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“Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”: revisitando as noções de poder familiar e guarda
“Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”: revisitando as noções de poder familiar e guarda
O tema proposto ao debate não é novidade. Contudo, nesta época de pandemia, desabrocha com força revigorada a confusão conceitual existente sobre o instituto da guarda de criança e/ou adolescente, seja unilateral ou compartilhada.[1] No ponto, para a adequada delimitação do assunto, válido pontuar que esta ingênua abordagem trata da custódia no âmbito da parentalidade, com previsão no Código Civil, deixando de lado a concepção atrelada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que revela um outro viés.
Nesse passo, em meio à overdose de informação diária, emergem notícias – por exemplo – bradando que “juiz concede liminar para guarda unilateral em razão do risco de contágio”. A mesma nota, ao final, especialmente no que tange ao convívio presencial, registra que o magistrado rogou aos pais o emprego do bom senso, para fins de que ocorra a temporária interrupção, devendo o contato, por outro lado, ser mantido pelos meios de acesso virtual.[2] Ao que tudo indica, é possível identificar um “bochincho” de concepções, tendo em vista que o simples desempenho da guarda não é suscetível de causar a contaminação da prole. Aliás, sob os auspícios do lembrete #ficaemcasa, que segue orientações sanitárias da Organização Mundial da Saúde, forçoso concluir – como todos já parecem saber – que a infecção pelo coronavírus ocorre por meio do contato físico, intimamente vinculado à convivência familiar, instituto diverso.
Em termos um pouco mais técnicos, e ao mesmo tempo alertando que inexiste qualquer pretensão de esgotamento da problemática, cumpre enaltecer que a guarda e a convivência familiar são tidas como elementos integrantes do poder familiar (autoridade parental), cuja regulamentação vem encartada no artigo 1.634 do Código Civil. A propósito, observando a literatura, de pronto é factível reverberar que o poder familiar “pressupõe o cuidado do pai e da mãe em relação aos filhos, o dever de criá-los, alimentá-los e educá-los conforme a condição e fortuna da família”.[3] Em outras palavras, consiste na “autoridade pessoal e patrimonial que o ordenamento atribui aos pais sobre os filhos menores no seu exclusivo interesse”, abrangendo “poderes decisórios funcionalizados”.[4]
À conta disso, resta clarividente que é encargo originário dos genitores a tomada de decisões atreladas à formação e ao saudável crescimento dos filhos. Aliás, enquanto o “casal conjugal” permanece unido, passível de subsunção a ideia de que toda e qualquer deliberação é arquitetada em conjunto. Ocorre que, ante a superveniência de eventual rompimento, surge o cenário de instituição da guarda, mas sempre garantida a ausência de alteração nas relações parentais, tal como dispõe o artigo 1.632 do Código Civil. O poder familiar, agora representado pelo “casal parental”, permanece hígido e imutável mesmo nos casos de divórcio ou dissolução de união estável.
A esse respeito, para melhor compreensão, a doutrina auxilia na solução da celeuma, sobretudo ao afirmar que “a guarda é atributo do poder familiar e [...] designa o modo de gestão da vida dos filhos”.[5] Em contrapartida, o problema de maior envergadura, salvo melhor juízo, reside no enunciado normativo do artigo 1.583, §1º, do Código Civil, o qual dispõe: “compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores [...] e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”.
Nessa toada, a título ilustrativo, e diante da conjectura – pela simples leitura – de eventual “supremacia” de alguma espécie de guarda nos feitios decisórios do “casal parental”, vide as respostas aos seguintes questionamentos, a saber: a) o genitor não guardião deve participar das decisões relativas à educação do filho? Sim; b) o genitor não guardião deve participar das decisões relacionadas à saúde do filho? Sim; c) o genitor não guardião deve participar das decisões sobre as atividades complementares do filho? Sim; d) o genitor não guardião deve participar das decisões acerca da formação religiosa do filho? Sim; e) o genitor não guardião deve participar das decisões pertinentes às festividades noturnas do filho adolescente? Sim; f) o genitor não guardião deve participar das decisões referentes à viagem internacional e/ou mudança de domicílio? Sim; g) o genitor não guardião, ao fim e ao cabo, deve ser partícipe das decisões inerentes à suspensão transitória do convívio familiar presencial nesta ocasião de coronavírus? A resposta, mais uma vez, é afirmativa!
