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A guarda de fato como terceira via entre a curatela e a TDA
Existem três formas de proteção e promoção de direitos fundamentais da pessoa com deficiência mental ou psíquica: a) curatela; b) tomada de decisão apoiada; c) guarda de fato. Não obstante as duas primeiras sejam modelos jurídicos reconhecidos na legislação civil brasileira, apartam-se em sua estrutura e função: a curatela é uma medida de incapacitação judicial de pessoas desprovidas de autodeterminação (art. 4º., III, CC), cuja função precípua é a de proteção de quem necessita de representação ou assistência para a prática dos atos da vida civil. Em contrapartida, a TDA (art. 1.783-A) é uma medida de apoio a alguém que mantem a capacidade plena, sendo a sua funcionalidade primordialmente localizada na promoção, pelos apoiadores, dos espaços de autonomia da pessoa com deficiência em situação de vulnerabilidade. Em contrapartida, considerando que o Código Civil prescindiu de uma tipificação ou caracterização legal da figura da guarda de fato, podemos afirmar que o guardador de fato será toda pessoa que custodie ou atenda alguém necessitado de proteção, sem possuir título legal que o habilite para tanto. Cuida-se de uma situação de atenção prolongada no tempo, ocupando uma posição de centralidade real entre as formas em que são atendidas as pessoas afetadas por uma deficiência. Por conseguinte, nos planos estrutural e funcional a guarda de fato tanto poderá mimetizar a curatela como a TDA, recaindo sobre um heterogêneo universo de pessoas com ausência ou déficit de capacidade natural e não são curateladas ou apoiadas. Em casos mais graves, sob o ângulo jurídico a pessoa deveria estar curatelada e em outras situações, bastaria a realização do negócio jurídico de apoio.
Esta ampla definição permite que sejam considerados guardadores de fato tanto pessoas naturais como pessoas jurídicas - tais como clínicas especializadas ou centros de residência para terceira idade. Justamente por se tratar de um dos instrumentos protetivos que mais se concilia com os fins da Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência, a intervenção da autoridade judicial se produzirá no momento em que tenha conhecimento da situação da guarda de fato. Todavia, as medidas que adotará a partir desse momento não se passarão no interno de um procedimento de modificação de capacidade. O Ministério Público não terá que automaticamente demandar a incapacitação ou promover a tomada de decisão apoiada (medida que só poderá ser iniciada pelo próprio interessado) se comprovado que nas circunstâncias do caso, a guarda de fato parece ser a instituição mais adequada para tutelar os interesses daquela pessoa. Com efeito, o melhor caminho para o magistrado que venha a ter conhecimento de uma guarda de fato que funcione a contento será a outorga ao guardião de faculdades já previstas para a tutela e curatela, como uma forma de agilizar trâmites e favorecer os interesses da pessoa sob a guarda. Não se trata de conceder um mandato ilimitado ao guardião, porém um reconhecimento da juridicidade da guarda com imposição de limites de atuação sob medida, conforme a concretude do caso.
Porém, para tanto, requer-se uma inovação legislativa que possa alçar aos planos da validade e eficácia os atos praticados pelo guardião de fato que redundam em utilidade à pessoa em situação de hipervulnerabilidade, convertendo-a em uma forma de representação legal que torne efetiva a proteção e salvaguarda dos seus interesses, sem a necessidade de se socorrer de uma sentença de curatela em casos em que o indivíduo preserve resíduos de autogoverno. Enquanto a legislação civil e processual não for aprimorada e o fato jurídico da guarda de fato de pessoas com deficiência se mantiver periférico ao direito, somente sobejará o recurso ao modelo da gestão de negócios para se conferir pós-eficácia aos atos praticados pelo guardião de fato quando revertam em utilidade/proveito da pessoa vulnerável. Cumpre recordar que em seu dia a dia, a pessoa maior com deficiência psíquica despida de representação terá a possibilidade de realizar uma atuação pessoal juridicamente válida na medida em que possua capacidade natural de se autodeterminar no momento em que atuou. Isto é, a pessoa não curatelada em tais circunstâncias possuirá uma capacidade formal, mas a eficácia real de seus atos dependerá daquilo que a capacidade natural lhe permita fazer. A evidente distinção consiste em que há uma presunção de invalidade dos atos praticados pela pessoa curatelada sem o seu curador (o registro civil facilmente comprovará) enquanto na falta do devido processo legal, a pessoa interessada terá que provar a falta ou insuficiência de capacidade natural ao tempo da prática do ato pontualmente inquinado como inválido. Evidente, isso gerará reflexos, como a própria discussão sobre a boa fé daquele que com ele contratou e uma paralisia generalizada da esfera jurídica da pessoa sob a guarda de fato, ao somarmos a sua eventual falta de capacidade natural com a ausência de legitimação do guardião para atuar em seu nome, tudo isso associado ao receio de terceiros em realizar atos jurídicos com uma pessoa com deficiência psíquica em tais circunstâncias.
