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Regime jurídico especial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) – breves reflexões
Regime jurídico especial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) – breves reflexões
Marcello Uriel Kairalla[1]
Sumário
Introdução; I. Legislar ou não legislar; II. Tempo e direito; III. Reuniões ou assembleias – Pessoas Jurídicas e Condomínios; IV. Relações contratuais; V. Direito concorrencial; VI. Família e sucessões; VII. Matérias estranhas ao RJET; Conclusão.
Introdução
Foi aprovado dia 03 de abril de 2020 no Senado Federal o Projeto de Lei 1.179/2020, do Senado Federal, inicialmente apresentado pelo Senador Antonio Anastasia. Segundo o relatório da Senadora Simone Tebet, que propôs importantes alterações, o Projeto visa a tratar de “vários problemas de Direito Privado decorrentes do período excepcional de calamidade pública causada pela pandemia do Coronavírus”.
Esse Projeto tramitou em tempo recorde, somente 5 (cinco) dias, o que reflete a pungência da situação. Com inclusões e exclusões devidas às emendas parlamentares, o Projeto, que agora será apreciado pela Câmara dos Deputados, foi aprovado com 22 (vinte e dois) artigos e, em separado pela Emenda 85 destacada, 2 (dois) artigos, totalizando 24 artigos. Se aprovado pela Câmara, sem alterações, segue direto para sanção presidencial, se, por outro lado, a Câmara sugerir alterações, o projeto voltará ao Senado que poderá aceitar ou rejeitar as mudanças propostas pela Câmara. Num ou noutro caso, o Projeto seguirá para sanção presidencial.
Pretende o presente escrito, portanto, propor uma breve reflexão sobre o texto aprovado pelo Senado Federal, mas, antes, propor duas ponderações de cunho preliminar, a primeira se realmente faz sentido analisar, de forma estanque, os direitos público e privado na calamidade. Essa distinção, que há anos é mitigada e afastada – cito, somente ilustrativamente, as preliminares do Código Civil Comentado, de Beviláqua, e o capítulo VI.3 da Teoria Pura do Direito de Kelsen –, ressurge uma vez mais para limitar a abrangência da legislação transitória. Não parece, portanto, adequada a utilização desse critério para definir a matéria legislativa, que é, ao fim e ao cabo, um projeto de disciplina algumas matérias de direito privado, escolhidas por conveniência política (como, aliás, são todas as escolhas legislativas, uma vez que a política é a arte do possível (especialmente a política governamental e pública). A segunda ponderação preliminar é, contudo, um pouco mais abrangente, de modo que constitui o primeiro item dessa breve reflexão.
A seguir, proporei a discussão nos seguintes tópicos: (i) tempo e direito: delimitação temporal do regime emergencial, prescrição, decadência, vacatio legis e usucapião; (ii) reuniões ou assembleias; (iii) relações contratuais; (iv) direito concorrencial; e (v) família e sucessões.
- Legislar ou não legislar
A produção normativa pelo estado é redução do espaço de autonomia privada dos cidadãos. Sobre aquilo que poderia ser matéria de livre estipulação, passa a viger uma regra imposta, válida ou não a depender de sua cadeia de legitimação. É dizer que se renuncia à liberdade em troca de outros valores. Clovis Beviláqua, ao tratar da importância dos códigos, diz que eles “além de corresponderem às necessidades mentais de clareza e sistematização, constituem, do ponto de vista social, formações orgânicas do direito, que lhe aumentam o poder de precisão e segurança, estabelecendo a harmonia e a recíproca elucidação dos dispositivos”[2]. Renuncia-se à liberdade em troca de segurança e previsibilidade.
Na situação excepcional de pandemia, na qual as certezas se esvaem, a sociedade sente carência de segurança, o que largamente explica o ímpeto legislativo que se viu no Projeto de Lei 1.179/2020, ora analisado, mas que também é comprovado pelas dezenas de outras proposições em trâmite nas casas legislativas. Cabe à doutrina sistematizar as matérias em tela, enquadrá-las no ordenamento e emitir juízo valorativo sobre suas pertinência e adequação.
