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Do direito fundamental à alteração do prenome e do gênero da pessoa transgênero - Prov. 73/2018 CNJ
Do direito fundamental à alteração do prenome e do gênero da pessoa transgênero - Prov. 73/2018 CNJ
O princípio da dignidade humana tutela e protege as questões existenciais do homem, prezando-o pelo ser pessoa, vedando qualquer forma de discriminação e garantindo o exercício de todos os direitos fundamentais, o que inclui o direito fundamental à identidade de gênero.
O conceito de gênero foi empregado para distinguir o sexo, no sentido anatômico, da identidade, no sentido psíquico. Assim, o gênero não está vinculado ao conceito biológico do sexo, mas ao aspecto social[1], com a identificação do indivíduo com determinado gênero, diferenciando-o socialmente.
Transgênero, também chamado de transexual, é a pessoa que se identifica com um gênero diverso do seu sexo biológico, ou seja, possui uma expressão de gênero diferente do seu sexo anatômico, o que não está obrigatoriamente associado com a orientação sexual. Uma mulher transgênero, ou seja, um homem biológico identificado com o gênero feminino, pode sentir atração por uma mulher (homossexual) ou por homem (heterossexual), portanto, ser transgênero independe da orientação sexual.
As pessoas cisgêneros, diverso do transgênero, são os indivíduos que se identificam com seu órgão sexual, ocorrendo uma identidade de gênero do sexo biológico com a identificação sociocultural da pessoa.
Como ressalta Rodrigo da Cunha Pereira, “o sujeito de direito é antes de tudo um sujeito de desejo”, logo, em face da noção de direitos humanos, inequívoca a compreensão de que transgêneros e cisgêneros possuem a mesma dignidade e merecem receber a mesma proteção do Estado, não podendo os primeiros possuírem barreiras no ordenamento jurídico que dificultem ter sua identidade social reconhecida. Acrescenta que:
No dia 1º de março, o Supremo Tribunal Federal deu um importante passo em prol do processo civilizatório, e da desestigmatização, ao julgar a ADI 4.275, reconhecendo aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Isto significa muito mais que uma simples mudança no registro civil: é uma mudança que protege as pessoas trans do escárnio, da zombaria e da violência.
Há pessoas que não se identificam com o gênero de sua anatomia. Como se não bastasse o sofrimento gerado por esse conflito interno, sofrem também uma condenação social por terem nascido diferente da maioria das pessoas. Pior ainda era o sofrimento causado pelo próprio ordenamento jurídico, que reforçava essa exclusão e marginalização, impondo barreiras jurídicas e dificultando que essas pessoas pudessem ter sua identidade reconhecida de acordo com o gênero com o qual se identificam.[2]
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discriminação odiosas, da liberdade e da privacidade, que assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, interpretou o art. 58 da Lei n. 6.015/1973[3] conforme o Pacto de São José da Costa Rica e a Constituição Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275-DF, e reconheceu o direito da pessoa transgênero, que assim o desejar, a substituir o prenome e o sexo diretamente no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamento hormonais ou patologizantes.[4]
A Ação foi ajuizada pelo Ministério Público Federal (Procuradoria- Geral da República) para que o art. 58 da Lei de Registros Públicos fosse interpretado conforme a Constituição Federal, permitindo alterar o prenome e o gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia de transgenitalização. Os ministros do STF, por unanimidade, reconheceram o direito e, por maioria, dispensaram a necessidade de autorização judicial, vencido em parte o Relator, Ministro Marco Aurélio, que considerou necessário procedimento de jurisdição voluntária, e os Ministros Alexandre de Moraes, GilmarMendes e Ricardo Lewandowski, que julgaram pela exigência de autorização judicial para alteração.
Após o julgamento da ADI n. 4.275/DF, o STF, na Reclamação n. 31.102/PR, cassou decisão do Juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de Maringá/PR, que determinou a produção de perícia no processo judicial para alteração do prenome e sexo. Fundamentou o Ministro Alexandre de Moraes que no julgamento da ADI n. 4.275/DF reconheceu-se que “é vedado exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico que exijam do indivíduo a assunção de um papel de vítima de determinada condição, sendo a autodeclaração suficiente para justificar a alteração do registro civil, inclusive – e não exclusivamente – na via cartorária”. Lembrou o Ministro Fachin que afirmou em seu voto que “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”.[5] Assim, para a mudança do registro não existem condicionantes, na via judicial ou extrajudicial.
No julgamento do RE n. 670.422, Tema 761, no dia 15.08.2018, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, reafirmou a possibilidade de alteração de gênero no assento de nascimento civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo, fixando a seguinte tese:
"i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos".[6]
A Corregedoria Nacional de Justiça, considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.275/DF, expediu o Provimento n. 73, de 28.06.2018, dispondo sobre a alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais, diretamente no cartório, sem necessidade de autorização judicial, realização de cirurgia de redesignação sexual ou tratamento hormonal ou patologizante.
A alteração do nome e gênero também dispensa laudo médico ou estudo psicológico que ateste transexualidade, que é apenas facultativo (art. 4º, § 7º, Prov. n. 73/2018), realizando-se o procedimento com base exclusivamente na autonomia privada da pessoa, que exerce na plenitude sua autodeterminação para adequar à sua identidade sociocultural autopercebida, desde que possua dezoito anos completos. Consta no art. 2º e 4º, § 1º do Provimento n. 73/2018 que:
Art. 2º. Toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida.
§ 1º A alteração referida no caput deste artigo poderá abranger a inclusão ou a exclusão de agnomes indicativos de gênero ou de descendência.
§ 2º A alteração referida no caput não compreende a alteração dos nomes de família e não pode ensejar a identidade de prenome com outro membro da família.
§ 3º A alteração referida no caput poderá ser desconstituída na via administrativa, mediante autorização do juiz corregedor permanente, ou na via judicial.
Art. 4º O procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos.
§ 1º O atendimento do pedido apresentado ao registrador independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico.
(...)
Inequívoco o avanço nas decisões do STF e no Provimento n. 73/2018 CNJ no reconhecimento dos direitos humanos das pessoas transgêneros, permitindo o exercício de seus direitos fundamentais constitutivos da dignidade humana, garantindo o direito ao nome e o reconhecimento do gênero com que se identifica, a liberdade e o pleno exercício da autonomia privada.
Referências
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em
STF, ADI 4.275/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, j. 1-3-2018.
STF, Rcl 31.102/PR. Min. Alexandre de Moraes, j. 20-8-2018.
STF, RE 670.422/RS. Rel. Min. Dias Toffoli, j. 15-8-2018.
Dimas Messias de Carvalho
Promotor de Justiça aposentado;
Professor na UNIFENAS e em cursos de pós graduação;
Advogado;
Membro do IBDFAM e da ALL (Academia Lavrense de Letras);
Autor de obras jurídicas.
[1] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em
[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Gêneros, transgêneros, cisgêneros: orgulho e preconceito. Disponível em
[3] Art. 58. Qualquer alteração posterior de nome só por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do Juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa.
[4] STF, ADI 4.275/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, j. 1-3-2018.
[5] STF, Rcl 31.102/PR. Min. Alexandre de Moraes, j. 20-8-2018.
[6] STF, RE 670.422/RS. Rel. Min. Dias Toffoli, j. 15-8-2018.
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