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Pela Criação de um fundo especial de garantia ao pagamento de Pensão alimentícia
Pela criação de um fundo especial de garantia
Ao pagamento de pensão alimentícia
Rafael Calmon
Em diversos países do mundo ocidental, já faz bastante tempo que o devedor não pode ser preso pelo inadimplemento da obrigação alimentar estabelecida em favor de seus filhos. Essa espécie de medida coercitiva foi banida por completo de suas respectivas ordens jurídicas, em respeito à dignidade que toda e qualquer pessoa humana possui.
Na Europa, por exemplo, a Convenção Europeia de Direitos Humanos passou a estabelecer, a partir de seu protocolo n. 6, datado do distante ano de 1963, que “ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.”
Como o não faz qualquer exceção à obrigação de natureza alimentar, a disposição é aplicável mesmo a ela.
O que é curioso e pode, ao mesmo tempo, soar contraintuitivo para alguns, é que, mesmo sendo proibido de exigir a prisão do devedor, as chances de o credor desses mesmos alimentos deixar de recebe-los são ínfimas, sobretudo se ele for menor ou incapaz. Isso porque, além de existir variadas medidas executivas colocadas à sua disposição, esses países se encarregaram de estabelecer um Fundo de Garantia ao Pagamento da Pensão Alimentícia que lhe fornece subsídios, no caso de o obrigado principal por seu sustento, deixar de cumprir o que lhe for devido.
Portanto, na eventualidade de não conseguir receber o crédito através do processo executivo, basta que acione o Fundo para que passe a perceber uma soma periódica em dinheiro.
Para que este ensaio não se estenda demasiadamente sobre a experiência estrangeira, serão mencionados apenas alguns países da Europa que o adotaram ou criaram algum mecanismo a ele assemelhado.
Na Espanha, por exemplo, o "Fondo de Garantía del Pago de Alimentos", criado pela Ley n. 42/2006, e regulamentado pelo Decreto Real 1.618/07, assegura que filhos menores de idade ou portadores de determinadas deficiências consigam receber a pensão a si devida por seus pais, através de algo assemelhado a um "adiantamento" pago pelo Estado, o qual se sub-rogará perante o obrigado, e poderá buscar o ressarcimento ao tempo e modo devidos.
Em Portugal, existe uma ferramenta bastante parecida. O "Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores", estabelecido pela Lei n. 75/98, tem por objetivo fornecer ao alimentando menor de idade ou em processo de educação ou formação profissional, uma prestação social que venha substituir o que o alimentante deveria prover, durante determinado tempo e mediante idêntica sub-rogação em todos os direitos do beneficiário, até o limite daquilo que não tenha sido pago.
Na Bélgica, idem. O alimentando pode acionar o "Service des Créances Alimentaires" (SECAL) para que possa receber um adiantamento relativamente a uma ou mais prestações das pensões de alimentos, o qual ficará automaticamente sub-rogado em todos os direitos, ações e garantias titularizados por aquele em face do devedor.
Na Itália, semelhante procedimento pode ser adotado, inclusive pelo ex-cônjuge que ainda não tenha sido divorciado, bastando que se busque amparo perante o “Fondo di Solidarietà a Tutela del Coniuge in Stato di Bisogno e ai Figli”, criado pela Lei n. 208/2015, com o objetivo de que o Estado lhe pague a importância já reconhecida a título de pensão no lugar do alimentante.
Na Alemanha, o Fundo de Adiantamento de Manutenção (Unterhaltsvorschuss) proporciona resultado semelhante.
Finalmente, algo bem próximo acontece na França, onde o alimentante pode pedir auxílio à “Caisse D'allocations Familiales” (CAF) ou à “Caisse de Mutualité Sociale Agricole” (CMSA) para que tais órgãos governamentais lhe efetuem o pagamento adiantado da pensão alimentícia, sob a forma de subsídio de apoio à família (L'allocation de Soutien Familial - ASF), podendo, ainda, recorrer ao Tesouro do Estado no intuito de que este efetue a recuperação da verba devida a título de alimentos, utilizando-se dos mesmos procedimentos previstos para a recuperação de tributos não pagos.