Em síntese, há casos em que o melhor é prestigiar a autonomia e a liberdade, em outros a segurança e a previsibilidade. Fernando Araujo, Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, exemplifica a renúncia à liberdade com a utilização de aplicativos de locomoção: se você pode escolher os caminhos que traça, porque obedece à voz do Waze? Renunciamos à liberdade de escolher os caminhos para ganhar tempo. É dizer, em outras palavras, que regras claras permitem que o jogo seja jogado e não a toda hora interrompido para a solução de controvérsias laterais. Em última análise, a renúncia à liberdade, ao gerar segurança e previsibilidade, promove liberdade.
Há, então, um ponto ótimo entre segurança e liberdade, que será buscado por esta breve reflexão.
- Tempo e direito
O projeto aborda a relação entre tempo e direito em basicamente três situações: (i) delimitação temporal da aplicação do regime de emergência; (ii) suspensão e impedimento dos prazos prescricionais e decadenciais; (iii) vacatio legis; (iv) suspensão e impedimento do prazo de usucapião.
Falar sobre tempo e direito é, para mim, especialmente complexo, uma vez que meu professor e orientador, José Fernando Simão, Professor Associado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP, apresentou a tese que resultou em sua livre docência justamente com este tema, de onde emerge tremenda responsabilidade. A vantagem é que tão sólida obra gera as bases para a presente reflexão. Aproveitando esta preliminar, inverterei a ordem do raciocínio e iniciarei pela prescrição e pela decadência. É fato que o tempo age sobre as relações jurídicas de diversas formas, mormente na busca pela compatibilização entre segurança e liberdade. Pode-se resumir, com alguma ousadia, a tese referida da seguinte forma: embora a prescrição e a decadência visem a estabilização das relações jurídicas (promoção de segurança), elas possuem um caráter sancionatório que é aplicado àqueles que não buscam a tutela de seus direitos em certo lapso temporal (redução da liberdade). Vê-se, portanto, que a inércia na busca pela tutela dos direitos é elemento nuclear da incidência da prescrição e da decadência.
É justamente nesse sentido que o Projeto aborda, em seu artigo 3º, que os prazos decadenciais (§2º) e prescricionais (caput) estão impedidos ou suspensos, conforme o caso, durante a vigência da lei. Se não há inércia, ou ela é justificada pela pandemia, não fluem os prazos extintivos. Também seguindo a mesma lógica, o artigo 10º suspende a fluência do prazo aquisitivo pela usucapião durante a vigência emergencial[3].
O sacrifício da liberdade e da propriedade parece injusto em tempos excepcionais. A estabilização das relações jurídicas, parece, pode aguardar o fim da pandemia.
A delimitação temporal de início e fim do regime de emergência é essencial ao projeto, que poderia gerar inúmeras discussões acerca dos termos inicial e final de sua aplicação. Evidentemente todos os cortes temporais, que geram aqui segurança, causam injustiças nos casos concretos. A escolha do dia 20 de março, por exemplo, exclui os dias entre essa data e a decretação de pandemia pela Organização Mundial de Saúde, em 11 de março. Ao mesmo tempo, a escolha do dia 30 de outubro como término do regime transitório, embora pareça aleatória, tem razão de ser. A insuportabilidade de um regime transitório sem data para acabar gera o efeito adverso na formação de expectativas. Caso a epidemia se prolongue ou encontre sua normalização antes do esperado, uma nova lei pode ser elaborada.
O último ponto a ser abordado é a discussão sobre vacatio legis. Embora a vigência da própria lei seja imediata, o que é adequado para uma lei de emergência, ao final da Projeto, em seu artigo 21, a vacatio legis de outra lei, a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, é alterada. É de todo impertinente essa alteração, que visa somente atender a interesses obscuros que sempre se posicionaram contra a LGPD e que sempre tentaram adiar o início de sua aplicação. Aqui fica evidente também o caráter totalmente arbitrário da divisão entre direito público e direito privado, uma vez que os artigos 52-54 da LGPD, que tiveram sua vigência adiada para agosto de 2021, tratam, justamente, de sanções administrativas. Há poucos ramos do direito administrativo que sejam tão naturalmente de direito público quanto o das sanções administrativas.
