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A Responsabilidade Civil da Pessoa com Deficiência qualificada pelo Apoio e de seus Apoiadores
O art. 116 da Lei n. 13.146/15, criou um "tertium genus" em matéria de modelos protetivos de pessoas em situação de vulnerabilidade. Para além dos tradicionais institutos da 'tutela' e 'curatela', disciplinou a 'Tomada de Decisão Apoiada'. O Título IV do Livro IV da Parte Especial do Código Civil, passou a vigorar acrescido do art. 1.783-A, consubstanciando 11 parágrafos. O legislador optou por uma solução de caráter aditivo e não substitutivo, pois requalificou, mas não eliminou a curatela. A Tomada de Decisão Apoiada é quantitativa e qualitativamente diversa da curatela. O apoio não se destina unicamente às pessoas com deficiência psíquica ou intelectual. Ele alcança qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade – mesmo transitória ou futura - que deseje preservar a integralidade de sua autodeterminação no tríplice aspecto da intimidade, privacidade e plano patrimonial. Em contrapartida, a curatela excepcionalmente penetrará o campo existencial do curatelado, pois o que se deseja é evitar a transferência coercitiva de direitos fundamentais para o curador. Ademais, ao contrário do que ocorre na curatela, o apoiador não representa ou assiste a pessoa do apoiado. Tampouco, reduz-se ao posto de mero “palpiteiro”. A sua atividade se situa em zona intermediária, na qual atuará como coadjuvante em decisões cujo controle e protagonismo sejam preservados com a pessoa do apoiado. Enfim, a Tomada de Decisão Apoiada é um modelo jurídico que se aparta dos institutos protetivos clássicos, tanto na estrutura como na função. É um paradigmático exemplo da influência que o Direito Constitucional exercita sobre o Direito Civil na tão esperada “personalização da pessoa humana”. Cuida-se de medida promocional de autonomia que resguarda a liberdade e dignidade da pessoa com deficiência, sem amputar ou restringir indiscriminadamente os seus desejos e anseios vitais. Definitivamente, é figura bem mais elástica do que a curatela, pois estimula a capacidade de agir e a autodeterminação da pessoa beneficiária do apoio, livre do estigma social da curatela, medida invasiva à liberdade da pessoa, apesar de sua personalização na LBI e no CPC/15.
Na TDA o beneficiário (ou pessoa apoiada) conserva a plena capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimação para a prática de episódicos atos da vida civil. A legitimação é um "plu"s à capacidade de fato, trata-se de uma aptidão específica para a prática de determinados atos, que transcendem o trânsito genérico pela vida civil. Ao estabelecer a TDA, o beneficiário perde a idoneidade para a consecução isolada dos atos descritos no termo, homologados pelo juiz e averbados no Cartório de Pessoas Naturais.
Em sede de responsabilidade civil, é indiscutível que a pessoa apoiada pratica atos ilícitos, haja vista que em acréscimo à eventual prática de uma conduta antijurídica, preservada sobeja a sua imputabilidade, diversamente do que ocorre nos casos de curatela. Assim, haverá plena incidência do artigo 927 do Código Civil nas hipóteses de danos praticados pelos beneficiários do apoio. Não haverá dificuldade em estender a fundamentação da responsabilidade direta e mitigada das pessoas com concreta vulnerabilidade (art. 927, c/c par. único, art. 928 do CC/02) para o âmbito dos beneficiários do apoio. Na comparação com um causador de danos não submetido ao regime da TDA, a demonstração pela pessoa apoiada de sua condição real de desigualdade fática será sobremaneira facilitada pela existência de um negócio jurídico fiduciário seguido de intervenção judicial no plano de sua esfera de liberdade. A assimetria motivadora da instituição do apoio pode decorrer de várias razões, como: uma deficiência física ou sensorial; deficiência psíquica com restrição na autodeterminação; privação de autonomia em caráter transitório ou permanente (v.g. depressão exógena ou AVC) e doenças crônicas degenerativas. Será difícil para o magistrado recusar a calibração dos danos causados pelo beneficiário do apoio, quando o próprio Poder Judiciário e o Ministério Público previamente aprovaram o negócio jurídico formulado entre apoiado e apoiadores, corroborado por laudo biopsicossocial que legitimou aquela medida de promoção de autonomia.