Grosso modo, a coisa funciona mais ou menos assim: o credor incapaz ou vulnerável que tenha a obrigação alimentar e o respectivo quantum reconhecido por acordo ou declarado por sentença judicial tenta, amigável ou judicialmente, receber o que lhe é devido perante o devedor, mas não logra êxito. Fazendo a comprovação desse fato e preenchendo uma série de requisitos impostos por lei, aciona o Fundo e passa a receber uma quantia mensal, equivalente àquela que lhe deveria ser paga pelo provedor inadimplente. Em contrapartida, o Estado, na condição de mantenedor do Fundo, se sub-roga automaticamente em todos os direitos e ações por aquele titularizados em face deste, até o limite da dívida. Na sequência, se utiliza dos mesmos procedimentos e mecanismos previstos no ordenamento para a recuperação de tributos não pagos, inclusive sob a aplicação de juros diferenciados e mais altos, com o objetivo de recobrar a dívida, sob o grande atrativo de que a pretensão não é atingida pela prescrição.
No Brasil, ainda não existe expediente parecido. Parece que preferimos manter em nosso sistema a antiquada, obsoleta e desproporcional medida executiva da prisão civil, como se ela fosse o remédio definitivo para a cura da crise de inadimplemento alimentar que nos assola e que, graças à pandemia do COVID-19, permanecerá entre nós, de modo especialmente agravado, por um tempo ainda indefinido.
Não se pode negar que, em tempos de normalidade, a prisão civil seja bastante eficaz para o recebimento do crédito alimentar. No cotidiano forense, inclusive, é bastante comum escutar-se uma antiga expressão, vazada nos seguintes termos: “prenda o devedor que ele paga”.
Mas, a pergunta que não se costuma fazer, mas que deveria complementar o jargão acima transcrito, é: a que custo?
Sim, a que custo?
É que as pessoas parecem se esquecer que mesmo a prisão civil possui custos. Altos e diversificados custos, para ser mais preciso.
Sob a perspectiva dos direitos humanos, esse custo vem representado pelo verdadeiro déficit de dignidade da pessoa humana, pois, pela literalidade da lei, o devedor acaba sendo preso em estabelecimento de segurança máxima ou média, próprio para o cumprimento de prisão-pena (criminal) em regime fechado (CPC, art. 528, §4º), quando, ao certo, deveria ser encarcerado em cadeia pública, ou, em sua falta, em estabelecimento adequado (LEP, art. 201). Além de se mostrar absolutamente imprópria, essa alternativa se revela desproporcional ao atingimento da finalidade buscada pelo sistema, que é meramente coagir o devedor a cumprir a obrigação alimentar e não o punir por seu descumprimento.
Pra piorar a situação, não se pode esquecer que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um “Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)” no sistema carcerário brasileiro, graças às violações generalizadas de direitos fundamentais, aliadas à reiterada inércia estatal em conte-las (ADPF 347).
Já sob a perspectiva do direito internacional, esse déficit humanitário fornece motivos ainda maiores de preocupação, os quais, por sua vez, projetam consequências desestabilizadoras sobre o já não tão sólido e consagrado estado de democracia de nosso país. Não pelo puro e simples fato de a prisão civil estar sendo aplicada pela autoridade judiciária, pois existe uma robusta base normativa conferindo suporte a essa iniciativa (Constituição Federal, art. 5º, LVXII; Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 7.7), mas, sim, porque, desacompanhada de uma proteção sólida a direitos humanos básicos (como a própria salvaguarda da vida do devedor preso), e sem conseguir desempenhar a contento suas funções fundamentais (como o amparo adequado ao credor de alimentos), não há instituição democrática que resista.
Com isso, a imagem do Brasil perde prestígio perante a comunidade global, dificultando ainda mais o desenvolvimento nacional.
Sob a perspectiva jurídica, o custo vem representado pela gritante desconexão existente entre o sistema de direito processual penal (de índole preponderantemente punitiva) e o sistema de direito processual civil (de natureza preponderantemente coercitiva). É que enquanto o primeiro vem buscando métodos despenalizadores e desencarceradores para serem aplicados em substituição à prisão-pena (Súmulas Vinculantes n. 26 e 56), o segundo parece caminhar em sentido oposto, pois agravou a situação do indivíduo que deve suportar a prisão-coerção, ao aumentar seu prazo mínimo (que agora é de 01 mês, quando, originariamente, a Lei de Alimentos não prescrevia prazo mínimo) e agravar a forma de seu “cumprimento” (que agora deve ocorrer em “regime fechado”).