No crescente percurso, impulsionado pela pandemia, de digitalização da economia, adiar a proteção de dados é temerário. As empresas já tiveram, até a decretação da calamidade pública, 18 (dezoito) meses para se adequarem, de modo que a alegação de que a pandemia que impediu a adequação à lei é imbuída de profunda má-fé. Esse ponto deve, portanto, ser extirpado do projeto, pois não segue qualquer rigor metodológico, não é, econômica ou juridicamente, explicável e atende a interesses obscuros, em total acordo com a proposta de Emenda n. 25 do Senador Alessandro Vieira e não da solução salomônica de adiar o início da lei para um prazo intermediário.
- Reuniões ou assembleias – Pessoas Jurídicas e Condomínios
O projeto, em três capítulos distintos (III, VIII e IX) trata da restrição do direito de reunião, em razão das recomendações sanitárias de evitar aglomerações. Desse modo, no artigo 4º restam vedadas as reuniões presenciais até 30 de outubro de 2020.
A fim de mitigar essa vedação, no art. 5º está a regulamentação das assembleias gerais, aplicável às associações, às sociedades por ações e às outras sociedades, limitadas ou não, que prevê a realização desses atos decisórios pelo meio virtual, independentemente de previsão estatutária, desde que de forma segura e verificável.
Aqui é cabível uma breve reflexão. A lei não veda, em qualquer momento, a realização de reuniões e assembleias por meio virtual, utilizando apenas, em diversas passagens sobre votações e quóruns, o vocábulo “presente”. É certo que a interpretação histórica dos dispositivos foi sempre a realização dessas reuniões fisicamente, uma vez que, quando da elaboração das leis de vigência (Projeto do Código Civil de 2002 é de 1975 e a Lei de Sociedade por Ações de 1976), não foi prevista a realização de reuniões virtuais.
Inclusive, mais recentemente, desde 2015, a Comissão de Valores Mobiliários passou a reconhecer como uma opção das companhias a realização de assembleias virtuais, embora tenha reconhecido que as tecnologias ainda não estavam suficientemente desenvolvidas e testadas adequadamente. Isso não afasta, contudo, a desnecessidade de uma autorização legislativa, que, aliás, se encontra no ordenamento jurídico desde 30 de março de 2020, com a Medida Provisória 931, que adicionou artigos ao Código Civil, Lei de Cooperativas e Lei das SA para permitir a participação à distância. Se a lei não proíbe, trata-se de conduta lícita.
Ademais, outros tipos de reunião e assembleia, como as condominiais, vêm sendo realizadas de forma virtual há alguns anos, sendo um mercado crescente e, nos casos de condomínios de multipropriedade, já vem expressamente previsto em Lei (art. 1.358-Q, inc. VIII, do Código Civil). A prescrição legislativa vem, portanto, sem qualquer restrição de liberdade, somente conferindo evidência a algo que já era possível, proporcionando liberdade às partes.
Especialmente quanto aos condomínios (capítulo VIII do Projeto), em razão da impossibilidade das reuniões e das imposições do Estado de Emergência, o Projeto confere poderes excepcionais ao Síndico (art. 11) de (i) restringir a utilização em áreas comuns; e (ii) de proibir a realização de reuniões, festividades, uso do abrigos de veículos, inclusive dentro das áreas de propriedade exclusiva dos condôminos (isto é, dentro do próprio apartamento). O contexto pandêmico impõe uma série de restrições à liberdade individual, assim a conferência de poderes excepcionais ao Síndico parece adequada, a fim de protegê-lo e conferir segurança e efetividade, sem recurso ao Judiciário. Contudo, parece-nos que a restrição da segunda categoria é excessiva, uma vez que só caberia ao estado uma medida tão excessiva, como decretar que os cidadãos não podem sair de suas casas, e não ao síndico decidir se o apartamento X pode, ou não, receber visitas, o que pode resultar em abuso de poder dificílimo de coibir. Se o estado entender adequado, que proíba uniformemente as pessoas de visitarem umas às outras.
