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A COVID 19 e a (perigosa) corrida para a elaboração de testamentos
A COVID 19 e a (perigosa) corrida para a elaboração de testamentos
Em meio ao caos provocado pela pandemia do COVID 19, é natural que ocorram reflexões pessoais sobre determinadas posturas adotadas, notadamente quanto estas podem ter desdobramentos futuros. O fato ensejou o aumento expressivo de consultas acerca sobre a lavratura de testamentos, pois as pessoas diante de um cenário concreto perceberam que o assunto, por diversos motivos, não era tratado como relevante. Importante registrar que, a partir das consultas recebidas em nossa banca, percebemos que o pensamento não surge da idéia de que o cliente imagina que será uma vítima direta da COVID 19, mas de que, como qualquer pessoa natural, se sujeita a situações que fogem do seu controle e de que o ciclo de vida é temporário. Enfim, a idéia da ‘finitude humana’ parece ter despertado em grande número de pessoas a importância de se deliberar em vida sobre a sucessão causa mortis.
Assim, visando elucidar as principais questões que sobressaíram das consultas, traçamos breves linhas sobre o assunto.
Primeiramente, não se pode confundir a elaboração de testamento com planejamento sucessório, pois o primeiro é apenas uma das ferramentas para a execução do segundo. O planejamento sucessório é um procedimento muito mais complexo, em que se analisará toda a realidade patrimonial da pessoa e seus anseios sobre a sua distribuição. Não se trata apenas da destinação/divisão de bens para determinadas pessoas, mas da adoção de medidas a serem executadas tais como: (a) criação de mecanismos para a proteção de pessoas em situação de fragilidade, (b) previsão de reserva e fluxo de caixa para a subsistência familiar, (c) manutenção de negócios empresariais e (d) posicionamento adequado dos bens frente às necessidades dos herdeiros.
Não há um modelo exato para o desenho do planejamento sucessório, pois as relações familiares e o acervo patrimonial de cada pessoa são invulgares, extraindo-se peculiaridades de cada caso. No particular, deve ser dito que o planejamento sucessório pode ser feito a partir de várias operações firmadas em negócios jurídicos por ato inter vivos, tais como a partilha em vida (art. 2.018 do Código Civil) e doações com reserva de usufruto dos bens, sendo possível ao doador estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário (art. 547 do Código Civil). De toda sorte, em tais hipóteses não há liberdade ampla ao doador, sendo consideradas como nulas as doações que não reservem bens para subsistência do doador, ou quando o negócio jurídico extrapola a metade do patrimônio do doador, caso este possua herdeiros necessários (arts. 548 e 549 do Código Civil). Em se tratando de patrimônio que envolve cotas societárias, é possível a estruturação de holding familiar, definindo-se, em participações, a divisão e até a gestão da empresa em caso do falecimento do autor da herança. De outra banda, com olhos em titularidades imobiliárias que permitem cisões e incidência de direitos reais em favor de terceiros (= herdeiros), admite-se que sejam elaborados negócios jurídicos que garantam a moradia (por exemplo, através de direito de habitação ou de uso) ou ainda que permitam exercício de uso e extração de frutos de determinados bens (por exemplo, através de usufruto e/ou direito de superfície). A célere exemplificação, portanto, demonstra que o planejamento sucessório pode estar escorado em operações que o titular do patrimônio pode acompanhar a sua execução em vida, não tendo que aguardar que a transferência de titularidade aos herdeiros se efetue após o seu falecimento (situação que ocorre quando a opção é o testamento).
O planejamento sucessório reclama que seja desenvolvido trabalho detalhado e personalizado, em que se examina concretamente a realidade patrimonial do cliente e os seus anseios, sendo fundamental, ainda, que se permita a inserção de ajustes ao longo do tempo, pois a dinâmica da vida pode alterar o quadro fático inicial. Como o planejamento sucessório leva em consideração dados atuais é inevitável que ocorra revisitação constante, tanto no plano patrimonial quanto nos aspectos das relações pessoais. Não é ocasional, inclusive, que nos meses de maio e junho ocorra maior movimento nas bancas de advocacia que trabalham com planejamento sucessório, pois o cliente, ao fechar o imposto de renda ao findar de abril (data limite da declaração do IR), pode verificar a necessidade de eventual alteração no planejamento sucessório, em decorrência de mudança patrimonial no seu acervo (por exemplo, a aquisição ou venda de determinado ativo).
As colocações acima se justificam para demonstrar que planejamento sucessório não é sinônimo de testamento, sendo este, em verdade, uma das ferramentas fundamentais na formatação do primeiro (como também outros negócios jurídicos). No ponto, merece salientar que na maioria dos casos levados à consulta de nossa banca, o testamento, analisado de forma isolada, não se mostrou apto para atender com eficiência os anseios do cliente.
