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A relação dos pais socioafetivos com os filhos do companheiro sob a ótica dos tribunais superiores
RESUMO
A paternidade socioafetiva pode ser vista, de maneira geral, como uma relação baseada em afeto, respeito e reconhecimento recíprocos dos envolvidos. A Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 preveem em seus artigos relacionados ao Direito de Família a proteção e guarida necessárias para a efetivação dos princípios basilares, tais como, a dignidade da pessoa humana, igualdade entre cônjuges e companheiros e igualdade na chefia familiar. É importante salientar a responsabilidade dos pais biológicos, contudo, é necessário saber se é responsável e atende ao pleno desenvolvimento e formação dos filhos, principalmente os menores. A partir das novas concepções de família instituídas pelo ordenamento jurídico, é fundamental analisar como os Tribunais Superiores vêm entendendo os vínculos criados quando nasce uma relação afetiva entre um dos companheiros com o filho biológico do outro. Nesse contexto, compreende-se, baseados em estudos doutrinário e jurisprudencial, que há certos casos excepcionais onde a paternidade socioafetiva pode se sobressair sobre a biológica.
Palavras-chave: Direito de Família. Paternidade socioafetiva. Princípios. Novas formas de família. Poder familiar.
ABSTRACT
The socio-affective paternity can be seen, generally, as a relationship based on affection, respect and reciprocal recognition of the involved. The Federal Constitution of 1988 and the Civil Code of 2002 predict in their articles related to family law protection and necessary harboring for the realization of basic principles such as the dignity of human person, equality between spouses and partners, and equality in family leadership. It is important to emphasize the responsibility of the biological parents, however, it is necessary to know if it is responsible and meets the full development and education of children, especially minors. From the new family concept established by juridical order, it is essential to analyze how the Superior Courts come understanding the links created when birth an affective relationship between one of the companions with the biological son of the other. In this context, it is understood, based on doctrinal and jurisprudential studies, there are exceptional cases where the socio-affective paternity can excel on biological.
Keywords: Family Law, Socio-affective paternity, Principles, New forms of family, Family power.
1 CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO
Primado do Direito de Família, o princípio máximo constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto textualmente no artigo 1º, inciso III, da Constituição brasileira, é elementar para a formação dos vínculos sociais, afetivos e familiares uma vez que, reza a respeito da pessoa em si, homem ou mulher, de fato protegidos pelas normas supremas da nação.
E como concretizar a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana quando há preconceito ou resistência por uma parcela da sociedade de aceitar determinada situação? E dentro do ordenamento jurídico, principalmente na Constituição Federal, uma rigidez para o reconhecimento dessa necessidade? São questões de difícil compreensão, contudo se fizeram presentes e atualmente fazem parte do cotidiano das famílias e são temas recorrentes de decisões dos Tribunais Superiores brasileiros.
Em sede de princípios constitucionais da família é imperioso destacar a presença implícita do princípio da afetividade que está relacionado ao afeto entre as pessoas na relação, além de servir para justificar as novas formações familiares, uma vez que fatores inerentes à sua formação é decorrência da vontade mútua dos envolvidos. Não advém de forma biológica, mas de convivência, respeito, amor, carinho, perdão. Dentre muitos aspectos ligados ao afeto propriamente dito, a valorização desse sentimento deve ser discutida de maneira singular já que é tratado antes mesmo das questões patrimoniais.
A tradição, ainda recursiva nos dias atuais, já não tem tanta força expressiva como tinha há cerca de vinte anos atrás, quando ainda estava em vigor o Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), no qual se tinha uma ideia fixa e predeterminada do que viria a ser família, um modelo aparentemente rígido com configurações voltadas principalmente à superioridade do lado paterno. Contudo, mesmo com essa formação rigorosa, ainda com resquícios do antigo direito de família romano, aquele Código Civil já previa uma possível formação diferente da “tradicional família” quando preconizava, no seu artigo 355, que o filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjuntas ou separadamente.
O fato é que as relações no mundo caminham a passos largos, e quando se trata de laços afetivos parecem correr, já que mudanças de comportamento, vontades, necessidades e interesses são características inerentes da pessoa. Muitas vezes o direito parece não acompanhar essa mutabilidade constante e pode haver omissão na legislação quanto a determinadas matérias, principalmente quando surge alguma necessidade de regulamentar um novo caso.
O modelo de família atual já não é mais o mesmo. É comum casal com filhos se divorciarem, um cônjuge falecer e o outro querer constituir um novo matrimonio ou uma nova família de pessoas que não formalizam um relacionamento conviverem em plena união. Certo é que, rotineiramente, surgem novas formas de vínculos afetivos entre pessoas com interesses afins que precisam ser observados, respeitados e abarcados pela legislação com fundamento na proteção plena da dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, princípios básicos da República Federativa do Brasil.
Nesse sentido e com muita serenidade, Tartuce (2014, p. 1) assim conceitua o Direito de Família:
[...] o ramo do Direito Civil que tem como conteúdo o estudo dos seguintes institutos: a) casamento; b) união estável; c) relações de parentesco; d) filiação; e) alimentos; f) bem de família; g) tutela, curatela e guarda. Além desse conteúdo, acrescente-se a investigação das novas manifestações familiares.