O art. 12, por sua vez, é uma repetição do que foi tratado nos artigos 4º e 5º, conferindo uma simplificação no meio de expressão da vontade dos condôminos. Essa simplificação visa a atender uma compreensível limitação dos condôminos ao acesso de tecnologias mais avançadas – o que, a contrario sensu, não se aplicará aos sócios e acionistas –, mas pode gerar dúvidas quanto à higidez da votação. O ideal seria adicionar a expressão verificáveis, de modo que a votação possa se realizar por meios virtuais verificáveis. Prevendo que diversos condomínios não conseguiriam se adequar a votações virtuais (que já ocorrem em diversos condomínios, a despeito de previsão legislativa), o Projeto prevê um parágrafo único ao art. 12, que estende o mandato do síndico, ex lege, até o 30 de outubro de 2020. Novamente, sacrifica-se a precisão quanto ao final da pandemia em nome da previsibilidade.
O art. 13 diz o óbvio: a necessidade de prestação de contas se mantém na pandemia. Sequer deveria constar do regime de emergência, pois não há qualquer inovação.
O art. 14, retomando o prescrito no art. 4º, adia a obrigatoriedade de realização de reuniões de quaisquer órgãos e de divulgação ou arquivamento de demonstrações financeiras, até dia 30 de outubro. Relega, também, em seu parágrafo único, à CVM a regulamentação dos demais prazos aplicáveis às companhias abertas. Essa dilação é bem-vinda, pois confere prazo para as companhias se organizarem ao novo contexto, inclusive no que toca à realização de reuniões virtuais.
Especificamente quanto às reuniões virtuais, nos termos já explanados, o Projeto prevê essa modalidade de reunião, de modo a ampliar o exercício dos direitos sociais. Especialmente quanto à distribuição de lucros, dividendos e resultados, o Projeto, em seu artigo 16, confere ao Conselho de Administração, ou, em sua falta, à Diretoria (parágrafo único), o direito de os declarar, sem assembleia, independentemente de previsão estatutária. A garantia da célere distribuição dos lucros, dividendos e resultados, pretendida pelo Projeto, parece, contudo, excessiva. Senão, vejamos: (i) a obrigatoriedade das demonstrações e assembleias em geral foi adiada para 30 de outubro; (ii) o projeto faculta a realização de assembleias e reuniões por meio virtual; e (iii) parcela relevante das companhias já possuem, em seus estatutos a previsão de que o Conselho de Administração ou a Diretoria podem aprovar os dividendos, lucros e resultados sem a Assembleia Geral, em razão da praticidade. Assim, àquelas companhias que, estatutariamente, preveem a indispensabilidade de Assembleia Geral para essa questão, é excessiva a atribuição de poderes excepcionais ao Conselho de Administração ou à Diretoria, devendo ser respeitada a supremacia da Assembleia Geral, que teve o prazo para sua realização dilatado e poderá realizar-se por meio virtual, desde que respeitados os demais meios de voto à distância.
- Relações contratuais
Talvez o ponto mais relevante do projeto, sobre relações contratuais, disse muito pouco. O que, talvez, não seja uma má notícia. Vejamos.
