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O dever constitucional da família na proteção dos idosos em tempos de pandemia
O dever constitucional da família na proteção dos idosos em tempos de pandemia
Tatiana Tomie Onuma[1]
RESUMO
Reconhecer o papel da família na proteção e promoção dos direitos da pessoa idosa se apresenta como uma das questões principais na discussão acerca da busca por uma maior e mais efetiva tutela dos direitos humanos e fundamentais na velhice. O cenário inédito e emergencial criado pela pandemia ressalta a importância dessa discussão, considerando sobretudo a potencialidade das mitigações e opressões dos direitos do idoso, da sua personalidade, dignidade, liberdade e autonomia.
Palavras chave: Envelhecimento; Direito de Família; Pandemia.
ABSTRACT
Recognizing the role of the family in protecting and promoting the rights of the elderly is one of the main issues in the discussion about the in pursuit of a greater and more effective protection of human and fundamental rights during the ageing. The unprecedented and emergency scenario, created by the pandemic, highlights the importance of this discussion, especially considering the potential for mitigation and oppression the rights of the elderly, their personality, dignity, freedom and autonomy.
Keywords: Ageing; Family Law; Pandemic.
- Os obstáculos atuais na proteção do envelhecimento
A Organização dos Estados Americanos conceitua um ideal de envelhecimento denominado ativo e saudável, correspondendo àquele que “otimiza as oportunidades de bem-estar físico, mental e social; de participar em atividades sociais, econômicas, culturais, espirituais e cívicas”[2].
Nessa mesma esteira, a ONU elenca como princípios da pessoa idosa a independência, participação, assistência, auto-realização e dignidade[3], a partir dos quais se pode vislumbrar a maior dinamicidade e ampliação de tutela e proteção que se pretende conferir aos idosos, como objetivos da agenda de Direitos Humanos.
Em sentido oposto, se percebe que, atualmente, ainda há um desequilíbrio entre a autonomia/independência almejada na tutela do idoso e a pretensão de proteção jurídica, sobretudo dentro das relações familiares, que, por vezes, enxergam na pessoa idosa um indivíduo fragilizado, beirando uma incapacidade de expressar e fazer valer suas próprias vontades, anseios, sonhos e preferências.
O paradoxo da autonomia e proteção da pessoa idosa permeia a atividade estatal, social e também a familiar, encontrando estreita ligação com o art. 230 da Constituição Federal que prevê, respectivamente, o Estado, a família e a sociedade em geral como responsáveis pelo dever de amparo e proteção “assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
A proteção do idoso que busca ser realizada pelo núcleo familiar, por recorrentes vezes, tende à uma “infantilização” do idoso, deixando de o conceber como verdadeiro sujeito de direito, mas o compreendendo a partir de preocupações majoritariamente em questões de saúde e previdência social.
A defesa de um envelhecimento ativo e saudável, como proposto pela ONU, encontra certos entraves na forma como se enxerga a pessoa idosa dentro da própria família, havendo casos de discriminação, objetificação e até diminuição do idoso pelos seus próprios familiares.
Não são poucas as vezes quando se retrata o idoso, dentro da família, como um “peso”, alguém que apenas gera despesas e desenvolve problemas de saúde. Ainda, há casos nos quais, quando o idoso busca ser mais ativo e independente, tem sua postura caracterizada como “teimosa”, “ranzinza” ou outros termos que demonstram a dificuldade em conceber o idoso como pessoa que, ainda que em processo de envelhecimento e detentor de certas vulnerabilidades, é plenamente capaz e merece ter sua própria autonomia e personalidade respeitados.
Por isso, sinteticamente, pode-se dizer que os principais obstáculos enfrentados pelos idosos na defesa de seu envelhecimento ativo e saudável são de ordem pública, na ausência de políticas públicas que os reconheçam independentes e não apenas ligados à questões de saúde e previdência social; também de ordem social, no combate à descriminação e preconceitos voltadas à pessoa idosa, como a velhofobia[4]; e de ordem familiar, na necessidade de uma melhor relação referente ao paradoxo de autonomia e proteção[5].
Acrescenta-se a tudo isso particularidades trazidas pelos recortes de gênero[6], cultura, raça e condições socioeconômicas que também influenciam de diversas formas o modo como se protege os diferentes perfis de idosos.
A proteção crescente que se desenvolveu ao longo dos anos em relação aos direitos do idoso, com o dever constitucional de sua proteção e o reconhecimento do envelhecimento como direito personalíssimo (art. 8º, Estatuto do Idoso) de fato são marcos importantes, mas ainda encontram obstáculos que devem ser observados e que podem agravar situações nas quais as vulnerabilidades do idoso são ainda mais expostas e potencializadas, como no atual cenário pandêmico.
- Dever constitucional da família na proteção do idoso e do envelhecimento ativo e saudável
Em um primeiro momento, ao repensar a “retribuição” de um afeto e auxílio dispendido pelos pais aos seus filhos, poderia se considerar um dever moral dos descendentes em relação aos seus genitores.
Todavia, assim como as relações familiares são plurais e particulares em suas próprias histórias e características, depender de um cuidado derivado unicamente desse dever moral retributivo faria com que a proteção familiar do idoso fosse muito frágil e sem garantia.
A própria necessidade da positivação de um comando acerca desse dever de amparo e proteção do idoso já demonstra como é necessária a ampliação e concretização da pretendida tutela.
O bem-estar, dignidade e garantia dos direitos fundamentais são pontos crucias de proteção aliados à busca da promoção do idoso como sujeito de direito e indivíduo autônomo e repersonalizado no ambiente familiar.