Esse último ponto apontado pelo citado mestre é o que, de fato, vem sendo objeto de inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais no âmbito do STF e STJ, seja em sede de reconhecimento de novos vínculos, seja pelo reconhecimento de questões patrimoniais.
Conceituar família não é tão simples, uma vez que envolve elementos sociais particulares de cada união desenvolvidos a partir do convívio. É certo que se deve levar em consideração o fato de haver um vínculo unindo afetivamente pessoas para compartilharem a vida cotidiana e não há mais que se falar em “vínculo eterno” ou em “indissolubilidade do matrimônio”, por mais que a Igreja Católica preserve essa relação como sendo indissociável, a Constituição Federal e o STF trataram de albergar e proteger todas as formas de instituir família seja matrimonial, homoafetiva ou monoparental.
As formas de constituição da entidade familiar reconhecidas pelo direito brasileiro estão amplamente salvaguardadas na Carta Magna de 1988, inclusive no caput, do artigo 226, onde expressa que a família é base da sociedade, e tem especial proteção do Estado. Por essa “especial proteção” explicitada no final do texto, subentende-se que as entidades que formam a família devem ser respeitadas e consequentemente acolhidas pela sociedade em geral.
Pereira (2015), em seu texto intitulado “Desrespeitar diferentes formas de família não é cristão nem ético”, faz uma crítica à discriminação que a sociedade e o legislador têm para reconhecer novas formas de constituição de entidade familiar, não obstante, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) enviou ao Senado proposta modificando o livro IV “Do Direito de Família” no Código Civil com o fim de melhorar a relação da sociedade e da justiça com essa realidade.
Tal proposta, denominada “Estatuto das Famílias” (Projeto de Lei do Senado nº 470, de 2013), apresentado ao Congresso Nacional pela Senadora Lídice Mata (PSB-BA), propõe ao Legislativo uma mudança de visão e tratamento das famílias brasileiras.
De fato, vive-se em um país com traços ainda patriarcais, machistas e tradicionais, onde uma mudança de comportamento enseja duras críticas e repudio a tais formas de convívio. Exemplo dessa rigidez fundada em preconceitos é o “Estatuto da Família”, no singular, fazendo analogia ao correto texto original Estatuto das Famílias elaborado pelo IBDFAM, preparado, segundo o citado professor, de forma maldosa para ludibriar os cidadãos acreditarem que a entidade família é formada apenas por homem e mulher. Na realidade, não é. Principalmente, porque
a sociedade vive em mutações e reclama por amparo, respeito, reconhecimento,
já que nem todos são iguais e a preservação da máxima constitucional, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades” (NERY JUNIOR, 1999, p. 42), para que seja efetivada.
1.1 DIREITO DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Além da previsão constitucional que abarca vários ramos do direto, a legislação extravagante e os entendimentos jurisprudenciais, pode-se apontar que, de fato, a Constituição Federal de 1988 é a norma mestra que orienta e regula o Direito Civil e suas seções, inclusive o Direito de Família. A norma, materialmente reconhecida no texto maior, preceitua as formas de constituição de família, parentesco, regras de casamento, união estável, patrimônio, dentre outras.
O atual Código Civil brasileiro regula diversas matérias relacionadas ao Direito de Família, como o casamento, a união estável, regime de bens, eficácia do casamento, dissolução do casamento, filiação, dentre outras. É um livro amplo, mas devido à complexidade do assunto que é tratar sobre relações que não são constantes, parece ser incompleto, daí a importância da doutrina e jurisprudência para analisar e normatizar as lacunas.
Interessante se faz destacar que não só é considerada família aquela antiga ideia de homem e mulher casados (nas formas civil e religiosa), com filhos oriundos da relação e convivendo no mesmo lar, uma vez que, atualmente, tem-se reconhecida a união estável, o casamento homoafetivo, a relação afetiva entre pessoas inclusive com filhos de outro relacionamento. Inovação nesse sentido foi o entendimento do STJ no julgamento do Recurso Especial nº 182.223/SP, depois editada a Súmula nº 364 do STJ, onde reconheceu como bem de família o imóvel de pessoa solteira.
Tão certo como esses avanços no Código Civil de 2002 e na Constituição Federal de 1988, são os entendimentos dos julgadores das cortes superiores baseados nos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, igualdade entre filhos, igualdade entre cônjuges e companheiros, igualdade
na chefia familiar e não intervenção. Ora, uma vez que as pessoas sentem a necessidade de convívio, não poderia o judiciário brasileiro negar existência a um fato, reconhecer sua validade e eficácia no campo afetivo, patrimonial, familiar.
O Direito de Família é regido pelas normas de Direito Privado, contudo em alguns aspectos, se faz mister a colocação do Direito Público na efetividade das normas civilistas uma vez que nesse ramo do Direito Civil é inegável o reconhecimento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como a não interferência de qualquer pessoa no âmbito da comunhão da vida familiar, pela leitura do artigo 1.513 do Código Civil. De certo, que esse dispositivo não deve ser interpretado de forma simples, mas com cuidado, uma vez que o Estado, em certas situações pode intrometer-se na vida em comunhão dos casais, como por exemplo, incentivar o planejamento familiar e a paternidade responsável.
O Código Civil é, atualmente, a norma expoente que rege a legislação no Direito de Família, contudo, como se sabe, para acompanhar as situações não previstas na legislação, se faz necessário o ativismo judicial do Poder Judiciário para legislar ou encontrar formas de preenchimento de lacunas na lei, por isso muitas decisões desse cunho advêm de interpretações doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais, complementando o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988.