É deveras importante obtemperar que a participação decisória está visceralmente vinculada ao poder familiar, e não ao modelo de guarda exercitado, inclusive havendo a garantia legal de recurso ao Poder Judiciário em caso de manutenção da divergência dos titulares de tal direito/dever, nos moldes do artigo 1.631, parágrafo único, do Código Civil. Além disso, é de rigor alertar que “o enfoque exclusivo da guarda muitas vezes revela-se infrutífero, já que depende de fatores comportamentais dificilmente suscetíveis de controle pelo direito”. E outra: “a guarda não é fonte de novos deveres jurídicos”.[6]
Exemplo do arquétipo acima ventilado pode ser muito bem verificado em outra notícia recentemente veiculada, originária do Estado de São Paulo. É que, não obstante a autorização de suspensão do convívio pelo prazo de 14 (quatorze) dias, “como forma de assegurar a integridade física das crianças”, porquanto os pais não residem na mesma cidade, o magistrado assinalou que “incumbiria aos genitores (maiores, adultos e dos quais se espera maturidade) resolver celeumas menores de forma consensual”, visto que “são constitucionalmente responsáveis pelos filhos”.[7]
Em apertada síntese, calha sublinhar que a “guarda é simples companhia fática” com efeitos jurídicos, de sorte que “nenhum dos genitores tem redução do poder familiar se [...] a guarda for unilateral”. A efetiva distinção[8] entre os standards repousa no fato de que o compartilhamento da custódia demanda, com esteio no artigo 1.583, §2º, do Código Civil, a equilibrada divisão do tempo de convívio com o genitor que não detém a chamada base de moradia.[9] É o que se denominou de “sistema de equalização de permanência”.[10]
Enfim, mesmo que transitório, o atual panorama derivado da pandemia, ao passo em que descortina uma sociedade absolutamente sedenta por respostas aos conflitos familiares, igualmente esbarra num certo e persistente imbróglio conceitual. É possível arrematar, diante do raciocínio brevemente exposto, que se pode ter em servidão aquele velho adágio popular: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. No mais, independentemente do alinhamento jurídico tracejado, e estimando que a crise vai passar, os feixes de destaque devem ser direcionados ao aprendizado, à inovação, sob penalidade de estancamento e consequente sacralização das características da personagem Gabriela, de Jorge Amado (“eu nasci assim, eu cresci assim / eu sou mesmo assim / vou ser sempre assim”). O amanhã não pode ser idêntico ao ontem.
Daniel Alt da Silva
Membro do Instituto Proteger
Conselheiro Fiscal do IBDFAM/RS
[1] É sabido que são indicadas na doutrina inúmeras modalidades de guarda de criança e/ou adolescente. O presente artículo, para fins ilustrativos, apenas faz referência aos dois modelos acima indicados.
[2] https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/17-tribunal/19480-coronavirus-juiz-concede-liminar-para-guarda-unilateral-em-razao-do-risco-de-contagio
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 354.
[4] LOBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 293.
[5] ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 329.
[6] TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina da Guarda e a Autoridade Parental na Ordem Civil-Constitucional.
Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/tep_artigos/a-disciplina-da-guarda-e-a-autoridade-parental-na-ordem-civil-constitucional/>. Acesso em: 31 mar. 2020.
[7] https://www.migalhas.com.br/quentes/323266/pai-divorciado-nao-podera-visitar-filhos-em-razao-do-coronavirus
[8] A discussão, insta recordar, igualmente pode ter desdobramentos na órbita da responsabilidade civil. O artigo 923, I, do Código Civil prevê a solidariedade dos pais “pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia”.
[9] SIMÃO, José Fernando Simão. Sobre a Doutrina, Guarda Compartilhada, Poder Familiar e as Girafas. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-ago-23/processo-familiar-doutrina-guarda-compartilhada-girafas#_ftn2>. Acesso em: 31 mar. 2020.
[10] MADALENO, Rolf; MADALENO, Rafael. Guarda Compartilhada: física e jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 187.
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