípio do Melhor Interesse do Menor, este que deve embasar quaisquer situações em que se discutam direitos da criança ou do adolescente. Segundo Amin (2010, p. 28) “trata-se de um princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para a elaboração de futuras regras (…) acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse (…)”. A edição de uma lei, evidentemente, não fica exclui esse princípio, ainda mais quando sua justificativa é efetivá-lo. Barreiras quaisquer que de alguma forma obsta o acesso à justiça quando se busca a proteção do menor, de maneira alguma será com ele compatível.
Maria Berenice Dias (2010, p. 2/3) bem destacou que o abuso sexual incestuoso cresce cada vez mais, o que significa a grande probabilidade de uma denúncia acerca disso ser de fato verdadeira. A Lei n° 12.318/2010, em consonância com os estudos de Gardner, ao arrolar a falsa denúncia como um dos atos de alienação, não se preocupou com a situação fatídica das famílias brasileiras. É claro que pode ocorrer, em um processo com a devida instrução probatória, uma sentença que evidencia que o abuso de fato não ocorreu, porém, não é propícia a alegação de pronto de que a denúncia será falsa, tão somente por conta da situação do litígio familiar, pois a boa-fé aqui não deixa de ser presumida. Ademais, o que se percebe é que as alegações de AP podem surgir como ferramenta para coibir as práticas de abuso sexual.
É perceptível como essas medidas penalizadoras não mantém conformidade com o texto constitucional, sendo que, além de não proteger o menor, obsta o acesso à justiça daquela que identifica que o filho está sendo abusado pelo próprio pai, temendo perder a guarda da criança e, com isso, ser obrigada a entregá-lo para seu violentador. Não tem outra forma de eliminar as dúvidas quanto a possível existência de abuso sexual sem que seja realizado o devido processo legal nas Varas Criminais, pois se trata de um acontecimento delicado, difícil de ser analisado, sendo, portanto, imprescindível a instrução probatória para verificar a ocorrência do crime.
Mesmo com o trâmite de um processo criminal, não é razoável, como Gardner (2002, p. 2) afirma, acreditar que a suposta alienação pode ser ainda pior que um suposto abuso sexual, invertendo a guarda em benefício do suposto abusador, até findar o procedimento. Tal iniciativa é deveras inconsequente, sendo que pode resultar em problemas imensuráveis e irremediáveis, pois significa, literalmente, entregar a vítima “de bandeja” ao seu agressor, tudo isso com a anuência legítima de uma decisão judicial.
- A LEI DE ALIENAÇÃO PARENTAL COMO UMA NOVA FERRAMENTA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
O PL 4053/2008, que originou a Lei 12.318/2010, alega que “a proporção de homens e mulheres que induzem distúrbios psicológicos relacionados à alienação parental nos filhos tende atualmente ao equilíbrio”. Essa assertiva não corresponde ao que é observado no caso concreto, uma vez, que segundo Dias (2011, p. 463), como a programação é feita pelo genitor guardião e que, as mães são as guardiãs dos filhos em quase 70% dos casos, quando o regime é o unilateral (IBGE, 2017, p. 6) e, mesmo quando da guarda compartilhada, a residência de referência ainda é a da mãe (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 104/105), o que se pode concluir é que a mãe, em quase todos os casos, será a suposta alienadora, sendo, portanto, impossível haver tal equilíbrio.
A lei segue a linha de pensamento de Gardner (2002), que defende que um só genitor é o responsável pelas consequências do término do relacionamento que transformam o psíquico da criança. Sabendo que os pais são os requerentes das ações de família alegando a incidência da AP em 72% dos casos (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 108), sendo que a mãe aparece como suposta alienadora em 71,4% dos casos (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 112) pode se concluir, portanto, que realmente o alvo é a mãe, já que ela é guardiã em quase todos os casos (BARBOSA; CHAVES, 2013, p. 104/105).
É claro que, apesar do debate necessário instaurado por Gardner, fortes críticas aos seus estudos surgiram, de acordo com Fernandes e Refosco (2018, p. 82-83), notadamente sobre o embasamento de seus estudos no estereótipo da “mulher rejeitada”, aquela descontente com o término do casamento, que tenta a todo custo atingir o ex-companheiro, utilizando-se dos meios mais sujos para garantir a infelicidade do outro, inclusive, usando os filhos como meio para atingir esse fim.
