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O art. 1.072 do novo Código de Processo Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência: revogação do inciso IV do art. 1.768 do Código Civil?
Resumo
O novo Código de Processo Civil entrou em vigor em março de 2016, após uma vacatio legis de um ano. Expressamente revogou alguns artigos do Código Civil cuja redação fora modificada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Além do problema de direito intertemporal, relacionado à identificação da lei anterior e da lei posterior, haja vista que as datas das respectivas publicações e das vigências de ambas as leis não observam a mesma cronologia, há a questão da dignidade da pessoa com deficiência, que não deve ser desconsiderada na interpretação das normas. A partir da análise do art. 1.768, inciso IV do Código Civil, que legitimou a própria pessoa para postular sua curatela, pretendeu-se analisar o conflito de leis sob o enfoque do direito internacional dos direitos humanos e do direito constitucional brasileiro, em busca da melhor concretização da dignidade da pessoa com deficiência no sistema pátrio.
Palavras-chave: conflito leis-dignidade-pessoa-deficiência
Abstract
The new Civil Procedure Code entered into force in March, 2016, after a vacatio legis of one year. It expressly revoked some articles of the Civil Code, which in turn had been modified by the Person with Disability Statute. Apart from the conflict of laws in time, related to identifying the earlier and later laws, given that their publication and effective dates do not obey the same chronology, there is also the issue of the dignity of the disabled person, which shall not be disregarded when interpreting such laws. Starting from an analysis of article 1,768, section IV of the Civil Code, which confers legal standing for a person to request their own interdiction, this paper aims to analyze the conflict of laws under the lens of international human rights law and Brazilian constitutional law, in search of the best concretization of the disabled person´s dignity under Brazilian law.
Keywords: conflict of laws, dignity, person with disability
O novo Código de Processo Civil (NCPC), em sua última disposição transitória (art. 1.072), expressamente revogou os artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil (CC). O NCPC foi publicado em março de 2015, para entrar em vigor no ano seguinte, a contar da data de sua publicação oficial (art. 1.045). Durante tal vacatio legis, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão (LBI), entrou em vigor, alterando os artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil (art. 114). Sua publicação ocorreu em julho de 2015 e a respectiva entrada em vigor, cento e oitenta dias após, em janeiro de 2016. Surgiu um problema de direito intertemporal, diante da revogação, pelo NCPC, de dispositivos do CC modificados pelo EPD, publicado depois, mas em vigor antes da norma processual.
Ao enfrentar tal situação, a doutrina diverge. Flavio Tartuce (2015), José Fernando Simão (2015) e Maurício Requião (2015) fomentando o debate e propondo a reflexão, sustentaram a curta duração do inciso IV introduzido pelo EPD no art. 1.768 do Código Civil, diante da revogação expressa contida no NCPC. Antonio Carlos Marcato e Humberto Theodoro Júnior afirmaram a vigência do mesmo inciso IV, com base na repristinação dos artigos do Código Civil revogados pelo NCPC, pela Lei nº 13.146/2015 (EPD). Nesse sentido, ambos entendem pela possibilidade da autointerdição, com base na vigência do inciso IV, do art. 1.768 introduzido pelo EPD (Marcato, 2016, p. 406 e 411 e Theodoro Júnior, 2016, P. 526/527). A favor da vigência da mudança introduzida no art. 1.768 do Código Civil, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, Fredie Didier Junior (2015) argumenta que o NCPC não poderia revogar o que não estava previsto à época de sua publicação, prevalecendo a legitimidade da própria pessoa para requerer sua interdição, tal qual assegurado na LBI.
Delineado o debate doutrinário, sintetiza-se a discussão nestas linhas em torno da prevalência, ou não, do art. 747 do NCPC sobre o art. 1.768 do Código Civil, com a redação que lhe deu o EPD, em relação à legitimação da própria pessoa para promover a interdição. Pela regra de solução de antinomias estabelecida pelo critério temporal, a lei posterior revoga a anterior (art. 2º, § 1º, LINDB). Na lição de Serpa Lopes, a antecedência de uma lei no tempo afere-se com base na data de sua sanção e não na data de sua entrada em vigor, admitindo hipótese de a lei ser revogada no período de sua vacatio, se incompatível com uma lei sancionada posteriormente (1996, p. 97). Por esse raciocínio, o NCPC seria norma anterior, já que previamente sancionado, pouco importando a data de sua entrada em vigor para a fixação de sua antecedência normativa frente ao EPD, a inviabilizar a revogação. De todo modo, a abordagem ora proposta não foca no critério temporal, objetivando ampliar o debate com argumentos buscados no direito internacional dos direitos humanos e no direito constitucional brasileiro, na consideração de que podem auxiliar na interpretação, em busca da coerência e da coesão do sistema.
A Lei nº 13.146/2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, promulgados pelo Decreto nº 6.949, em 25 de agosto de 2009, data do início de sua vigência no plano interno. Ao ratificar a Convenção, os Estados assumiram compromissos no plano do direito internacional, a fim de alcançar os objetivos de promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência nela estabelecidos. No plano interno, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada pelo Congresso Nacional em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição, equivalendo, portanto, à emenda constitucional. Referida Convenção estabeleceu que os Estados-Parte devem: a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na Convenção; e b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência (Artigo 4º do Decreto 6.949).
Como dito, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi promulgada no Brasil pelo Decreto 6.949, em 2009, com status de emenda constitucional. Tal Convenção instaura o paradigma da dignidade na deficiência, estabelecendo, entre seus princípios, o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de fazer as próprias escolhas, além da independência das pessoas com deficiência (Art. 3º, a). Define a discriminação por motivo de deficiência como “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro” (Art. 2º), incluindo o direito a não-discriminação entre suas diretrizes gerais (art. 3º, b).