Com esse embasamento é que se tem a segurança das relações familiares contemporâneas, se não fossem tais preceitos, não tivesse sido reconhecida a união de uma pessoa divorciada (com a guarda do filho menor de idade) com outra pessoa solteira sem filhos que a partir do sentimento afetivo, do respeito, do amor, da compreensão, da reciprocidade, tem interesse em constituir uma família. Nesse sentido, Tartuce (2014, p. 30) leciona que:
O Código Civil de 2002 foi construído a partir de três princípios fundamentais: a eticidade, a socialidade e a operabilidade. A eticidade representa a valorização do comportamento ético-socializante, notadamente pela boa-fé objetiva. A socialidade tem relação direta com a função social dos institutos privados, caso da família. Por fim, a operabilidade tem dois sentidos. O primeiro é de facilitação ou simplicidade dos institutos civis. O segundo sentido é de efetividade, o que foi buscado pelo sistema de cláusulas gerais, adotado pelo CC/2002, sendo essas janelas abertas deixadas pelo legislador, para preenchimento pelo aplicador do Direito.
O diploma legal, por tratar também de relações patrimoniais, busca alinhar o Direito Público ao Direito Privado em posições congruentes ou mais próxima da igualdade para não haver um desequilíbrio nas relações abraçando os direitos e obrigações das partes envolvidas.
Colaborando com esse entendimento, em coerente citação, Gonçalves (2014, p. 17) assim escreve:
O Direito de Família é, de todos os ramos do direito, o mais intimamente ligado à própria vida, uma vez que, de modo geral, as pessoas provêm deum organismo familiar e a ele conservam-se vinculadas durante a sua existência, mesmo que venham a constituir nova família pelo casamento ou pela união estável.
O Direito Civil brasileiro, por meio das Jornadas do Conselho da Justiça Federal, que é um órgão de supervisão e integração da Justiça Federal brasileira, vem analisando a regulação de institutos buscando preencher certos espaços na legislação (BRASIL, 2015).
2 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Um dos princípios constitucionais relacionado ao Direito de Família é o Princípio da Igualdade na Chefia Familiar implícito nos artigos 226, § 5º, 227, § 7º, da Constituição Federal de 1988, e 1.566, incisos III e IV, e 1.634, do Código Civil de 2002, que trata da colaboração de ambos os companheiros na guarda, proteção, educação, sustento, representação dos filhos. Ocorre que, com advento das relações sociais e familiares a figura do patriarca como sendo o pai biológico dos filhos é mitigada, uma vez que atualmente as mães também são chefes de família.
Em uma situação de dissolução do casamento, por exemplo, o fim do matrimônio põe fim ao vínculo afetivo existente entre o homem e a mulher, passando, então a reger as normas do Direito de Família quanto ao divórcio, à guarda dos filhos, aos bens, ao patrimônio e alimentos (se for o caso).
Dentre os vários modelos de família conceituados doutrinariamente, é reconhecida a família monoparental que é aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes preceituada no artigo 226, § 4º, da Constituição brasileira. Em situações como o divórcio, ou o fim da união estável, o filho do casal passa a conviver com um dos pais, e não raras às vezes a mãe tem a incumbência da guarda. Nessa relação de convívio diário e contínuo, a mãe e o filho formam uma família monoparental, não necessitando da figura paterna para o reconhecimento da entidade familiar.
Em determinado momento, a pessoa que convive e tem a guarda do filho pode constituir um novo relacionamento e ter a forma de uma nova estrutura familiar, o que é denominado por Dias (2013, p. 221) como “família reconstituída, infeliz expressão para denominar novo vínculo afetivo”. Segundo a autora, continua sendo uma família monoparental e o poder familiar exercido sobre o filho é exercido pelo pai (ou mãe) biológico, sem interferência do novo cônjuge ou companheiro.
O companheiro, às vezes do pai ou da mãe, em muitas situações, fará, no sentido de continuar na criação do filho, auxiliando na educação, conduzindo na vida prática, aparecendo na figura de pai, quando este for ausente, consequentemente necessita de estrutura para impor sua vontade de forma anuente e lastreada com a boa fé, moral e ética dentro de uma perspectiva voltada para a melhor formação do filho. Talvez o impasse que há no reconhecimento do poder familiar ao companheiro em relação ao filho do outro pode ser no sentido de como está sendo essa direção de orientar e formá-lo. Contudo, deve-se atentar à forma que está sendo exercido esse poder, em determinados casos, pode até ser que contribua muito para o desenvolvimento quando tem a presença de parceiros, objetivando o bem comum de forma moral, ética e religiosa.
A filiação socioafetiva é comumente vista na sociedade brasileira e, muitas vezes ainda, é repreendida por algumas pessoas, pois na visão tradicional foge às regras da família regida sob a égide patriarcal. Todavia, apesar do reconhecimento constitucional das várias formas de família, o Código Civil de
2002 ainda é silente em alguns pontos, principalmente quanto à matéria de socioafetividade, apesar de coadunar com os princípios gerais. Corroborando
para esse reconhecimento e albergar a proteção dos interessados, os Tribunais Superiores vêm cada vez mais se deparando com situações sobre a relação.