Por isso, pode-se dizer que um dos elementos fundamentais para a efetiva proteção dos direitos dos idosos reside na afetividade, isto é, na preservação de vínculos familiares não apenas ligados ao carinho e cuidado, mas compreendendo a afetividade também como preocupações de assistência financeira, física, moral e promotora do bem-estar social e funcional do idoso.
Para ilustrar o cenário debatido, destaca o disposto no art. 3º, em seu caput e inciso V que coloca que:
Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência;
Se reitera o dever da família, junto à sociedade e Estado, em garantir os direitos fundamentais e sociais da pessoa idosa, bem como destaca que essa proteção deve ser feita com “absoluta prioridade”, preferência essa que deve ser tida também pela família.
A compreensão de todos os pontos levantados se revela, pois, coesa com o processo de constitucionalização do Direito Civil e consequentemente do Direito de Família, a partir de uma despatrimonialização e repersonalização, da valorização da dignidade, liberdades individuais e, assim, tornando-se espaço de concretização dos direitos à velhice, a partir da atenção à função da família alicerçada na afetividade e solidariedade derivada do dever constitucional de amparo e proteção.
- Repensar a função social da família, o envelhecimento e a pandemia
Como destacado, a função social da família, hoje, a partir da constitucionalização do direito e do diálogo civil constitucional das relações familiares, requer que o núcleo familiar seja concebido como espaço de promoção e materialização dos direitos fundamentais e da personalidade de seus membros.
Logo, repensar a função social da família na contemporaneidade é entender o envelhecimento como processo que deve ser protegido e encarado como direito personalíssimo e de responsabilidade da família também.
O cenário criado pela pandemia do novo vírus vem, então, escancarar os obstáculos antes já percebidos pelos direitos do idoso, expondo ainda mais às vulnerabilidades e discriminações detidas e requerendo, mais do que nunca, o repensar do papel da família na proteção e promoção dos referidos direitos.
A família, então, detentora do dever de cuidado e proteção tem um papel ainda mais significativo, considerando o isolamento social aos quais todos estão submetidos e um cuidado ainda maior a ser dispendido em relação aos familiares idosos. Todavia, assim como alertado anteriormente, não se deve promover pretenso cuidado revestido por uma infantilização e supressão da autonomia do idoso.
O direito de ir e vir prejudicado, bem como a fragilidade e riscos à saúde não são justificativas para um isolamento integral de qualquer atividade a ser desempenhada pela pessoa idosa. Pelo contrário, a necessidade de uma agenda familiar que priorize a busca por atividades lúdicas, manutenção de exercícios físicos e cognitivos da pessoa idosa dentro de casa se revelou ainda mais essencial.
Outrossim, idosos institucionalizados representam um grupo em extremo risco e não devem, sobretudo nesse momento, serem esquecidos e abandonados por suas famílias, ainda que o ato de cuidado não ocorra pessoalmente.
Mais do que a simples busca da afetividade traduzida por um carinho e presença física, mostra-se patente como referida afetividade pode ser revelada por meio de condutas e comportamentos que vão além do contato pessoal, corroborando com a ideia do dever constitucional de amparo[7] e proteção não se tratar da mera convivência física familiar e uma obrigação anímica de afeto, mas sim envolve todas as medidas capazes de permitir o desenvolvimento da personalidade e a manutenção do bem-estar e da dignidade do familiar idoso.
- Conclusões
O reconhecimento da família como detentora de um dever de amparo e proteção da pessoa idosa deve ser reforçado em meio à pandemia que se instalou ao redor do mundo.
Vulnerabilidades foram potencializadas, discriminações tornaram-se ainda mais banais, frequentes e com uma conotação ainda mais desmerecedora do direito à vida dos idosos, ainda que dentro de suas próprias casas e entre seus familiares.
A dificuldade da família em proteger o idoso, seja fisicamente, economicamente, ou pela impossibilidade de um convívio familiar não deve afastar a ideia da necessidade e importância dessa proteção, mas sim elevá-la ainda mais, buscando novas formas de contato e demonstração de um comportamento pautado pela afetividade, zelo e cuidado pelos familiares idosos.
- Referências bibliográficas
BARRUCHO, Luis. Pandemia de coronavírus evidencia 'velhofobia' no Brasil, diz antropóloga. BBC News. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52425735. Acesso em: 05 de maio de 2020.
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
_______. Presidência da República. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
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ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Interamericana sobre a proteção dos direitos humanos dos idosos. Assemblei Geral. Washington. 2015.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Princípios das Nações Unidas para a pessoa idosa. Assembleia Geral da ONU. Resolução 46/91 de 16 de Dezembro de 1991.
[1] Mestranda em Direitos Humanos e Fundamentais pela UFMT. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Advogada.
[2] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Interamericana sobre a proteção dos direitos humanos dos idosos. Assemblei Geral. Washington. 2015.
[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Princípios das Nações Unidas para a pessoa idosa. Assembleia Geral da ONU. Resolução 46/91 de 16 de Dezembro de 1991.
[4] BARRUCHO, Luis. Pandemia de coronavírus evidencia 'velhofobia' no Brasil, diz antropóloga. BBC News. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52425735. Acesso em: 05 de maio de 2020.
[5] NUMHAUSER-HENNING, Ann. Elder law and its subject: The contextualised ageing individual. Ageing and Society, 1-20. Cambridge University Press. 23.11.2019. doi:10.1017/S0144686X19001284. Acesso em: 27.03.2020. p. 4
[6] HELP AGE. Construyamos un mundo más equitativo para las mujeres mayores. Disponível em: http://www.helpagela.org/noticias/construyamos-un-mundo-ms-equitativo-para-las-mujeres-mayores/. Acesso em: 20 de maio de 2020.
[7] LOBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: < www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/78.pdf >. Acesso em: 20 de maio de 2020.
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