Finalmente, sob a perspectiva econômica, o custo pode ser aferido monetariamente mesmo. Isto porque, segundo recente auditoria coordenada pelo Tribunal de Contas da União – TCU (processo n. 003.673/2017-0)[1], a manutenção de um preso em estabelecimentos prisionais do Brasil custa aos cofres públicos – na verdade, ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), órgão gerido pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública - aproximadamente, R$ 2.000,00 (dois mil reais) por mês[2].
Apenas para que possa ser feita uma ligeira comparação, o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB)[3], estima que o custo mínimo por aluno gira em torno dos R$ 2.800,00 (dois mil e oitocentos reais) por ano[4].
Isso significa que o valor que o Estado tem que desembolsar para manter uma pessoa presa por apenas um mês é praticamente equivalente àquele que teria que gastar para manter um aluno estudando por um ano inteiro.
Além disso, dois pontos adicionais jamais podem esquecidos: a) o aprisionamento não torna certo o pagamento da dívida, já que o devedor pode sequer possuir condição financeira ou até mesmo optar por não honrar com sua obrigação, e; b) o montante gasto para o aprisionamento jamais é recuperado, já que o Estado brasileiro prefere utilizar a prisão civil para compelir o devedor a pagar, do que fornecer diretamente a pensão ao credor, mediante sub-rogação em seu direitos e ações em face daquele.
É claro que o tão só funcionamento da máquina judiciária demandaria custos diversos, não havendo razão para ser diferente com as medidas executivas. Porém, quando se atenta às particularidades das ações e execuções de alimentos, observa-se, sem muita dificuldade, que em uma enormidade de casos, a dívida integral que leva o devedor à cadeia - representada pelo somatório das prestações vencidas com as vincendas -, pode nem chegar aos R$ 2.000,00 que os cofres públicos precisam desembolsar por cada mês de encarceramento. Aliás, como a lei processual não estipula um valor mínimo para que a prisão civil possa ser decretada, em alguns desses casos, as dívidas podem ser bem pequenas, girando em torno de R$ 100,00 ou R$ 200,00. Mais do que isso. Alguns devedores insistem no inadimplemento mesmo depois de terem sido presos, o que faz com que, em não poucos casos, eles voltem à prisão para que paguem outras prestações futuramente inadimplidas, onerando ainda mais os cofres públicos.
Sem muito esforço, poderia ser imaginado o seguinte cenário, que se mostra bem próximo do que acontece no dia a dia do foro: uma dívida de R$ 3.500,00, constituída por três prestações de R$ 500,00 vencidas antes da propositura da execução e por mais uma de R$ 500,00 que venha a se vencer no intervalo de tempo compreendido entre a propositura e a prisão, e, por mais três de R$ 500,00 que se vencerem durante os três meses em que o devedor pode ficar preso, é capaz de fazer com que o Estado pague até R$ 6.000,00, sem a certeza de que a criança ou o incapaz receberá um centavo sequer, dessa quantia.
Diante desses fato, um questionamento em especial vem à mente: se o custo mensal para forçar o alimentante a pagar a dívida é de quase R$ 2.000,00, mas o recebimento do crédito pelo alimentando continua sendo incerto mesmo durante, e, até depois do aprisionamento, será que não seria mais barato, racional e seguro a criação de um fundo especial assemelhado àqueles estrangeiros, que possibilitasse o repasse exato da quantia, diretamente à pessoa que mais interessa nessa relação, seguido da posterior cobrança do devedor pelo órgão pagador?
Afinal, o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer, também é do Estado (Constituição Federal, art. 227).
E nem se diga que o dever de o Estado prestar alimentos seja algo inédito no Brasil. Muito pelo contrário. O Estatuto do Idoso, autorizado pela Constituição (art. 203, V), o prevê expressamente em seu artigo 14, quando dispõe que “se o idoso ou seus familiares não possuírem condições econômicas de prover o seu sustento, impõe-se ao Poder Público esse provimento, no âmbito da assistência social”.