O art. 6º prescreve que “as consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos”. O Projeto aprovado confunde conceitos, por erro de premissas. A relatora Tebet parte da premissa de que “A pandemia é o clássico exemplo do que dispõe o art. 393 do Código Civil (caso fortuito e força maior)”, ocorre que isso não é verdade, como já bem delineado em artigo por José Fernando Simão[4]. Como bem ressaltado no artigo, a pandemia afeta a base do negócio jurídico, de modo que nunca seria retroativa. Se a base do contrato é afetada, pouco importa a discussão sobre a natureza jurídica da pandemia, foi afetada em determinado momento e não produzirá efeitos retroativas, mas poderá resolver (resolução) situações jurídicas entabuladas antes da pandemia (vide os coronation cases, bem explanados no artigo citado), o que não representa retroação de efeitos.og
O art. 7º, por sua vez, trata de restringir o que seriam “fatos imprevisíveis”, “para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil”. Em linha com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, exclui dessa categoria o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. Como exposto acima, mesmo que não sejam causa de força maior, essas alterações podem influir diretamente na base do negócio jurídico, de modo que continuam ensejando os efeitos bem delineados por Simão. Em síntese, o projeto não contribui para a análise dos contratos civis em tempos de pandemia. E, arrisco consignar, é bom que assim seja, pois as categorias tradicionais são mais do que suficientes para a análise da vasta maioria dos casos.
Talvez a regra civil mais importante da Lei de Emergência seja a das locações. O Projeto aprovado impede, por seu art. 9º, a concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, salvo nas hipóteses de (i) término de locação por temporada, (ii) morte do locatário sem sucessor legítimo ou pessoa autorizada por lei e (iii) realização de obras urgentes determinadas por poder público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las. As exceções do Projeto são justificáveis, pois os motivos que embasam a proibição do projeto (direito à moradia, dificuldades financeiras e dificuldade de encontrar um novo imóvel) cedem ou não se aplicam às situações, vejamos: no caso (i) a locação por temporada não é destinada à moradia e tampouco está correlacionada à busca por um novo imóvel; (ii) com a morte do locatário que não deixe sucessor na locação (e aqui deve-se ler o artigo 11 da Lei de Locações para fins da sub-rogação contratual) não há direito à moradia a ser tutelado, nem dificuldade financeira, nem dificuldade de encontrar um novo imóvel; e (iii) o fato do Príncipe faz ceder a proteção à moradia e outras dificuldades. O projeto, então, opta pela saída menos intervencionista: não prefixa uma redução ou pré-determina uma autorização para inadimplemento, para tutelar tão somente o impedimento ao despejo liminar.
A saída é prestigiosa à liberdade das partes de contratar, como também é da preservação do contrato, mas relega todas as locações à casuística. Aqui o Projeto teve oportunidade única de criar um regime justo e equilibrado para as locações, que repartisse os prejuízos causados pela pandemia, mas se quedou silente. É quase certo que as ações de revisão de locações se proliferarão em tempos pandêmicos, principalmente se as restrições ao comércio se mantiverem por mais tempo. De forma adequada, quanto à restrição do despejo liminar, o Projeto restringe tal aplicação às ações ajuizadas a partir de 20 de março (parágrafo único do art. 9º) e mantem o sistema da ação revisional de alugueis, tal qual lançado pela Lei 8.245/91 (art. 7º, §1º).
No que toca às relações consumeristas, o Projeto suspende o direito de arrependimento na hipótese de entrega domiciliar de produtos perecíveis, medicamentos e produtos de consumo imediato (art. 8º). Trata-se de mudança salutar e, inclusive, poderia ser mais ampla, uma vez que, na pandemia, o direito de arrependimento do consumidor é especialmente custoso às empresas, até porque, em regra nos produtos perecíveis, o adquirente conhece o que compra, sendo presencial ou não a compra. O arrependimento deveria ser a exceção do sistema, não a regra.
Especialmente quanto à revisão, resolução e resilição dos contratos de consumo, continua mantida a sistemática do Código de Defesa do Consumidor (art. 7, §1º) e propôs-se também a restrição de normas consumeristas aos consumidores (art. 7º, §2º), o que também é bastante óbvio e levanta questionamentos sobre sua relevância nesse texto.
