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A configuração da família socioafetiva como família extensa em atendimento ao dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente
A configuração da família socioafetiva como família extensa em atendimento ao dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente
The configuration of the socio-affetive family as extended family in compliance with the provisions of the Child and Adolescent Statute
Beni Lara de Moraes Cassettari
Advogada de Direito de Família e Sucessões e Consultora Jurídica
Contato: blm.cassettari@gmail.com
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar o artigo 19-A e parágrafos do Estatuto da criança e do Adolescente alterados pela nova Lei da Adoção, fazendo uma relação entre família extensa com a família sócio-afetiva da gestante que decide pela adoção do filho ainda no ventre. Foram considerados os conceitos básicos do instituto jurídico da adoção, além de um vislumbramento para a inclusão da família sócio-afetiva na letra da lei, a fim de salvaguardar os direitos da criança, atendendo o princípio da supremacia do melhor interesse do menor e os direitos fundamentais devidamente garantidos em nossa Carta Magna.
PALAVRAS-CHAVE: Adoção. Família sócio-afetiva. Família extensa. Supremacia do melhor interesse do menor. Constituição Federal.
ABSTRACT: This article aims to analyze the article 19 – A and paragraphs of the Child and Adolescent Statute as amended by the new adoption law, making a relationship between extended family and the socio-affetive family of the pregmant woman who decides to adopt the child still in the womb. Is was considered the basic concepts of the legal institute as adoption, as well as glimpse into the inclusion of socio-affective family in the letter of the law, in order to safeguard the rights of the child, taking into account the principle of supremacy of the best interests of the minor and the fundamental rights of the child guaranteed in our Magna Letter.
KEYWORDS: Adoption. Socio-affective family. Extended family. Supremacy in the best interests of the minor. Federal Constitution.
- INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, as famílias passaram por muitas transformações, principalmente em suas estruturas. Conforme bem apontou Caio Mário Da Silva Pereira: “a celeridade da vida não pode ser detida pelas muralhas de um direito codificado”.
A entidade familiar está devidamente protegida pela nossa Constituição Federal em seu capítulo VII, mais precisamente nos artigos 226 e 227. Ademais, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que restou consagrada a grande evolução no Direito de Família.
A família deixou de ser apenas aquela formada pelo casamento, pela união estável e monoparental com suas implicações em muitas esferas jurídicas. Esse trio de entidade não está limitada na nossa Constituição Federal, haja vista, além dos vários entendimentos jurisprudenciais, enunciados, resoluções, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe um conceito mais abrangente do que vem a ser a entidade familiar.
A família contemporânea é a base da sociedade, e está devidamente protegida pelo manto da Constituição Federal, trazendo em seu bojo, o princípio da dignidade da pessoa humana (Artigo 1º, inciso III da Constituição Federal), além dos laços de afetividade e convivência solidária que enriquece o valor social e jurídico.
Nossa legislação protege a família monoparental, matrimonial, informal, anaparental bem como a família reconstituída (stepfamily) e sobre essa última modalidade de família, é que este artigo se atenta.
- Família Reconstituída e os laços de afetividade
Depois da separação, é comum que surjam novos nichos familiares, principalmente quando a prole fica sob a guarda da mulher. Quando essa mulher contrai novas núpcias ou se vê em uma nova união estável, surge daí, a família reconstituída, também conhecida como mosaica ou pluriparental. Trata-se de um casamento ou união onde o homem ou a mulher, ou ainda ambos, integram uma nova família com filhos provenientes de um casamento ou relação que os precedeu.
E nessa nova família reconstituída, nasce também muitos laços de afeto que com a evolução jurisprudencial e doutrinária, ganhou contornos sociais e jurídicos, principalmente no que tange à construção da identidade de seus membros.
O padrasto ou a madrasta tem fundamental papel no desenvolvimento emocional, afetivo, psicológico e ainda, financeiro na vida dos enteados. E esses laços de afetividade quando bem construídos geram efeitos jurídicos.
João Baptista Villela, em seu texto Desbiologização da Paternidade traz (https://edisciplinas.usp.br):
“Exprime, no contexto, uma ligação de confiança e ternura, ingrediente fundamental de uma verdadeira paternidade. Ali, era o fruto maduro de uma convivência plantada no solo fértil do amor e que, muito significativamente, deslocava as frias pretensões da consanguinidade”.
E é com base nos laços de afetividade que o Recurso Extraordinário nº 898060 São Paulo (STJ) de relatoria do Excelentíssimo Ministro Luiz Fux, fixou a tese de repercussão geral, reconhecendo a existência da paternidade socioafetiva, sem detrimento da paternidade biológica, bem como seus efeitos na esfera jurídica. Comentado recurso foi um marco para o direito de família no que pertine ao parentesco socioafetivo. Ainda, para o Ministro-Relator, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. “Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário”, salientou o ministro em seu voto.
Pontua Romualdo Baptista dos Santos: “Verdade é que a afetividade é indissociável dos seres humanos e integra toda a conduta, de modo que não se pode pensar em nenhuma ação que não seja influenciada pelos aspectos afetivos da personalidade. Assim, por ser constituída de personalidade, a estrutura psíquica converte-se num valor a ser preservado na órbita do direito”.
- Da busca da família extensa
A Lei 13.509/2013 trouxe severas alterações para a Lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O presente artigo visa trazer uma reflexão ao dispositivo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente que reza:
Artigo 19-A A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
§3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do artigo 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogáveis por igual período.