Por ser regulamentado a nível infraconstitucional pela Lei Orgânica da Assistência Social, o benefício de prestação continuada pago a título de alimentos aos idosos é também conhecido por LOAS (Lei 8.742/93).
Acontece que esse é um benefício de natureza absolutamente assistencial, pois diversamente do benefício previdenciário, independe de qualquer contribuição prévia do beneficiário ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Embora louvável sob um ponto de vista, por outro esse método pode ser criticável por revelar um caráter extremamente assistencialista, na medida em que se transfere ao Estado a integral responsabilidade pelo sustento da pessoa idosa, ao mesmo tempo em que se lhe retira a oportunidade de recobrar as quantias pagas dos principais responsáveis, que são seus descendentes.
Nesse cenário, talvez a criação de Fundos Especiais possa surgir como importante mecanismo de gestão orçamentária e financeira.
A Lei n. 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços dos entes públicos, os conceitua como sendo " o produto de receitas especificadas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação" (art. 71).
Tal lei, não custa registrar, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de Lei Complementar (STF, ADI-MC 1.726-DF).
Porém, bem mais pormenorizado é o Decreto n. 93.872/86, quando enuncia que constitui Fundo Especial de natureza contábil ou financeira, “a modalidade de gestão de parcela de recursos do Tesouro Nacional, vinculados por lei à realização de determinados objetivos de política econômica, social ou administrativa do Governo” (art. 71). Segundo tal normativa, Fundos Especiais de natureza contábil, seriam “os constituídos por disponibilidades financeiras evidenciadas em registros contábeis, destinados a atender a saques a serem efetuados diretamente contra a caixa do Tesouro Nacional”, enquanto os de natureza financeira, seriam aqueles “constituídos mediante movimentação de recursos de caixa do Tesouro Nacional para depósitos em estabelecimentos oficiais de crédito, segundo cronograma aprovado, destinados a atender aos saques previstos em 8 programação específica” (§§ 1º e 2º).
Ainda existem em tramitação, diversos projetos de lei versando sobre o tema, inclusive, de forma muito mais detalhada[5]. Porém, o que foi exposto acima já atende as finalidades buscadas por aqui.
Fundos Especiais são, portanto, meros instrumentos orçamentários de natureza pública, destinadas à realização de determinados objetivos ou serviços relevantes. Ostentam índole contábil, quando tratam de despesas, custeios ou programas. Financeira quando concedem financiamentos ou empréstimos.
Apesar de se encontrarem inseridos na estrutura financeira da administração pública, eles não se confundem com os entes da administração direta ou indireta, como as autarquias e empresas públicas, por exemplo, até porque isso demandaria estrutura própria, com quadro pessoal e plano de cargos, carreiras e salários etc. Também não se confundem com os fundos privados, cuja participação da União é autorizada por lei, pois quem cria esses fundos são os próprios agentes financeiros responsáveis por sua gestão.
Nossa atual Constituição impõe 04 (quatro) condições básicas para sua criação: a) prévia autorização legislativa (art. 167, IX); b) instituição por Lei Complementar de Finanças Públicas (art. 165, §9º); c) inclusão na LOA, e; d) proibição à vinculação de impostos, ressalvadas as exceções enumeradas pela própria Constituição Federal (art. 167, IV).
No âmbito estadual e municipal, a coisa meio que se repete, obviamente levando em consideração os termos das respectivas Constituições e Leis Orgânicas, o que torna possível se cogitar da criação de fundos estaduais e municipais voltados especificamente aos mesmos propósitos aqui sugeridos.
A utilização dos Fundos Especiais é ampla e variada[6]. No Brasil, alguns deles são bastante conhecidos. O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), por exemplo, é um fundo público de natureza contábil, diretamente vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que tem como principal objetivo custear programas como o seguro desemprego e o abono salarial. Já o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), é um fundo público de natureza contábil e financeira, criado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação - SFH, voltado a suprir a necessidade de se propiciar condições de acesso à moradia à população brasileira, com a específica finalidade de garantir o limite de prazo para amortização da dívida dos mutuários decorrentes de financiamentos habitacionais.