Colaborando com esse raciocínio, Vilela (1979 apud TARTUCE, p. 1.063) diz que:
A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside ante no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade[...]
Cabe aqui o destaque de que a paternidade biológica, se não for responsável e basear-se somente na procriação, sem o devido afeto, não satisfaz as necessidades básicas inerentes ao filho, haja vista ser um conjunto de fatores que permeiam a condição de família.
2.1 O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
É inegável que a solidez protecionista buscada pela Constituição Federal de 1988 alcança todas as formas de família, e por isso, não seria razoável
questões judiciais relativas à formação familiar fossem levadas a julgamento sem a aplicabilidade dos princípios basilares do instituto, tais como: respeito à dignidade da pessoa humana, afetividade, igualdade jurídica dos cônjuges e companheiros não fosse observados pelo STF, a mais alta corte presente no Poder Judiciário do Brasil.
Atento às mudanças sociais e das relações afetivas, se faz mister analisar o entendimento adotado pelo STF, uma vez que, a partir de seus julgamentos, formam-se novos entendimentos nos Tribunais do país sobre assuntos de
alta relevância jurídica, econômica, social, de grande repercussão. A filiação socioafetiva, com suas características e peculiaridades, atende bem essa perspectiva necessária para garantir que a matéria chegue à análise e discussão no âmbito da
Suprema Corte.
Neste ponto, no que tange as causas passíveis de análise e julgamento do STF, é manifesta a condição de o assunto estar diretamente ligado à Constituição brasileira, e comumente, verificam-se causas que tratam de filiação socioafetiva, conforme observado no julgado abaixo:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AGRAVO PROVIDO PARA MELHOR EXAME DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Decisão: Cuida-se de Agravo em Recurso Extraordinário contra decisão que negou seguimento a Recurso Extraordinário interposto em face de acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, assim do: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO - FILHO REGISTRADO POR QUEM NÃO É O VERDADEIRO PAI - RETIFICAÇÃO DE REGISTRO - IMPRESCRITIBILIDADE DIREITO PERSONALÍSSIMO - PRECEDENTES - RECURSO DESPROVIDO. Noticiam os autos que a ora agravada ajuizou Ação de Anulação de Assento de Nascimento c/c Investigação de Paternidade, tendo em vista que, quando do seu nascimento em 1961, fora registrada pelos avós paternos, como se estes fossem seus pais. Requereu fosse reconhecida a paternidade de seu pai biológico, para averbação junto ao Cartório de Pessoas Naturais e a anulação do registro feito pelos avós. O juízo monocrático julgou procedente a ação. Em sede de apelação a sentença foi mantida. Os ora recorrentes interpuseram Recurso Especial, ao qual foi negado seguimento, nos termos da ementa acima transcrita. Irresignados com o teor do acórdão prolatado, interpuseram recurso extraordinário, com fulcro no art. 102, III, “a”, da CRFB/88, apontando como violado o art. 226, caput, da Carta Constitucional. Alegam, em síntese, que a decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao preferir a realidade biológica, em detrimento da realidade socioafetiva, não priorizando as relações
de família que tem por base o afeto, afronta o referido dispositivo constitucional. O extraordinário não foi admitido na origem. Em sequência, os recorrentes interpuseram o presente agravo. Finalmente, por entender que o tema constitucional versado nestes autos é relevante do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, além de ultrapassar os interesses subjetivos da causa, esta Corte reconheceu a repercussão geral do tema constitucional. É o Relatório. DECIDO. O agravo preenche todos os requisitos de admissibilidade, de modo que o seu conhecimento é medida que se impõe. Ex positis, PROVEJO o agravo e determino a conversão em recurso extraordinário para melhor exame da matéria. À Secretaria para a reautuação do feito. (STF - ARE 692186 DF, Relator: Min. Luiz Fux, j. 04/09/2014, DJe. 09/09/2014)
Notadamente, a maior preocupação quanto se trata de filiação e Direito de Família é observar o melhor interesse do filho, principalmente se for criança e o respeito quanto ao artigo 226, da Constituição Federal de 1988. No caso acima exposto, o STF decidiu acolher o Recurso Extraordinário pelo entendimento que as relações familiares têm por base o afeto, mesmo que o filho seja reconhecido pelo pai ou mãe biológico, prevalece a relação socioafetiva.
Quando existe a relação socioafetiva de um companheiro com o filho do outro, pode ser que o vínculo entre ambos seja maior do que entre pais e filhos biológicos, principalmente quando se trata de pais divorciados e a guarda do filho passa a ser exercida unilateralmente. Pela aproximação, convivência, afeto,
carinho, as pessoas acabam criando uma relação de amor, cuidado, respeito, consequentemente induzindo à expectativa de que haja a transfiguração do pai biológico, ou da mãe, para o socioafetivo.
Em interessante Recurso Especial, o STJ, através da Ministra Nancy Andrighi, julgou de forma respeitável obedecendo aos princípios constitucionais do Direito de Família, a saber:
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. - Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ. - O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. - O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp. 878941 DF 2006/0086284-0, Relatora: Min. Nancy Andrighi, j. 21/08/2007, Terceira Turma, DJ 17/09/2007)
A Relatora supracitada se lastreou na necessidade de verificar a importância da figura paterna àquele que de fato exerce a função social ou biológica de pai. Fachin (1992, p. 169) explica que:
A verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação psico-afetiva, aquela, enfim, que além de poder lhe emprestar seu nome de família, o trata verdadeiramente como seu filho perante o ambiente social.