§4º Na hipótese de não haver a indicação do genitor e de não existir outro representante da família extensa apto a receber a guarda, a autoridade judiciária competente deverá decretar a extinção do poder familiar e determinar a colocação da criança sob a guarda provisória de quem estiver habilitado a adotá-la ou de entidade que desenvolva programa de acolhimento familiar ou institucional.
O legislador, quando da elaboração desse dispositivo, visou, única e exclusivamente, a tutela do princípio da prevalência em família natural e sua convivência com os membros.
A nossa Carta Magna, em seu artigo 227, alterada pela Emenda Constitucional nº 65/2000, garantiu à criança e ao adolescente a convivência familiar e comunitária. Tal dispositivo teve como corolário, a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas.
Trata-se de uma forma de resgatar e valorizar o direito precípuo de convivência familiar e comunitária, pois é um direito fundamental devidamente tutelado pela Constituição Federal.
O conceito de família extensa, conforme Lei 12.010/2010 – também conhecida como nova lei de adoção – acresceu um parágrafo único ao art. 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente, nos seguintes termos:
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
O supracitado dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente traz em seu bojo, o conceito de família extensa, que compreende os grupos familiares formados por avós e netos, tios e sobrinhos, formada por parentes próximos com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Segundo o jurista Rolf Madaleno: “É antes de qualquer coisa a consagração legal da socioafetividade nas relações de filiação...”.
A família extensa é, então, a família natural vista sob perspectiva mais ampla, para além da perspectiva nuclear. O legislador valorizou as várias relações jurídicas que a criança pode formar com os mais diversos familiares, a partir de vinculações afetivas relevantes mutuamente entre os membros de uma família, propiciando-lhes, assim, direitos recíprocos, principalmente no que se refere à convivência familiar.
- A família socioafetiva como família extensa.
Imperioso trazer à baila, um cenário proposto por este artigo que vale refletir. A gestante que opta pela entrega de seu filho e indica membro da família extensa cujo parentesco é socioafetivo.
O parentesco socioafetivo surge da aparência social deste parentesco, da convivência familiar duradoura. É, por exemplo, o padrasto que tem sua enteada por filha. Esta pessoa sempre recebeu os afetos e atenções de filha. Social e espiritualmente este padrasto a concebeu como filha. É o caso dos chamados “pais de criação”, que assumem a paternidade de criança que sabem não serem pais, mas os tratam como se filhos fossem.
Nesse cenário, devemos trazer como colorido de tela o princípio norteador da nossa Carta Magna, contido no artigo 1º, inciso III, o direito fundamento à dignidade da pessoa humana.
Quando a gestante, ainda grávida, decide por entregar seu filho, independentemente do motivo, poderá sim ela optar por entregar à um familiar sócio-afetivo pois foi com ele que a gestante construiu seus laços de afetividade, devendo ser preservado.
A criança que vai nascer tem o direito também de conviver com familiar socioafetivo, como forma de preservar sua origem afetiva, que favorecerá a construção de sua identidade.
A busca pela família biológica sem laços de afetividade apenas para cumprir a letra da lei trará inúmeros prejuízos não apenas à gestante, mas principalmente à criança, sendo tal ato, total desrespeito com o princípio da supremacia do melhor interesse do menor.
- Princípios norteadores
O direito à convivência familiar consubstancia-se em direito fundamental previsto no art. 227 da Constituição Federal, que se constitui no rol exemplificativo de direitos fundamentais especificamente dirigidos à criança e ao adolescente:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O direito à convivência familiar é de suma importância para o desenvolvimento da criança e está intimamente relacionado ao princípio da solidariedade.
Ensina Paulo Lobo: “A solidariedade familiar é fato e direito; realidade e norma. No plano fático, as pessoas convivem, no ambiente familiar, não por submissão a um poder incontrariável, mas porque compartilham afetos e responsabilidades. No plano jurídico, os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos, inclusive na legislação infraconstitucional, a exemplo do Código Civil de 2002, o que não significa que se alcançou a dimensão ideal da solidariedade, impondo pugnar-se por avanços legislativos.” (http://www.ibdfam.org.br).
O princípio da solidariedade familiar é a base para o princípio do melhor interesse da criança. Os dois princípios trilham juntos.
- Considerações finais
Por isso, no que pertine ao artigo 19-A, trazer a família socioafetiva como se família extensa fosse é a concretização no plano fático e jurídico os princípios da solidariedade familiar e melhor interesse da criança.
Fortalece-se, desse modo, a ideia de ampliação da família extensa também para a família socioafetiva, na medida em que ela participa de forma efetiva da criação e educação dos seus membros, em face das necessidades, seja de cunho emocional, pessoal ou financeira. Faz-se de suma urgência, ressignificar a ideia de família contemporânea, pois é nesse novo aglomerado que existem pessoas unidas por laços de afetividade e de solidariedade, atendendo-se assim, aos princípios norteadores do Estatuto da Criança e dos Adolescentes, bem com os direitos fundamentais tutelados por nossa Carta Magna.
Referências Bibliográficas
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 9ª. Edição. Rio de Janeiro:Forense, 2019. p. 676
PEREIRA. Caio Mário da Sila. Direito Civil, alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 105
SANTOS. Romualdo Baptista dos. A tutela jurídica da afetividade: os laços humanos como valor jurídico na pós-modernidade. Curitiba: Juruá, 2011. p. 135
Site do IBDFAM www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/193.pdf Princípio da solidaderiedde familiar.
Site da USP www.edisciplina.usp.br/mod/resource/view.phd?id=2426605 A desbiologização da Paternidade.
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