Por vezes, Fundos Especiais operam programas. É isso que acontece, por exemplo, com o denominado Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), que, na verdade, é um programa operacionalizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no âmbito do Ministério da Educação do Brasil, destinado ao financiamento da graduação na educação superior de estudantes matriculados em instituições não gratuitas.
Seu grande diferencial frente às ações de índole puramente assistencialista, como é o caso do Benefício de Prestação Continuada (LOAS), é que os Fundos Especiais podem se destinar à execução de programas de empréstimos e financiamentos, hipótese que os legitima a exigir de volta, de algum responsável, o montante despendido. O próprio FIES, acima referido, custeia as mensalidades devidas pelo aluno financiado, mas encarrega agentes financeiros de promover sua cobrança oportuna, em face do próprio obrigado e dos eventuais responsáveis pela dívida, como seus fiadores, por exemplo.
Se é assim que as coisas acontecem, por que não conferir semelhante prerrogativa às crianças e adolescentes que se encontrarem na posição de credores de verba alimentar, quando os devedores estiverem impossibilitados de prover o seu sustento? A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente não deve ser feita através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (ECA, art. 86)? Eles também não seriam vulneráveis?
No domínio da assistência social, mesmo fora do estado de absoluta exceção imposto pela pandemia do C-19, o mesmo dispositivo constitucional que autoriza a concessão de alimentos aos idosos, prevê, como um de seus principais objetivos, a proteção à infância e à adolescência, assim como o amparo às crianças e adolescentes carentes (CR, art. 203, I e II), conferindo, ao menos em tese, o suporte normativo necessário para que eles possam, também, ser contemplados com o direito à percepção de verba destinada a seu sustento, a ser paga pelo Estado, que é o responsável pela concessão e manutenção dos benefícios de prestação continuada acima referidos (Lei 8.742/93, art. 12, I).
Mas, para que não se cogite de uma ação absolutamente assistencialista, poderia ser imaginada a criação de um Fundo Especial de Garantia para o Pagamento de Pensão Alimentícia por aqui, não voltado ao pagamento puro e simples da pensão alimentar inadimplida pelo alimentante, mas sim por seu adiantamento ao alimentando e pela subsequente e automática sub-rogação em todos os direitos, ações e garantias por este titularizados em face daquele. Ideal, portanto, que fosse desvinculado da assistência ou da previdência social.
A rigor, já até existe um importantíssimo fundo na área da infância e adolescência. Para que pudesse ser atendida uma das diretrizes da política de atendimento à criança e ao adolescente estabelecida pelo ECA (arts. 86 e 87), foi criado nos âmbitos municipal, estadual e federal o Fundo Especial para a Infância e Adolescência (FIA), tendo como objetivo principal o financiamento de projetos que atuem na garantia da promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. Os recursos são aplicados exclusivamente na área, sob monitoramento dos respectivos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente – CDCA, que são seus gestores.
Mas, que tal se pudéssemos ir além, para que algo parecido com o aqui sugerido Fundo Especial de Garantia ao Pagamento de Pensão Alimentícia pudesse ser instituído em terras brasileiras, de maneira semelhante ao que acontece no exterior?
De repente, poderia ser imaginado seu atrelamento a órgão da Administração Pública diverso daqueles voltados à assistência social, até para que sua finalidade não pudesse ser confundida com a puramente assistencial.
Sua criação obviamente dependeria de autorização legislativa e deveria ser feita por lei complementar, nos exatos termos impostos pela Constituição.
Sua finalidade precípua seria proporcionar recursos e meios destinados ao sustento de crianças e adolescentes credoras de pensão alimentícia não pagas pelos respectivos devedores. Nos moldes do que acontece no estrangeiro, seu acionamento deveria ocorrer, a princípio, somente por intermédio do órgão judicial, na fase executiva (execução ou cumprimento de sentença) e depois de que fossem esgotadas as tentativas consensuais e adversariais de recebimento do crédito perante o próprio alimentante, desde que não houvesse sido espontaneamente pleiteada a prisão civil como técnica coercitiva.
O não uso da prisão seria importante para o próprio funcionamento e propósito do fundo, devendo, por isso, representar verdadeiro requisito para a obtenção do pensionamento.
Preenchidos certos requisitos previstos por lei, o pagamento deveria ocorrer na forma estabelecida na sentença ou acordo, até que o alimentando completasse 18 anos de idade, mas com possibilidade de se estender a etapas posteriores de sua vida, em situações excepcionais, casuisticamente auferíveis.