Em suma, a partir da ideia do autor supramencionado, observa-se que mais importante do que a filiação biológica, é aquela situação de fato onde o filho tem todo o carinho, atenção, respeito, amor, compreensão por parte de uma pessoa que está mais presente e suscetível de conviver duradouramente no âmbito familiar e social.
Nesse contexto, o STJ ainda traz em seus entendimentos a prevalência da paternidade socioafetiva visando o melhor interesse do menor, já que, na maioria dos casos o pai ou a mãe passa a conviver com outra pessoa e esta, com uma boa relação com o filho da companheira, exercendo, consequentemente, o poder familiar responsável. É importante destacar que há casos se faz necessário a destituição do poder paterno biológico quando ausente na vida do filho e o padrasto ou madrasta passam a exercê-lo com o intuito de colaborar no desenvolvimento da criança.
Direito civil. Família. Criança e adolescente. Adoção. Pedido preparatório de destituição do poder familiar formulado pelo padrasto em face do pai biológico. Legítimo interesse. Famílias recompostas. Melhor interesse da criança. – [...] O pedido de adoção, formulado neste processo, funda-se no art. 41, § 1º, do ECA (correspondente ao art. 1.626, parágrafo único, do CC/02), em que um dos cônjuges pretende adotar o filho do outro, o que permite ao padrasto invocar o legítimo interesse para a destituição do poder familiar do pai biológico, arvorado na convivência familiar, ligada, essencialmente, à paternidade social, ou seja, à socioafetividade, que representa, conforme ensina Tânia da Silva Pereira, um convívio de carinho e participação no desenvolvimento e formação da criança, sem a concorrência do vínculo biológico (Direito da criança e do adolescente – uma proposta interdisciplinar – 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 735). - O alicerce, portanto, do pedido de adoção reside no estabelecimento de relação afetiva mantida entre o padrasto e a criança, em decorrência de ter formado verdadeira entidade familiar com a mulher e a adotanda, atualmente composta também por filha comum do casal. Desse arranjo familiar, sobressai o cuidado inerente aos cônjuges, em reciprocidade e em relação aos filhos, seja a prole comum, seja ela oriunda de relacionamentos anteriores de cada consorte, considerando a família como espaço para dar e receber cuidados [...] Com fundamento na paternidade responsável, “o poder familiar é instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos genitores” e com base nessa premissa deve ser analisada sua permanência ou destituição. [...] Sob a tônica do legítimo interesse amparado na socioafetividade, ao padrasto é conferida legitimidade ativa e interesse de agir para postular a destituição do poder familiar do pai biológico da criança [...] Por tudo isso consideradas as peculiaridades do processo –, é que deve ser concedido ao padrasto legitimado ativamente e detentor de interesse de agir – o direito de postular em juízo a destituição do poder familiar – pressuposto lógico da medida principal de adoção por ele requerida – em face do pai biológico, em procedimento contraditório, consonante o que prevê o art. 169 do ECA. - Nada há para reformar no acórdão recorrido, porquanto a regra inserta no art. 155 do ECA foi devidamente observada, ao contemplar o padrasto como detentor de legítimo interesse para o pleito destituitório, em procedimento contraditório. Recurso especial não provido. (STJ - REsp. 1106637 SP 2008/0260892-8, Relatora: Min. Nancy Andrighi, j. 01/06/2010, Terceira Turma, DJe. 01/07/2010; grifo nosso)
O julgado acima traz em seu bojo que a destituição da paternidade biológica é medida extremamente arriscada aos interesses do filho e devem ser verificadas todas as circunstâncias para não afetar o seu desenvolvimento psicológico, social e moral.
Em suma, o STF e o STJ, vêm, de maneira repetida, prover de subsídio o reconhecimento da nova formatação familiar, àquela que uma pessoa com filho possa contrair uma nova relação, e desta, surgir uma união concorrendo para que haja interação entre o novo companheiro e a prole do outro. De fato, é enaltecedora essa posição.
2.2 A DISSOLUÇÃO DA UNIÃO, OS DIREITOS E OBRIGAÇÕES DO COMPANHEIRO EM RELAÇÃO AO FILHO SOCIOAFETIVO
Por ser um tema complexo e abrangente de diversas áreas do Direito, a filiação socioafetiva tem características próximas da filiação biológica. Ora, se o interesse é a busca pela realização e completo desenvolvimento dos filhos, é justo que os direitos e deveres da relação afetiva se assemelhem como consanguíneos fossem.
É inegável que uma vez reconhecida a filiação socioafetiva, esta não poderá ser desfeita à vontade dos agentes envolvidos, haja vista que o bem maior de preservação do interesse dos filhos, deve se sobressair sobre as demais situações.
Não obstante haver previsão doutrinária e jurisprudencial, quanto à paternidade afetiva, e de bom senso e justiça, que, ocorrendo uma dissolução da união, o filho não fique sem amparo da figura paterna, principalmente naqueles casos em que há a destituição do poder familiar do pai biológico. É a continuidade do princípio da dignidade da pessoa humana. Não seria justo que uma pessoa que perde a convivência com a figura paterna, havendo o fim do relacionamento da mãe com o companheiro – aquele que teve uma boa relação e contribuiu de alguma forma para a formação e o desenvolvimento da prole – ficar sem o amparo afetivo e material, podendo inclusive adquirir o direito de visita ou guarda do filho afetivo.