Ao assim estabelecer, a Convenção expressamente rompeu com a premissa de vulnerabilidade incapacitante da pessoa com deficiência, vinculando sua dignidade à proteção de sua autonomia e liberdade. Nesse quadro, circunscreveu a atividade do intérprete, que não poderá desconsiderar suas definições e princípios ao buscar, por meio da interpretação, a melhor forma de concretizar a dignidade da pessoa com deficiência. Atento às novas diretrizes, o legislador, no Estatuto, instituiu um novo conceito de capacidade e reconstruiu seu significado, substituindo a ideia de pessoa deficiente pela de pessoa com deficiência (Pereira, 2016), cuja dignidade inerente urge ser respeitada. Tais determinações, repita-se, já vigoravam no Brasil com status de emenda constitucional desde a promulgação da Convenção pelo rito instituído no § 3º, do art. 5º, da Constituição brasileira, em 2.009, como pontuado por Paulo Lôbo (2015).
Assim, a Lei nº 13.146/2015 materializa o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional e, mais do que isso, atende aos novos comandos constitucionais introduzidos pelo Decreto nº 6.949, simbolizando a adoção das medidas legislativas necessárias para modificar e revogar leis que excluíam e restringiam o exercício de direitos da pessoa com deficiência no direito interno. Com o Estatuto, foi reconhecida sua plena capacidade, inclusive para o gozo de direitos existenciais como o casamento e a sexualidade, por exemplo.
Assentada a vocação constitucional do EPD, cumpre retomar a discussão em torno da vigência do inciso IV, do art. 1.768 do CC, após a entrada em vigor do NCPC. A possibilidade de a própria pessoa promover sua interdição, prevista no citado inciso, é coerente com a regra da capacidade da pessoa com deficiência (EPD, art. 6º e CC, art. 3º) e com a excepcionalidade da curatela, que deverá ser proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso (EPD, art. 84, § 3º). Consiste em expressão da autonomia e da liberdade de fazer as próprias escolhas, além de assegurar ao deficiente, em regra, o exercício do direito individual de ação em igualdade de condições com os demais cidadãos, dando efetividade à dignidade inerente, em consonância à ordem constitucional emendada nos moldes do art. 5º, §3º, da Constituição Federal. Além disso, não parece lógico que alguém pudesse se casar ou ter a guarda de menores e não fosse autorizado a pleitear a própria curatela, mormente considerando os limites impostos no art. 85 do EPD, aos atos de natureza patrimonial e negocial.
Sob esse aspecto, parece não haver dúvida de que permitir a autointerdição realiza a dignidade na deficiência nos moldes estabelecidos pela ordem suprema, na medida em que permite o exercício da autonomia, dando efetividade à capacidade plena vigorante na lei civil. Vale lembrar que a capacidade jurídica situa-se na esfera do dever-ser, tratando-se de produto da cultura no campo do Direito, mutável por essência, como exemplifica a histórica incapacidade da mulher casada. Mais do que uma correspondência à natureza ou à esfera ontológica do ser, o regramento da capacidade consiste em ato da autoridade do Estado no estabelecimento da norma, em consonância com os valores preponderantes em cada época, mediante a conversão de experiências valorativas em fórmulas normativas (REALE, 1992, p. 254). Em relação à pessoa com deficiência, a promulgação de Tratados Internacionais e de Decreto e leis nacionais afirmativos de sua dignidade, autonomia e capacidade plena não deixam dúvida sobre o valor de inclusão subjacente, em direção à superação do paradigma excludente vigente até então. Portanto, não se trata apenas de uma questão temporal, de definição de qual a lei anterior e a posterior, mas de apontar qual a norma em maior sintonia com o sistema normativo constitucional em vigor, em interpretação sistemática.
Nesse quadro, negar vigência ao inciso IV do art. 1.768 do Código Civil com base no art. 1.072 do Código de Processo Civil viola não apenas as regras de direito intertemporal, mas também o ordenamento constitucional brasileiro e o direito internacional dos direitos humanos, na contra mão da dignidade das pessoas com deficiência.
Referências
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JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Volume II. 50ª ed. Forense, 2016
LÔBO, Paulo. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes. Consultor Jurídico, 16/08/2015. In: http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes, último acesso em 14/10/2016
LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil. Volume I. 8ª ed. Freitas Bastos, 1996
MARCATO, Antonio Carlos. Procedimentos Especiais. 16ª ed. Atlas, 2016
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O Estatuto da Pessoa com Deficiência EPD – Lei 13.146/2015 e o Direito de Família e Sucessões, 09/09/2016. In: http://www.rodrigodacunha.adv.br/o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-epd-lei-13-1462015-e-o-direito-de-familia-e-sucessoes/, último acesso em 14/10/2016
REALE, Miguel. O direito como experiência. 2ª ed. Saraiva, 1992
REQUIÃO, Maurício. Estatuto da Pessoa com Deficiência altera regime civil das incapacidades. Consultor Jurídico, 20/07/2015. In: http://www.conjur.com.br/2015-jul-20/estatuto-pessoa-deficiencia-altera-regime-incapacidades
SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte 2). Consultor Jurídico, 07/08/2015. In: http://www.conjur.com.br/2015-ago-07/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-mudancas
TARTUCE, Flavio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Migalhas, 25/08/2015 In: http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com
Camila de Jesus Mello Gonçalves
Professora de Direito de Família e Sucessões da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Doutora em Direitos Humanos pela USP. Mestre em Filosofia do Direito pela USP. Juíza de Direito em São Paulo
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