- Direito concorrencial
O Projeto propõe a suspensão, até 31 de outubro de 2020, de algumas disposições concorrenciais, vejamos: (i) venda de serviços ou mercadorias abaixo do preço de custo; (ii) cessar parcial ou totalmente a atividade da empresa sem justificativa comprovada; (iii) submissão ao CADE de joint venture, associação ou contrato associativo de duas ou mais empresas; além disso, impõe que as outras condutas prescritas no art. 36 da Lei 12.529/2011 somente poderão ser consideradas infrações considerando o contexto da epidemia de COVID-19.
Ademais, a suspensão da análise, pelo CADE, dos atos de concentração não impedirá uma análise posterior pelo órgão. O critério é que somente estará isento de eventual responsabilidade aquele ato de concentração que for necessário ao combate da pandemia. E estabelece um regime transitório, segundo o qual “os efeitos dos atos excepcionalmente praticados ou interpretados favoravelmente segundo a regra hermenêutica estabelecida neste artigo devem ser imediatamente interrompidos em 30 de outubro de 2020”. Há, aqui, uma incompatibilidade com o termo final, se 31 ou 30 de outubro, provavelmente decorrente de erro de digitação, uma vez que todos os demais prazos do Projeto são 30 de outubro.
As disposições concorrenciais são interessantes, a fim de evitar a desnecessária persecução, pelos órgãos de controle, de condutas que, em tempos normais, seriam antijurídicas, mas que, nos tempos pandêmicos, são bem vindas. Veja-se o exemplo das montadoras, que se uniram para consertar os respiradores. A autorização legislativa confere segurança àqueles que se unirão para o enfrentamento da calamidade, retirando restrições à autonomia privada.
- Família e sucessões
Nos direitos de família e sucessões, ocorreram duas pontuais alterações. A primeira, quanto à prisão civil, é consentânea às medidas de isolamento social. Não faz sentido, em época de pandemia, adotar uma medida indutiva que põe em risco a saúde da coletividade. A prisão poderá ser domiciliar, contudo (art. 18 do Projeto). Essa alteração é bem-vinda, pois, na pandemia, o isolamento social é a prioridade. Todas as outras medidas para garantir o pagamento de alimentos continuam vigentes.
O art. 19, por sua vez, trata dos prazos de abertura e encerramento de inventário. Ambos os prazos são, na prática, impróprios, pois não há qualquer sanção prevista no ordenamento jurídico para o seu descumprimento. É uma prorrogação que não traz males, mas tampouco traz benefícios.
A lei é omissa quanto a questões sensíveis de direito de família. O regime de visitas deve ser suspenso durante a pandemia? Ou o estado-juiz deverá ser conivente com as violações ao isolamento social? Os processos de família, por disposição expressa do Código de Processo Civil, iniciam-se com a designação de audiência, faz sentido a manutenção dessa audiência em tempos pandêmicos? O pagamento de alimentos não sofre qualquer tipo de influência pela pandemia? Como realizar exames em pessoas com discernimento reduzido para fins de curatela? Há, também, relatos de aumentos consideráveis de casos de violência doméstica em decorrência do isolamento, não deveria o legislador se preocupar com essa questão? Aqui, infelizmente, o projeto foi omisso.
Nas questões sucessórias, tampouco se viu a intervenção do legislador, além da inócua prorrogação dos prazos de inventário. Questões prementes como a lavratura de testamentos, as disposições vitais ou diretivas antecipadas de vontade ficam obscuras em tempos pandêmicos, com muitos Tabelionatos funcionando em horário restrito ou só com atendimento à distância. Não seria o caso de o Projeto normatizar um testamento virtual? São interessantes questionamentos que, inclusive, poderiam contribuir para o progresso da técnica jurídica.