É forçoso observar que em determinado momento o filho poderá ter a ideia de que o companheiro que a mãe tem é o desenho de pai que sempre desejou ter, proporcionando-lhe todos os atributos paternos, mesmo que não o seja biologicamente ou que porventura, na dissolução, venha a insurgir uma nova relação. Pode acontecer, por exemplo, quando uma pessoa se divorcia e fica com a guarda unilateral do filho ainda criança, surge uma nova união duradoura com o convívio presente do companheiro na vida familiar da mãe com o menor. Da convivência nasce um elo que liga mais a criança ao companheiro do que com o pai biológico, e se no futuro houver a separação desses companheiros, como ficam os sentimentos adquiridos oriundos da afetividade entre o padrasto e o filho afetivo?
Interessante se faz destacar a posição, quanto à matéria, de Diniz (2002), que deve haver a paridade entre os conviventes tanto nas relações pessoais como nas patrimoniais, uma vez que resta configurada a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal e convencional. Destarte, Venosa (2006, p. 292) leciona o seguinte:
Ao lado do caráter moral, o reconhecimento de filiação gera efeitos patrimoniais. Os filhos reconhecidos equiparam-se em tudo aos demais, no atual estágio de nosso ordenamento, gozando de direitos hereditários, podendo pedir alimentos, pleitear herança e propor ação de nulidade de partilha.
Não há, portanto, que se falar em “desafetividade” para negar o vínculo existente na filiação socioafetiva. Cabe ao legislador, doutrinadores e jurisprudência regulamentar as responsabilidades oriundas dessa nova formação familiar e o consequente tratamento quanto aos direitos e deveres.
No Agravo em Recurso Especial nº 287774 MG, o Ministro Marco Buzzi do STJ, em um caso de exoneração de alimentos com o não reconhecimento do vínculo biológico comprovado por exame de DNA, entendeu que a criança conviveu durante certo tempo com o suposto pai e ficou reconhecido o laço afetivo criado entre ambos. A desconstituição da paternidade iria abalar psicologicamente o filho com o rompimento dos vínculos criados, e em virtude da importância da paternidade socioafetiva, esta deveria prevalecer sobre a biológica no caso concreto, verificando-se a proteção do melhor interesse da criança e o abalo emocional a ser gerado.
De toda sorte que o Poder Judiciário, através dos seus Tribunais, é cada vez mais unânime quanto aos direitos e as obrigações da família socioafetiva, já que protegidas pela Constituição brasileira e favoráveis de respeito da sociedade, os pais e companheiros devem prover a subsistência, desenvolvimento e educação dos filhos biológicos ou afetivos.
Na IV Jornada de Direito Civil, de 2006, foi aprovado o Enunciado nº 341 dispondo “Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar” (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 55).
Ainda sobre o tema de direitos, na V Jornada de Direito Civil de 2011, aprovou-se o seguinte Enunciado nº 519:
O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai socioafetivo e filho socioafetivo, com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 73)
Nesse sentido, cabe frisar que deve haver uma comunhão de interesses para que o companheiro, de fato, subsista aos requisitos da parentalidade, tais como o vínculo, a boa relação, o convívio público e duradouro, além do afeto, carinho, respeito, sustento.
3 LIMITES DO PODER FAMILIAR EXERCIDO NA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
O poder familiar é, segundo Gonçalves (2014), um múnus público instituído pelo Estado, concedido naturalmente à condição de filhos e família, mas não em proveito dos genitores, e sim em preservação ao princípio da paternidade responsável, já que os maiores interessados na efetivação desse conjunto de deveres são atendidos pelos pais responsáveis, nada obsta que sejam transferidos à pessoa do companheiro na constância do relacionamento.
O poder familiar poderia ser estendido para o outro conivente na medida em que há uma relação de convívio com o filho, principalmente quando se trata de um novo matrimonio ou união estável, já que é possível a adoção unilateral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 –, o uso do nome do padrasto e em alguns casos até obrigação alimentar, por que não haver uma relativização ou extensão no que concerne a esse poder?
Em Enunciado nº 108, aprovado na I Jornada de Direito Civil, prescreve que “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva” (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 27). É, de fato, reconhecida a filiação inclusive com as prerrogativas de filho biológico, e por isso é importante a ampliação do poder familiar ao companheiro. Não se trata apenas de medidas coercitivas, mas o acesso a orientação, educação, imposição de limites, ensinamento moral e ético na perspectiva que o casal tem em comum a repassar para o filho.
A filiação socioafetiva é uma espécie de parentesco civil advindo do afeto que afasta qualquer discriminação quanto ao filho do companheiro em relação ao biológico, é que na medida em que há um convívio duradouro entre os atores é necessário e natural que criem laços e sentimentos afetivos recíprocos em relação à prole. O elo que une essa afinidade e o decorrer do tempo fazem nascer o comprometimento do companheiro cuidar, zelar e consequentemente fazer aplicação do poder familiar.
Inegavelmente, o poder familiar está mais próximo de deveres de pais com os filhos do que poderes, uma vez que aqueles são obrigados a prestar todo amparo disponível para o pleno desenvolvimento destes.