Um grande atrativo ficaria por conta do caráter não puramente assistencial da ação. Isso porque, ao efetuar os pagamentos na periodicidade necessária, o organismo responsável por sua gestão ou o ente público ao qual estivesse vinculado (já que fundos não possuem personalidade jurídica própria, mas mera natureza jurídica – Código 120-1 no CONCLA) se sub-rogaria em todos os direitos, garantias e ações de cunho patrimonial por este titularizados em face de seu alimentante, ficando imediatamente investido do poder de aciona-lo, inclusive judicialmente, em busca de ser reembolsado. Isso atribuiria um senso bem maior de justiça a toda a situação, pois, diferentemente da prisão civil, o poder público aplicaria, e, depois recobraria, apenas o exato valor necessitado pela criança. E, diferentemente do que ocorre com o BPC (LOAS), teria oportunidade de ser reembolsado do que teria gasto.
A sub-rogação, no caso, seria a legal. Isso significa que a obrigação correspondente só se extinguiria em relação ao credor satisfeito (ou seja, a criança), mas não em relação à administração, que assumiria o crédito correspondente, nos exatos limites pagos (CC, arts. 346 e 350).
Seria preciso bastante atenção, entretanto, para se saber que não é o dever de sustento que seria transferido ao Estado pela sub-rogação, até porque isso seria impossível. A administração se sub-rogaria única e exclusivamente no direito de perseguir o crédito, isto é, o valor pago ao alimentando. Outro ponto importante. Pelo fato de o crédito decorrer de uma obrigação personalíssima e titularizada por um incapaz, não seria possível que a sub-rogação atribuísse à administração pública nem mesmo os caracteres inerentes a esse tipo de obrigação, como a irrenunciabilidade, intransmissibilidade incompensabilidade etc. Absolutamente, não! Ao se incorporar ao patrimônio do ente, o crédito se submeteria às regras de direito público aplicáveis, o que não impediria, contudo, que o legislador federal oportunamente lhe atribuísse compleições típicas, notadamente voltadas à facilitação de seu recebimento extra ou judicial, como, por exemplo, a ampliação do prazo prescricional para o exercício da pretensão voltada à sua cobrança, a aplicação de multa e juros mais altos do que aqueles incidentes sobre as relações privadas (que, a rigor, já são aplicados na cobrança de créditos públicos - SELIC), a aptidão a ser inscrito em Dívida Ativa, a possibilidade de gerar a penhora de salários e proventos etc.
Não se esqueça que a exigência de lei complementar para instituição do Fundo até facilitaria alguns desses aspectos, sobretudo aqueles relacionados à possibilidade de sua inscrição em dívida ativa e consequente possibilidade de a dívida correspondente ser perseguida por execução fiscal.
O estabelecimento de um valor-limite máximo de pensão mensal a ser suportada pelo Fundo talvez fosse medida necessária, até para que seu funcionamento não restasse inviabilizado ao longo do tempo.
Por se tratar de um instrumento público de gestão, o Fundo Especial sob comentário poderia ter várias fontes de receita, como recursos públicos em geral, dentre os quais se incluem os repasses realizados pelo Poder Executivo; doações de todo tipo, provenientes de pessoas físicas e jurídicas, inclusive diretamente dedutíveis do Imposto de Renda (já que a vedação constitucional é apenas de vinculação direta de Fundos a tributos); rendimento de aplicações financeiras, além de outros que, eventualmente, lhe possam ser destinados. Caso fosse instituído em atenção à política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, na forma prescrita pelo artigo 86 do ECA, poderiam ainda receber receita proveniente de multas aplicadas por violação a preceitos cominatórios estabelecidos em demandas judiciais da área da infância e juventude e de multas por infrações administrativas, ou, ainda, de valores estabelecidos em Termos de Ajustamento de Conduta celebrados em ações civis públicas promovidas por violação a direitos da criança e do adolescente; (ECA, arts. 154 c/c 214, 194 a 197, 213 e 214).