- Matérias estranhas ao RJET
Além da já comentada extensão da vacatio legis da LGPD, o Projeto ainda prevê duas bizarrices que nada tem a ver com as relações privadas que disse ele pretender regular. A primeira delas é a regulamentação da flexibilização de dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, especialmente buscando “aumentar a eficiência na logística de transporte de bens e insumos e da prestação de serviços relacionados ao combate dos efeitos decorrentes da pandemia”. Em que pese ser uma iniciativa que mereça reflexão, uma vez que aumentar a liberdade dos agentes em busca de eficiência é geralmente algo positivo, não há, nesse 20º artigo, inserto no Capítulo de Disposições Finais, nada de direito privado. Trata-se de um comando puramente administrativo e um “jabuti” no Projeto, cuja inserção não está de acordo com o recorte metodológico sugerido pela própria relatora, de modo que acreditamos que a Câmara pode rever a pertinência de uma norma de regulação do trânsito no regime de emergência de direito privado.
O último “jabuti” foi incluído pela Emenda 85, apresentada no apagar das luzes, que visa criar uma “diretriz da política nacional de mobilidade urbana”, que em absolutamente nada é relação privada. Em síntese, pretende o Projeto reduzir, na caneta, a margem de receita das empresas que atuam no ramo de transporte privado de passageiros, transferindo essa redução ao motorista. Prevê também a Lei que os motoristas de taxi também se beneficiariam dessa redução aplicável a “quaisquer taxas, cobranças, aluguéis ou congêneres incidentes sobre o serviço”. O dispositivo, que é de difícil intelecção, tampouco possui fundamento, senão uma suposta pretensão Robin Hoodiana: “Entendemos que tais empresas possuem totais condições de ter uma ligeira redução em seu faturamento”, pergunta-se: com base em que? Quais estudos, dados ou números? Não há! Emenda com base em puro palpite. Aliás, com relação aos taxistas, ao propor a redução do pagamento de licença, implica renúncia de receitas públicas! A emenda é totalmente descabida e, espera-se, seja extirpada pela Câmara em sua revisão, ou vetada pelo Presidente da República quando de sua sanção.
Conclusão
Diante dessa breve reflexão, partindo do viés proposto inicialmente, especialmente do dilema legislar ou não legislar, utilizando-se para a resolução dessa questão a métrica da otimização entre segurança e liberdade, pode-se concluir que o Projeto mais acerta do que erra.
Especialmente quanto às relações privadas e locatícias, a falta de alguma orientação legislativa prestigia a liberdade e a autonomia privada, mas pode resultar em uma explosão de litígios com decisões aleatórias para cada caso concreto. Talvez, nesses casos, o sacrifício de uma parcela da liberdade negocial conferisse mais segurança e previsibilidade ao sistema, de modo a facilitar a transição para a economia pós-pandemia.
Em outros pontos, especialmente no direito de família e sucessões, possivelmente em razão da velocidade da tramitação do Projeto, questões delicadas como guarda de filhos e disposições de última vontade não foram abordadas, embora carecessem de uma análise mais detida em tempos pandêmicos, a fim de evitar incessantes discussões que inevitavelmente desaguarão – e já estão desaguando – no Judiciário. Na questão das reuniões, o Projeto merece poucos reparos e pode representar um poderoso avanço em relação à utilização de novas tecnologias para democratizar e ampliar o acesso às Assembleias Gerais.
Com relação às matérias estranhas ao Projeto, mazelas do processo legislativo, resta a esperança de que sejam retiradas pela apreciação da Câmara ou, eventualmente, vetadas pelo Presidente, pois em nada contribuem à construção de um sistema jurídico responsivo à pandemia.
[1] Mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP. Advogado.
[2] Comentários ao código civil – edição histórica. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975, p. 12.
[3] Há longuíssimo debate sobre a utilização da expressão “prescrição aquisitiva” para a usucapião. Embora frutífero e interessante, não entraremos nesse debate para não perder o foco da presente reflexão. Aqui importa, somente, a semelhança eficacial da pandemia sobre ambos, prescrição e usucapião, que suspendem, em sentido lato, a fluência dos prazos.
[4] "O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio., disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covid-19--esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-negocio, publicado em 3 de abril de 2020 e acessado em 5 de abril de 2020.
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