De acordo com Hironaka (2008, p. 220), esse poder, que antes era tratado como pátrio poder, manifesta aos pais, que é “intransferível, inalienável, imprescritível e irrenunciável”, sendo personalíssimo e passível de ser cobrado a qualquer momento.
Na lição de Tartuce (2014, p. 437), o poder familiar é definido como sendo “o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto”. É de se esclarecer com a afirmação que os pais têm o dever de educação, formação e desenvolvimento ético, moral, religioso, social dos filhos sejam eles biológicos ou não.
Em contrapartida, cabe analisar qual o limite que o companheiro tem em relação ao filho socioafetivo, porque no momento em que o casal passa a conviver junto e ter uma união, na inteligência dos artigos 1.630 a 1.638, do Código Civil de 2002, ambos têm os direitos e deveres previstos no diploma legal. Ocorre que não há menção expressa quanto ao poder que pode ser exercido pelo companheiro em relação ao filho do outro.
Analogamente, o artigo 21 do ECA deveria ser aplicado em casos específicos ao pai socioafetivo, na ausência de afeto do pai biológico e não atendesse o disposto normativo para o regular desenvolvimento do poder familiar quanto ao filho. O referido artigo expressa:
Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, no caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. (BRASIL, 1990).
Nada mais justo do que a aplicabilidade concorrente do poder familiar ao companheiro quando há uma relação duradoura, fiel, consistente, com o convívio social e demonstrada a formação familiar. A competência de ambos os pais, prevista no artigo 1.634 do atual Código Civil, em recente e inteligente alteração sofrida em dezembro de 2014, trouxe a possibilidade de exercício do direito de prestação de obediência quanto aos filhos, conforme dispõe:
Art. 1634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
[...]
IX – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (BRASIL, 2002).
Nesse contexto, cabe assegurar ao companheiro que convive com o filho da companheira e mantém uma relação de afeto, o direito de obediência e respeito, desde que esse exerça de forma fidedigna o núcleo da existência familiar. É de se observar que a extensão desse poder familiar deveria ser mitigada na filiação socioafetiva, já que a lei se refere aos “pais”, e em casos tais a presença do pai afetivo se sobressai sobre o biológico.
Apesar de estar expressamente previsto em lei (art. 1.960, do Código Civil de 2002), que estabelece a competência exclusiva do poder familiar ou autoridade parental, a representação e assistência até completa a maioridade de um dos pais sobre o filho, cabe a interpretação análoga ao companheiro, em virtude do vínculo, do relacionamento, na preservação do interesse da criança como a doutrina majoritária e a jurisprudência vêm adotando. Dias (2013, p. 68) expressa que:
Porém, às vezes, melhor atende aos interesses do infante a destituição do poder familiar [...]. O que deve prevalecer é o direito à dignidade e ao desenvolvimento integral, e, infelizmente, tais valores nem sempre são preservados pela família.
Pelo princípio da igualdade jurídica entre cônjuges e companheiros, cabe a análise do exercício na filiação socioafetiva, já que o companheiro será responsável pela continuidade da educação e formação do filho e direção da entidade familiar. Ou seja, aquele que ensina, cria, educa o filho de outrem, deveria ser considerado, também, detentor do Poder Familiar ou que, de alguma forma, fosse dilatado esse poder ao companheiro, claro, verificando as condições de estabilidade na relação e efetivo convívio.
Quanto ao tema de prevalência de paternidade socioafetiva sobre a biológica, o STF já reconheceu sua repercussão geral no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 692186 DF, já aqui citado. Ainda nesse sentido de reconhecer as variantes do poder familiar bem como sua efetividade o STF, em julgamento inédito de Habeas Corpus, procedeu ao pleito de pai estrangeiro com filhos brasileiros em permanecer no país com objetivo de cuidar da prole, conforme julgado abaixo:
HABEAS CORPUS”. MEDIDA LIMINAR. EXPULSÃO DE ESTRANGEIRO. PATERNIDADE SOBRE FILHO MENOR IMPÚBERE BRASILEIRO NASCIDO APÓS A PRÁTICA DO DELITO ENSEJADOR DO ATO DE EXPULSÃO. O “STATUS QUAESTIONIS” NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONDIÇÕES DE INEXPULSABILIDADE: DEPENDÊNCIA ECONÔMICA OU VÍNCULO SÓCIO- -AFETIVO. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO AFETO COMO VALOR CONSTITUCIONAL IRRADIADOR DE EFEITOS JURÍDICOS. A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA. A RELAÇÃO SÓCIO-AFETIVA COMO CAUSA OBSTATIVA DO PODER EXPULSÓRIO DO ESTADO. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE PROTEGER A UNIDADE E DE PRESERVAR A INTEGRIDADE DAS ENTIDADES FAMILIARES FUNDADAS EM RELAÇÕES HÉTERO OU HOMOAFETIVAS. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO INTEGRAL E EFETIVA À CRIANÇA E/OU AO ADOLESCENTE NASCIDOS NO BRASIL. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA PRETENSÃO CAUTELAR. CONFIGURAÇÃO DO "PERICULUM IN MORA". MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado: “‘HABEAS CORPUS’. EXPULSÃO. PORTARIA DO MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA. ESTRANGEIRO NASCIDO NO SURINAME E COM NACIONALIDADE HOLANDESA. CONDENAÇÃO POR TRÁFICO DE DROGAS. PROLE SUPERVENIENTE AO FATO CRIMINOSO E À CONDENAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DA DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DO MENOR EM RELAÇÃO AO PACIENTE (PAI) [...]. (STF - HC 114901 CE, Relator: Min. Celso de Mello, j. 26/11/2012, DJe. 29/11/2012)
O STJ já se manifestou em sede do Recurso Especial nº 1106637, já aqui citado, sobre a possibilidade de destituir o poder do pai biológico em função do pai afetivo a fim de preservar e garantir o melhor interesse do filho, já que estava configurado, na situação, um convívio efetivo de carinho e participação no desenvolvimento da criança.