De todo modo, em relação à elaboração do testamento algumas notas necessitam ser trazidas, pois a sua feitura de forma corrida, açodada, poderá provocar resultado contrário ao que era almejado quando da sua elaboração. Com efeito, o testamento é um negócio jurídico que está atrelado a vários aspectos formais, sendo que, em determinados casos, não sendo seguida a modulação legal, o instrumento restará acoimado de nulidade, sem prejuízo de hipóteses em que restará rompido ou até alvejado pela caducidade.
É de conhecimento vulgar que na elaboração do testamento é necessário respeitar a “legítima” em caso de presença de herdeiros necessários (cônjuge/companheiro sobrevivente, descendentes e ascendentes – arts. 1.845-1.846 do Código Civil), ou seja, o titular do patrimônio somente poderá dispor em relação a 50% (cinqüenta por cento) dos seus bens, já que a outra metade é tratada como indisponível em favor de tais herdeiros. Todavia, é ingênuo imaginar que efetuado o corte patrimonial acima, o testamento estará apto a produzir efeitos amplos, pois, além da proteção da “legítima” há bom quantitativo de regras que podem colocar as disposições testamentárias em cheque.
Em exemplo, os arts. 1.973-1.974 do Código Civil dispõem que o testamento será rompido em todos os seus termos quando o testador não contemplar descendente que não havia sido concebido ou que não conhecia na época em que foi elaborado o testamento, mesmo que por ignorância. Assim, em exemplo, se o testador possuir filho não reconhecido ou desconhecido que obtenha reconhecimento de vinculo familiar ou afetivo, restará rompido o testamento em sua plenitude. Ainda a título de ilustração, há de se ter atenção na inserção de cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade dos bens da herança, tendo em vista que estas não possuem livre trânsito no testamento, estando, em regra, afastada da parte da “legitima” (art. 1.848, do Código Civil). Arrematando as exemplificações, a nomeação do testamenteiro (arts. 1.976-1.990 do Código Civil) não tem recebido o tratamento adequado na elaboração dos testamentos, não sendo incomum eleição de pessoa que não possui aptidão para função ou ainda que se encontre em presumida colisão de interesses com beneficiários da sucessão, situação que permite a destituição judicial da pessoa que foi escolhida pelo testador, criando ambiência de animosidade para o curso do inventário causa mortis.
Não suficiente as questões legais que envolvem o próprio conteúdo do testamento, há ainda forte blindagem de aspectos formais aplicada ao testamento, sendo que cada espécie possui detalhes íntimos, que caso não observados no momento da elaboração (e da assinatura respectiva) poderão nulificar todo o negócio jurídico ou ao menos parte das disposições testamentárias. No sentido, as modalidades mais usuais de tal negócio jurídico (= testamentos público e particular) reclamam a leitura do texto do instrumento perante testemunhas, a fim de ficar evidenciada a vontade do testador e a inexistência de aparente vício de autonomia da vontade (arts. 1.864, II, e 1.878, § 1º do Código Civil). Seguindo no exemplo, merece grande atenção a escolha das testemunhas instrumentárias, até porque a situação pode se tornar embaraçosa quando o testador pretende contemplar pessoa que consta como testemunha do testamento (art. 1.900, V, do Código Civil).
A resenha acima mostra, através de pequenas ilustrações, que há áreas com exigências formais que, se não observadas, colocarão em risco a saúde formal do testamento e, de modo diverso do pretendido pelo seu autor, poderão abrir espaço para debates judiciais para afastar a sua execução.
O momento atual é de preocupação, pois pudemos constatar que algumas das consultas que chegaram à nossa banca decorreram de embaraços e frustrações advindos de testamentos que estavam sendo elaborados de forma descuidada e, o que é pior, sem acompanhamento de profissional que tenha capacidade para a empreitada. Às claras, a pandemia do CONVID 19 fez com que muitas pessoas refletissem sobre a necessidade de efetuar o seu planejamento sucessório. Contudo, não se pode reduzir tal idéia a confecção de testamento, pois, provavelmente, este não atingirá completamente os anseios daquele que pretende planejar sua sucessão. Não suficiente, é por deveras relevante alertar que a elaboração de testamento não é uma tarefa tão simples como pode transparecer, sendo certo que eventual nulidade poderá colocar em jogo a sua própria execução, não sendo raras as ações judiciais que buscam a anulação ou a declaração de nulidade de testamentos por vícios em seu conteúdo ou na sua forma.
Dessa forma, salvo casos excepcionais, não se justifica a corrida que está acontecendo para a elaboração de testamento, muito menos ainda quando se faz confecção afoita do instrumento, colocando em risco a sua higidez formal. Aconselhamos que o planejamento sucessório (como ato complexo composto de mais de um negócio jurídico) e/ou a elaboração de testamento seja feita com a participação de advogado que tenha expertise no assunto, a fim de que as expectativas do cliente não se vejam frustradas.
Rodrigo Reis Mazzei
Sócio Fundador da Machado, Mazzei e Pinho Advogados
Mestre, Doutor e com pós-doutoramento
Professor Universitário
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