Em 2016, Arnaldo Faria de Sá[6], então deputado federal em São Paulo/SP, propôs o Projeto de Lei n° 4488/2016, que pretendia acrescentar ao artigo 3° da Lei n° 12.318/2010, a tipificação do crime de Alienação Parental, conferindo pena de detenção de três meses a três anos, com a possibilidade de ser agravada[7]. Por bem, o projeto de lei foi retirado de tramitação a pedido de seu próprio subscritor. A gravidade da criminalização da AP é inconteste, já que em grande parte dos casos, submetidos a uma análise concreta, como foi aquela feita por Luciana de Paula Gonçalves Barbosa e Beatriz Chaves Ros de Castro, no TJDF (BARBOSA; CASTRO, 2013), notou-se que não houve alienação parental de fato, sendo que houve um alto índice de requisições alegando a AP quando o outro genitor apresenta denúncia de abuso sexual (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 196).
Ainda, de todos os casos analisados, em apenas um foi constatado o risco emocional à criança causado pela mãe (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 196). O mais importante frente a tudo isso é que, ainda segundo as autoras, durante a pesquisa, foi concluído não haver relação entre as falsas acusações de abuso sexual com a incidência da AP, sendo que no total de cinco casos em que houve a denúncia de abuso sexual, em quatro deles o abuso era verdadeiro (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 194/195).
Dos cinco casos em que houve acusação, nos autos, de abuso sexual contra a criança em questão ou algum outro filho do sistema familiar perpetrado pelo pai, em quatro o SERAF confirmou indícios de abuso. Em todos eles, o pai perpetrador do abuso sexual acusava a genitora da criança de alienação parental. Identificou-se, entretanto, que o movimento da mãe de evitar ou restringir o acesso da criança ao núcleo familiar paterno ocorria em virtude do receio de novos abusos. (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 194/195)
Fato curioso é o parágrafo 5° do PL n° 4.488/2016, que delega a missão de identificar a AP ao juiz, ao membro do Ministério Público e, até mesmo, aos servidores, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade. É indiscutível a incoerência de tal disposição, pois é estreme de dúvidas, até mesmo para Gardner (2002), que a alienação parental é um fenômeno psíquico, devendo, portanto, ser analisado por um profissional competente, por meio de um Acompanhamento Terapêutico, o que conferiria à lei maior efetividade, em especial, no caso de litígio, para a efetivação das visitas (FERNANDES; REFORSCO, 2018, p. 80). Entretanto, as demais medidas são invasivas e extremas, com cunho punitivista, controversos para o real objetivo dessa lei, qual seja, a proteção dos direitos da criança e do adolescente.
Pode-se se dizer que, sob a vigência da Lei de Alienação Parental, ocorre a tentativa de imputar a uma só pessoa as mazelas que a família têm passado. No término de um relacionamento, é inegável que todas as partes ali envolvidas estejam passando por um momento de sofrimento e muita dor, tanto os pais quanto as crianças advindas do casal. Procurar um culpado nessa situação só fortaleceria as crises que a família enfrenta, impossibilitando ainda mais a coparentalidade, ou seja, a parceria dos genitores em garantir o melhor para sua prole, por causar uma cisão entre os membros da família e a “potencializar e tornar crônico o conflito, causando retrocesso no caminho do desenvolvimento maturacional dos seus membros, que passam a depender do Judiciário para as deliberações familiares” (FERNANDES; REFOSCO, 2018, p. 6).