Atrevemo-nos a arriscar que o principal desafio da doutrina será o de justificar a responsabilidade civil dos apoiadores. Trata-se de categoria jurídica inédita no direito brasileiro, que não encontra equivalência nos tradicionais institutos da representação legal, judicial ou convencional. Em qualquer dessas manifestações, a representação é uma técnica de substituição na exteriorização da vontade. O representante é o "alter ego" que atua em nome e no interesse do representado, com certa discricionariedade para servir aos melhores interesses do representado, em cujo patrimônio repercutirá a eficácia dos negócios validamente celebrados. Diferentemente, os apoiadores não representam ou assistem o beneficiário. A sua posição se encontra em um plano intermediário entre a atuação de um representante ou a de um mediador, assessor ou intérprete. Não supre a autonomia do apoiado, nem tampouco é um mero conselheiro. A sua anuência se assemelha à função preconizada no art. 220 do Código Civil: nos limites do termo de apoio homologado judicialmente, uma autorização dos apoiadores para que se conceda eficácia perante o declaratário das consequências patrimoniais dos negócios jurídicos validamente entabulados pelo beneficiário do apoio (que preserva a sua capacidade plena), tal como ressaí do § 4o, do art. 1.783 A do Código Civil: “a decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado”.
Face ao ineditismo da posição jurídica dos apoiadores, não é possível aplicar analogicamente o "caput" do art. 928 do Código Civil - que imputa responsabilidade imediata ao curador pelo fato danoso do curatelado. O curatelado se encontra prioritariamente sob os cuidados do curador, enquanto o apoiado tem a sua autonomia promovida pelos apoiadores. A curatela se impõe sob a vontade do curatelado, enquanto o apoio é modelado pela vontade do apoiado. A evidente distinção estrutural e funcional entre ambos os modelos jurídicos impede uma precipitada responsabilização dos apoiadores por ilícitos do beneficiário, nos moldes do que sucede com o curador. Também não se aplica aos apoiadores as normas dos artigos 116 e 118 do Código civil referentes ao abuso e ao excesso dos poderes de representação. Há, portanto, a necessidade de ir além dos institutos clássicos para legitimarmos eventual responsabilidade dos apoiadores no limite exato de suas atribuições.
Talvez possamos encontrar boas pistas no modelo jurídico das relações fiduciárias, que florescem quando um indivíduo voluntariamente atribui poder ou propriedade a outrem para propósitos particulares, gerando forte confiança nessa pessoa e riscos para o beneficiário. O agente ou fiduciário, tem a obrigação de atuar em favor do beneficiário, ou 'principal'. O fiduciário é mantido em um padrão de conduta e confiança acima de um estranho ou de um parceiro negocial casual, sendo que os seus deveres incluem lealdade e cuidados razoáveis ??dos bens sob custódia. Todas as ações do fiduciário são realizadas para propiciar vantagem ao beneficiário. Em comum com as relações contratuais, as relações fiduciárias são baseadas no consentimento e voluntariedade das partes, que devem se conduzir de maneira justa observando os deveres emanados da boa-fé. Ademais, ambas as partes podem se desvencilhar da relação, nos limites do acordado. Todavia, o dever de informação é sensivelmente distinto nas duas categorias: o fiduciário deve transmitir toda informação relevante ao beneficiário, incluindo eventuais conflitos de interesse, mesmo quando não lhe solicitado; em contrapartida, em contratos paritários a parte só deve informar aquilo que foi requerido a não ser que o contrato ou alguma norma alargue o âmbito da confidencialidade. Outrossim, o fiduciário atua exclusivamente em prol do beneficiário. Espera-se dele que controle a tentação de se apropriar do que não lhe pertence, mesmo quando não fiscalizado. Esse dever não existe na relação contratual, “an arm's-length relationship”, em que cada parte é encorajada a maximizar os seus próprios interesses. Mais importante: nas relações fiduciárias há uma presunção de que os fiduciários sejam confiáveis e verdadeiros. Tais presunções não se aplicam às relações contratuais intercivis ou interempresariais.