O fundamental é compreender que como um fato jurídico, a guarda de fato não consiste em uma instituição legal, porém em uma situação de fato que o direito toma em consideração para a produção de determinados efeitos. Assim, quando eventualmente ela se torna objeto de regulação legal (sujeitos, requisitos, conteúdo, efeitos e extinção), poderá até mesmo conservar a nomenclatura, mas especificamente quando o cuidado recai sobre pessoas maiores com deficiência psíquica ou idosos com doenças crônicas degenerativas, culminará por alterar a sua natureza, tornando-se um novo modelo jurídico de guarda, uma espécie de “guarda de direito” sem prévia incapacitação, ou uma espécie de “curatela light”. Em outros termos, a guarda de fato se converte em uma situação transitória, cujo destino inexorável será o de desembocar em uma guarda legal. E para agravar, caso essa guarda de fato institucionalizada demande uma prévia avaliação formal da capacidade natural da pessoa com deficiência, ao fim e ao cabo teríamos um modelo jurídico parelho à curatela, apenas com a distinção do “nomen juris”. Enquanto exerce a guarda de fato à revelia do direito, sem qualquer forma de legitimação da posição em que atue, o guardião estará privado de adotar medidas formais que redundem em benefício e interesse de outrem. Esse dado não é necessariamente negativo, pois cuidados básicos já são suficientes na maior parte dos casos em que a pessoa sob guarda de fato não possui patrimônio significativo que demande a tomada reiterada de decisões relevantes (que não poderiam ser levadas a efeito validamente pelo titular dos bens e por seu guardião). Assim, frequentemente, não será preciso que o guardião desenvolva qualquer atividade juridicamente relevante, fazendo com que a guarda de fato alcance os seus propósitos mesmo à margem do direito. Fundamentalmente, se a guarda de fato funciona adequadamente, não será necessária ou conveniente uma intervenção externa sobre a mesma, pois mesmo havendo em tese causa para uma curatela ou uma TDA, inexiste motivo para levar essas medidas adiante, pois as necessidades da pessoa estarão cobertas e, na medida do possível, bem atendidas.
Todavia, ao guardião de fato será interditada a possibilidade de peticionar em organismos oficiais, receber informações, ter acesso a conta bancária, a um notário, enfim, exercer a aquilo que se considera “administração ordinária” do patrimônio alheio, cingindo-se aos cuidados básicos com a vigilância da pessoa, alimentação e medicação. Ocorre que, na ausência de alternativas – como encontrar um segundo apoiador e iniciar um processo de Tomada de Decisão Apoiada - a premência da acreditação para a prática de atos (intervenções sanitárias e sociais imediatas, impedimento de esvaziamento patrimonial) muitas vezes conduz o guardião de fato a tomar a iniciativa de se converter em curador, sem que estejam presentes os requisitos legais para a adoção da medida excepcional e extrema de incapacitação. Quer dizer, por vezes, a curatela será uma opção necessária (embora dolorosa) para uma situação a princípio de guarda de fato, quando a pessoa tenha patrimônio significativo e careça completamente de autodeterminação, o que requer atos constantes de representação ou assistência. A titularidade de uma pluralidade de bens também dará ensejo a uma TDA quando a pessoa vulnerável com fragilização de autogoverno requeira coadjuvantes que possam lhe auxiliar em suas constantes decisões econômicas, evitando um descalabro patrimonial. Afora tais casos, como frisamos, em um país de enorme desigualdade socioeconômica como o Brasil, não haverá prejuízo de manter sobre a guarda de fato um enorme número de pessoas que se localizam no limiar do mínimo existencial, quando a atuação do guardião seja positiva sob o aspecto pessoal e afetivo.