Ainda de acordo com essas autoras, o que se deve buscar é uma forma de melhorar os vínculos da família, e não atribuir uma sanção àquele que parece culpado pelo problema gerado por todos. A Constituição Federal de 1988 se preocupou justificadamente com a proteção da família, já que é uma instituição de enorme força, aquela que molda o ser humano desde o princípio, educando-o, mostrando os princípios que devem ser adotados. Proteger a família não significa, de forma alguma, impedir a atuação protetiva de uma mãe, por exemplo, na suspeita de um mal contra seus filhos (FERNANDES; REFOSCO, 2018, p. 6). Fernandes e Refosco (2018) ressaltam a importância da utilização do Acompanhamento Terapêutico:
Dessa forma, o acompanhamento psicológico possibilita um novo olhar da família sobre a sua dinâmica e litigiosidade, e assim se revela mais transformador do que as demais medidas que, embora sejam importantes no universo social e operacional familiar, não interferem na subjetividade do sujeito nem nos seus vínculos. Corrobora a afirmação de maior adequação do acompanhamento psicológico o fato de que os efeitos colaterais de algumas das medidas podem ser muito traumáticos e desestruturantes, em especial os das sanções drásticas, tais como a inversão da guarda ou a suspensão da autoridade parental (BRUCH, 2001b, p. 389; JOHNSTON; KELLY, 2001). No entanto, outras medidas podem ser pouco efetivas, tais como a imposição de multa ou a advertência. Importa destacar que qualquer medida tomada contra um dos pais trará repercussões e consequências na vida dos filhos (GUTFREIND, 2010). (FERNANDES; REFOSCO, 2018, p. 86)
Ademais, as autoras ainda ressaltam a necessidade de, para a devida eficácia do procedimento, que sejam acompanhados todos os integrantes do sistema familiar, pois os tratamentos individuais contribuem para a polarização das partes no litígio (FERNANDES; REFOSCO, 2018, p. 86). Conforme se evidencia de todo o exposto, o Acompanhamento Terapêutico é uma alternativa não punitiva que busca melhorar a convivência da família, de modo a tratar todos os que estão naquele sistema familiar fragilizado. Busca-se uma forma isonômica de tratamento, partindo do pressuposto de que perante os litígios familiares, todos os indivíduos integrantes auxiliam na geração de problemas, pois todos estão em uma situação de sofrimento. Tende-se, com isso, diminuir as disputas existentes nesses casos, proporcionando o fortalecimento da coparentalidade. Nas palavras de Fernandes e Refosco (2018, p. 86), “busca-se obstar a petrificação dos discursos e patologização da criança, superando-se a lógica adversarial do conflito familiar judicializado”.
A instauração de um procedimento nas Varas de Família, a fim de resolver problemas relativos à custódia da criança ou outros problemas ligados aos filhos, jamais deve ser promovida com o intuito de disputa, no sentido de que um dos litigantes tem que sair vitorioso do pleito, sendo que o troféu seria a infelicidade do outro genitor. Há outros meios senão àqueles propostos pela lei 12.318/2010 que reestruturam o instituto familiar, sem que para isso sejam determinadas sanções àquele que aparentemente deu causa ao problema. Conforme já analisado, o Acompanhamento Terapêutico é a medida mais eficiente que o texto legal adotou, haja vista a inviabilidade lógica dos demais, sendo que a advertência e a multa previstas no artigo 6° são irrisórias, ao passo que a inversão da guarda e suspensão da autoridade parental são desmedidas, agravando ainda mais o problema. É sabido que a realização de Acompanhamento Terapêutico em todas as famílias necessitadas terá maiores gastos, todavia, garantir a saúde é função do Estado, conforme o artigo 6° da Constituição da República, ainda mais quando se estabelece mais uma ocasião em que se faz necessário o auxílio de um profissional capacitado, que é o caso da lei em questão.
- A GUARDA COMPARTILHADA COMO MEIO DE SUBSISTÊNCIA DA COPARENTALIDADE
Não obstante, outro fator que é capaz de elidir os conflitos parentais, conforme já discorrido no presente, é a adoção da guarda compartilhada, regime em que ambos os pais devem exercer o poder familiar sob os filhos de forma igualitária, sem redefinir os papéis dos genitores quando do término do relacionamento, como de praxe é feito no regime unilateral de guarda. Nesse diapasão, quando ambos os genitores estão presentes na vida e nas responsabilidades dos filhos, mais fácil se torna superar qualquer dissenso advindo do término da relação. O que importa, com isso, é a manutenção da coparentalidade, mesmo quando o aspecto conjugal já chegou ao fim (BARBOSA; CASTRO, 2013). No mesmo sentido, Groeninga (2011) complementa a subsistência da responsabilidade dos genitores, igualitariamente, mesmo que em outro modelo de guarda, que não seja a compartilhada, destacando que “A responsabilidade dos pais na Guarda Unilateral não é menor que na Guarda Compartilhada” (GROENINGA, 2011, p. 194).