Em decorrência de sua natureza contábil e do caráter público de seus recursos, estes deveriam, obrigatoriamente, ser dedicados exclusivamente às finalidades para as quais fosse criado (pensionamento de crianças e adolescentes nos moldes estabelecidos pela sentença ou acordo), estando sujeitos às normas (regras e princípios) que orientam a aplicação dos recursos públicos em geral, inclusive no que diz respeito a seu controle pelo Tribunal de Contas, sem prejuízo de se submeterem à supervisão do Ministério Público (Lei n 4.320/64, art. 74) e de serem objeto de proteção pelo microssistema de tutela aos direitos coletivos (Lei de Improbidade Administrativa, Lei da Ação Popular etc). Na eventualidade de serem instituídos em atenção à política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, como dito acima, se submeteriam à fiscalização pelo Ministério Público, também por força do que dispõe o artigo 260, § 4º do ECA.
Finalmente, outro grande atrativo do Fundo Especial seria sua possibilidade de instituição por leis complementares estaduais e municipais, o que, apesar de sua enorme limitação frente à lei federal (como a impossibilidade de estabelecer regras a respeito da prescrição, de medidas processuais etc), poderia torna-lo muito mais próximo às realidades locais.
É claro que o modelo acima não estaria completamente imune a fraudes ou conluios perpetrados entre alimentantes e alimentandos. Aliás, nada em Direito é 100% imune a fraudes. Mas, a existência de tantos instrumentos de fiscalização, controle e cobrança (inclusive com juros mais altos e com certas especificidades, como a possibilidade de penhora de salários etc), certamente representaria forte fator de desestímulo a que isso acontecesse.
De relevo, essas seriam as noções que este curto e despretensioso ensaio pretendia transmitir à comunidade jurídica brasileira, e, em especial, aos associados ao IBDFAM, o que, obviamente, pode e deve ser objeto de críticas e reparos oportunos, até porque o principal propósito por aqui é meramente instigar a reflexão em torno da solução de um problema social de indiscutível importância, que é a desproteção financeira de uma enormidade de crianças e adolescentes.
Que tenham início os debates.
REFERÊNCIAS:
LEMGRUBER, João B. Araújo; GUEDES, Reginaldo de A; TRISTÃO, Gilberto. O posicionamento das entidades da administração descentralizada, orgãos autônomos e fundos, no contexto orçamentário. Revista ABOP, [S.l.] v. 2, n. 3, set./dez. 1976
MACHADO JÚNIOR, J. Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4.320 Comentada. 28. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 1998
REIS, Heraldo da Costa. Fundos especiais: nova forma de gestão de recursos públicos. Revista de Administração Municipal, v. 38, n. 201, out./dez. 1991
RODRIGUES, Ayrton. Finanças Públicas. Conforme a Lei 4.320/1964 e a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar 101/2000. Segundo as Autoridades, delas ninguém está acima. São Paulo: Baraúna, 2016
SANCHES, Osvaldo Maldonado. Fundos Federais: origens, evolução e situação atual na administração federal. Revista de Informação Legislativa, v. 39 n. 154 abr./jun. 2002
[1] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/realidade-prisional-auditoria-mostra-que-o-custo-mensal-do-preso-e-desconhecido-em-varios-estados.htm.
[2] Vale mencionar que esse valor é bastante variado, pois estabelecimentos prisionais federais são mais onerosos do que os estaduais. Além disso, equipamentos e dispositivos de segurança presentes em certas unidades não se encontram disponíveis ou podem ser desnecessários em outras e assim por diante.
[4] Tal como dito em nota de rodapé acima, esses valores são bastante variáveis, por circunstâncias diversas.
[5] Por exemplo, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 295/16 - Projeto de Lei do Senado n. 229/09 -, denominado de “nova lei de finanças públicas”, estabelece normas gerais sobre plano, orçamento, controle e contabilidade pública, voltadas para a responsabilidade no processo orçamentário e na gestão financeira e patrimonial, altera dispositivos da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a fim de fortalecer a gestão fiscal responsável e dá outras providências.
[6] Merece menção o fato de que a PEC 187/19 - que ao tempo de elaboração deste texto, havia sido aprovada pela CCJ - propõe a extinção dos fundos públicos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios criados até 31 de dezembro de 2016, caso não sejam ratificados por meio de lei complementar específica, até o fim de 2022.
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