Como alternativa entre o binômio legal curatela/TDA e simplesmente manter as coisas como estão (deixar a guarda de fato completamente alijada de controles), impõe-se a delicada questão de modelar um estatuto mínimo de uma guarda de fato, pela qual se atribua ao guardião funções e faculdades, sem, contudo, realizar-se uma prévia avaliação formal da capacidade natural da pessoa sob guarda nem um controle judicial sobre a nomeação do guardião. De fato, não teríamos aí uma curatela, tampouco uma tomada de decisão apoiada, o quê poderia gerar celeumas, pois qualquer intervenção legislativa sobre a guarda de fato implicará em um fator de heteronomia a limitar as possibilidades de atuação da pessoa com deficiência psíquica. Afinal, sem um controle judicial sobre a capacidade real de entender e querer da pessoa sob guarda de fato e da mensuração da idoneidade do guardião que atuará em seu nome, instala-se uma insegurança sobre a proteção adequada que se destine à pessoa com deficiência. No estágio atual do direito brasileiro, nada existe em termos de intervenção do ordenamento sobre a guarda de fato. Ocorre que, eventualmente, pessoas com deficiência psíquicas alijadas do sistema binário da curatela/TDA necessitarão da intervenção formal por parte do guardião, mesmo em aspectos envolvendo atos sanitários ou obtenção de informações administrativas. Essa acreditação poderá ser obtida através de uma ata notarial. De acordo com o art. 384 do CPC/15: “A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião”. Tratando-se a guarda de fato de um fato notório sobre o qual se fundam direitos e se legitimam situações patrimoniais e existenciais com transcendência jurídica, a ata notarial será um meio típico de prova com presunção de veracidade e fé pública. Outra via de acreditação do guardião de fato será o procedimento de jurisdição voluntária, atividade de natureza jurisdicional exercida pelo Estado em processos cujas pretensões consistem na integração e aperfeiçoamento de negócios jurídicos que dependem do pronunciamento jurisdicional. Por essa via, obtém-se a declaração judicial da existência da guarda sobre a pessoa com deficiência, podendo o magistrado, alheio à legalidade estrita, ditar as medidas convenientes e oportunas (parágrafo único do art. 723 do CPC/15) a fim de evitar riscos e/ou prejuízos patrimoniais ao indivíduo vulnerável.
Assim, a interpretação sistemática do artigo 1.590 do Código Civil conduz ao alargamento do conceito de guarda, no trato das relações verticais entre ascendentes e descendentes, sejam os vínculos biológicos, afetivos ou registrais. No conceito “lato sensu” de guarda como uma obrigação imposta a alguém de ter vigilância e zelo para conservação do bem, de coisas ou pessoas, que estão sob sua responsabilidade, podemos realizar um recorte “stricto sensu” para a guarda do direito de família, como um conceito dinâmico e poroso, que nos últimos anos se ampliou para acolher as formas de guarda unilateral, alternada, compartilhada (ou conjunta) e nidal, sendo comum a essas denominações a ideia da convivência familiar. Nessa constante ressignificação funcional do conceito de guarda, merece enfoque uma nova etapa, agora tendo como destinatários não apenas os filhos, mas aquelas pessoas cuja vulnerabilidade se potencializa pela persistência de uma deficiência psíquica ou intelectual congênita ou pela perda ou deterioração da autodeterminação na idade adulta ou na velhice. Ao alargar o conceito de responsabilidade parental, objetivando a persistência da convivência familiar com os filhos adultos incapazes, o art. 1.590 do Código Civil não apenas faz implícita menção aos genitores - protagonistas naturais da função de guardiões – mas faculta a compreensão, de ser o guardião o pai ou a mãe, ambos, ou mesmo terceiros, que detêm a guarda fática e jurídica deles.
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