Diante da pesquisa realizada, o que se percebe é que a causa do afastamento da criança e do adolescente do genitor não guardião é a ausência deste na vida dos filhos após o término da relação conjugal, e não a possível programação realizada pelo outro genitor sob o filho para que este o odeie. Conforme foi possível analisar, quando do fim do casamento ou da convivência, os pais tendem a se afastarem dos filhos como uma forma de superar o luto do fim do relacionamento (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 107). É certo que quando o casal se separa, os filhos continuam sendo filhos, não podendo ocorrer o fim da coparentalidade. Os pais, mesmo separados, possuem o dever de se manterem ativos na vida dos filhos, e não somente realizar visitas quinzenais às crianças como uma forma de mostrar que ainda resta alguma preocupação pela prole. Anote-se que, segundo Barbosa e Castro (2013, p. 105), no TJDF, dos casos analisados, as alegações de AP eram recorrentes no regime unilateral de guarda, quase que inexistindo quando se tratava de compartilhada.
A grande solução desse impasse não é, certamente, a utilização de uma lei extremamente penalizadora como uma ferramenta de disputa, com o intuito de ferir o ex-cônjuge, sem pensar no bem estar do menor. Aqui não se buscou defender a inconstitucionalidade da lei, mas sim a sua ineficácia, visto que, quando aplicada ao caso concreto, em sua maioria, tende a falhar, se mostrando claramente tendenciosa, haja vista a situação fática das famílias brasileiras. Urge destacar que está em trâmite um projeto de lei, de número 498/2018, cuja autoria pertence à Comissão Parlamentar de Inquérito dos Maus-Tratos, do Senado Federal, que pretende revogar a Lei de Alienação Parental, por acreditar que o óbice estatuído pela lei quanto ao abuso sexual, previsto no art. 2°, inciso VI, abre margem para o uso do genitor que alega estar sendo alienado, denunciado pelo abuso, conseguir reverter a guarda em seu favor, pois utiliza-se de artimanhas para induzir o outro genitor a formular uma denúncia precária contra ele.
Na medida em que se conclui com essa pesquisa que, de fato, existem muitos casos em que o pai entra com ação alegando alienação parental em face da mãe que o denunciou por abuso sexual contra o filho, como uma forma de encobrir o ato incestuoso (BARBOSA; CASTRO, 2013, p. 194/195), o PL 498/2018 torna-se razoável, pois há mais malefícios que benefícios na lei, esta que não consuma o princípio de melhor interesse do menor e obsta o acesso à justiça de muitas mulheres que visam a proteção de seus filhos, conforme discorrido alhures.
- CONCLUSÃO
Os estudos iniciados por Richard Gardner a respeito da Síndrome de Alienação Parental ou, tão somente, alienação parental, foram deveras necessários para o debate do tema que vem sendo hoje amplamente utilizado nas demandas das Varas de Família. A partir desses estudos, foi positivada em nosso ordenamento jurídico a Lei 12.318/2010, sob a justificativa de proteção aos interesses da criança e do adolescente (BRASIL, 2008). Desde sua promulgação, tal lei vem sendo criticada por diversos escritores[8]. Isso se deve ao fato de sua redação ser tendenciosa, abrindo espaço para inúmeras interpretações essencialmente misóginas, pois, quando analisados os casos in concreto e o atual perfil das famílias brasileiras, percebe-se que o alvo das penalidades previstos no texto legal é um só: a mulher.