Os tribunais das jurisdições da "common law" não definiram com nitidez as circunstâncias particulares das relações fiduciárias, nem estabelecem quaisquer limitações nas circunstâncias de que tais relações possam surgir. Contudo, certos relacionamentos são universalmente considerados fiduciários. O termo engloba relações jurídicas, tais como os advogados e clientes, corretor e principal, administrador e beneficiário, e inventariantes com herdeiros do "de cujus". Além da forte confiança, as relações fiduciárias pressupõem um estado de dependência do beneficiário e exercício de influência pelo fiduciário que coloca aquele em situação de risco. As cortes avaliam rigorosamente as transações entre pessoas envolvidas em relações fiduciárias, com especial destaque para qualquer transação pela qual, em virtude de sua posição dominante o fiduciário obtém qualquer vantagem ou lucro à custa da pessoa sob sua influência. A influência indevida do fiduciário se revela causa de invalidade de tais negócios jurídicos. Nesse passo, o fiduciário evitará o autocontrato ou conflitos de interesses em que o seu benefício potencial conflite com o que é melhor para o beneficiário. Ilustrativamente, um corretor de bolsa deve considerar o melhor investimento para o cliente e jamais negociar com base naquilo que em tese lhe proporcionaria a mais alta comissão. Enfim, servir ao melhor interesse do beneficiário é o dever primário do fiduciário, daí a imposição de uma franqueza absoluta de sua parte.
Os deveres fiduciários claramente permeiam as relações entre apoiadores e apoiados. Não incidem no perímetro da curatela, na qual o legislador "a priori" estabeleceu a responsabilidade civil objetiva e indireta dos curadores por danos causados a terceiros (art. 928 c/c 932, II, CC) e uma série de regras protetivas ao patrimônio do tutelado - insertas nos artigos 1.740 a 1.757 do Código Civil- e extensivas às curatelas (art. 1.774, CC), pois em comum a ambos os casos ressai o "status" jurídico de incapacidade dos beneficiários. Em termos sistemáticos, ao contrário da estreita tipificação brasileira, o ideal seria que além das duas categorias já positivadas de responsabilidade pelo fato de terceiros - pais pelos filhos; tutores, curadores por tutelados e curatelados – restasse introduzida uma terceira, como espécie de cláusula geral, envolvendo a assunção de responsabilidade do fiduciário por qualquer dano produzido por um beneficiário. Apesar de não contarmos com uma cláusula geral de responsabilidade dos fiduciários, parece-nos viável que a obrigação objetiva de indenizar dos apoiadores se relacionará com os deveres fiduciários assumidos nos limites do apoio acordado. Assim, em matéria de danos causados a terceiros, eventual responsabilidade civil dos apoiadores dependerá da perquirição do conteúdo da avença e das funções por eles assumidas, a fim de que se avalie em quais aspectos existenciais e/ou patrimoniais o apoiado depositou especial confiança na fiel orientação dos apoiadores. A responsabilidade se destacará se apartarmos a figura do apoiador da pessoa de um parente ou um amigo íntimo. Apoiadores podem ser administradores patrimoniais - profissionais liberais remunerados (o que a lei não proíbe) -, redes de apoio, serviços comunitários ou pessoas jurídicas especialmente constituídas para o exercício do apoio (o que denotará profissionalidade, mesmo por parte de uma pequena empresa da comunidade). Naquilo que se insira no especial âmbito de diligência dos apoiadores, eventuais lesões causadas a terceiros poderão atrair a responsabilidade conjunta de apoiadores e apoiado (não a solidariedade, que requer cláusula contratual ou regra explícita).
Nelson Rosenvald- Procurador de Justiça e Diretor Nacional do IBDFAM
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