Partindo dessa perspectiva, analisando a pesquisa realizada no TJDF pela psicóloga Luciana de Paula Gonçalves Barbosa e pela assistente social Beatriz Chaves Ros de Castro, atuantes no Serviço de Assessoramento a Varas Cíveis e de Família (SERAF) (BARBOSA; CASTRO, 2013), foi possível concluir que os processos que invocam a alienação parental como mecanismo de defesa, em grande parte das vezes, não são procedentes, pois é utilizada apenas como meio para garantir a “vitória” na ação judicial. Ademais, notou-se que não há correspondência entre alienação parental e abuso sexual. Como é sabido, a Lei de Alienação Parental adotou a falsa denúncia de abuso sexual como ato capaz de configurar a alienação. Em contrapartida, na pesquisa realizada, constatou-se que ao invés de falsas denúncias de abuso, havia falsas alegações de alienação parental, sendo que quando da alegação de alienação de um lado e abuso de outro, o abuso era, majoritariamente, a circunstância verdadeira.
No mesmo sentido, os personagens envolvidos eram, na maioria dos casos, o pai como requerente da ação judicial alegando alienação parental e a mãe como polo passivo da demanda, sendo a suposta alienadora. Outrossim, quando da alegação de abuso sexual, a mãe era, normalmente, a que figurava como polo ativo da demanda. Após o conhecimento desses dados, pode ser concluído que a aplicação da Lei 12.318/2010 é extremamente banal, já que é invocada na Justiça para desmoralizar a genitora no litígio familiar. Em contrapartida, foi constatado que o único meio hábil de se chegar a uma justa decisão nesses casos é com a realização de um Acompanhamento Terapêutico, este que possibilita o estudo psicossocial em toda a família, sem apontar eventuais culpados pelos dissensos dentro do estabelecimento familiar.
Por fim, dentre as modalidades de guarda, é na guarda unilateral que surgem os conflitos na Justiça, em sua maioria. Quando o regime é o de guarda compartilhada, quase nunca se constata alienação parental, uma vez que ambos os genitores se comprometem em participar ativamente da vida da prole, sem parecer um mero figurante na vida dos filhos ou deixar que os filhos virem órfãos de pais vivos. É determinante que o fenômeno da coparentalidade subsista quando ausente a conjugalidade. Dessa forma, improvável falar em alienação parental, tornando sua utilização cada vez menos banal, excluindo as possibilidades de aplicação errônea e, assim, efetivando a proteção constitucional dos menores.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduanda da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
[2] Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
[3] Art. 1.584.§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
[4] Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
[5] Art. 6o Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso: I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador; II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado; III - estipular multa ao alienador; IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial; V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; VII - declarar a suspensão da autoridade parental. Parágrafo único. Caracterizado mudança abusiva de endereço, inviabilização ou obstrução à convivência familiar, o juiz também poderá inverter a obrigação de levar para ou retirar a criança ou adolescente da residência do genitor, por ocasião das alternâncias dos períodos de convivência familiar.
[6] Atualmente é Deputado Federal em São Paulo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com mandato de 2015-2019. Informações disponíveis em: <https://www.camara.leg.br/deputados/73434/biografia>. Acesso em: 6 out. 2019.
[7] Art. 3.º (...) § 1.º - Constitui crime contra a criança e o adolescente, quem, por ação ou omissão, cometa atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza. Pena – detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos. § 2.º O crime é agravado em 1/3 da pena: I – se praticado por motivo torpe, por manejo irregular da Lei 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos; II – se a vítima é submetida a violência psicológica ou física pelas pessoas elencadas no § 1.º desse artigo, que mantenham vínculos parentais ou afetivos com a vítima;III – se a vítima for portadora de deficiência física ou mental; § 3.º Incorre nas mesmas penas quem de qualquer modo participe direta ou indiretamente dos atos praticados pelo infrator. § 4.º provado o abuso moral, a falsa denúncia, deverá a autoridade judicial, ouvido o ministério público, aplicar a reversão da guarda dos filhos à parte inocente, independente de novo pedido judicial. § 5.º - O juiz, o membro do ministério público e qualquer outro servidor público, ou, a que esse se equipare a época dos fatos por conta de seu ofício, tome ciência das condutas descritas no §1.º, deverá adotar em regime de urgência, as providências necessárias para apuração infração sob pena de responsabilidade nos termos dessa lei.
[8] Sobre isso, ver BARBOSA; CASTRO (2013) e FERNANDES; REFOSCO (2018).
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