Neste ínterim e no raciocínio de dar maior efetividade à máxima proteção à instituição familiar, o Projeto de Lei nº 5.682/2013, de autoria do Deputado Newton Cardoso, apresentado ao Congresso Nacional, regulamenta o reconhecimento da paternidade socioafetiva, ainda sem previsão legal, modificando o ECA.
4 CONCLUSÃO
A partir da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a ser efetivado de maneira mais concreta, ampla e eficiente, principalmente com o entendimento de que a sociedade deve ser mais justa e igualitária para todos. Nesse contexto, surgem inúmeras manifestações de cunho político, econômico, religioso, cultural e familiar, e é neste último ponto que novas formas de convívio, relação e afeto entram na base da garantia constitucional prevista em seu artigo 1º, inciso III. De fato, para a maximização dessa prerrogativa, se faz necessário que o legislador reconheça as mudanças propostas pela coletividade que tem interesse de ver reconhecido um direito ou uma tutela inerente à sua situação. Dentre muitas situações, a caracterizadora de inúmeras discussões está no mundo do Direito de Família, e a relação socioafetiva, já que pode envolver garantias de várias pessoas.
Mesmo com a tentativa de se estabelecer um acesso amplo dos princípios consagrados na Constituição brasileira, ainda é recorrente o preconceito e o etiquetamento que alguns têm em relação a uma nova formação familiar. É certo que o artigo 226 da referida Constituição expressa acerca da necessidade de proteção da família, que pode ser definida de múltiplas formas.
Observa-se que a socioafetividade pode ocorrer em vários liames e o mais comum é aquele onde há dissolução do matrimônio de um casal que possui filhos, e quem fica com a guarda unilateral contrai uma nova união.
Quando se trata de relação envolvendo criança fica mais difícil de concatenar a ideia de que o novo companheiro irá lidar com comportamentos e conceitos preestabelecidos oriundos da relação anterior. Ocorre que, comumente, não raras às vezes, nota-se aquele que não ficou com a guarda dos filhos não dar o suporte necessário para a continuidade do desenvolvimento da prole, não apenas financeiramente, mas afetivamente e moralmente. Entretanto, na eventual falta do genitor biológico para satisfazer essas necessidades, cabe ao outro suprir com as obrigações de ser ao mesmo tempo pai e mãe.
Ainda que a relação socioafetiva venha sendo discutida e reconhecida
no âmbito doutrinário e jurisprudencial do STF e do STJ, compete aos pais socioafetivos a guarda, proteção, afeto, respeito em relação aos filhos, e apesar da rigidez do Direito de Família em concomitância com o ECA, já é possível verificar uma possível mudança de entendimentos no âmbito do poder familiar ser exercido pelo outro consorte. Isso só é possível, claro, com a devida comprovação de atender, dentre outros princípios, o melhor interesse do menor, e desde que a relação seja estável, duradoura e haja um legítimo elo de afeto entre os envolvidos.
Um ponto importante dessa matéria pode ser objeto de dúvida, já que, havendo uma eventual extensão do poder familiar ao companheiro, poderia suscitar como ficaria a situação do filho com o genitor biológico. Existe a possibilidade legal, jurídica que é a destituição do poder familiar quando há causa prevista no ECA, ou ainda, a extensão do poder familiar ao companheiro, interpretando da melhor forma o atual Código Civil, em especial o artigo 1.566, inciso IV. O STF e o STJ vêm de maneira uníssona adotando a ideia de que deve haver a conjunção coerente dos princípios dignidade da pessoa humana,
A relevância que o tema em questão traz não reflete apenas no mundo jurídico, mas também na comunidade em geral, já que muitos são aqueles pais que vivem sob a ótica da socioafetividade com relação aos filhos do outro companheiro. Até que ponto pode haver uma relativização na continuidade da criação da prole
ser exercida baseada no afeto, amor, educação, proteção, guarda e respeito recíprocos, e é partir de experiências e entendimentos que os Tribunais vão expandindo a ideia de efetivação dos princípios constitucionais basilares para a ordem social brasileira.
Por fim, conclui-se que a filiação socioafetiva deve ser pautada pela supremacia do interesse do menor, e sendo aquela que o pai ou mãe afetivo possam ter a capacidade para dar continuidade no regular desenvolvimento e criação do filho, inclusive com a possibilidade de extensão do poder familiar ao novo companheiro, desde que esse seja integrante direto e responsável conjuntamente pela educação, alimento, cuidado, amor, orientação e os demais atos necessários para o exercício da paternidade e planejamento familiar responsável.
Por
Leonardo Cavalcanti De Aquino
Advogado atuante no Direito de Família
REFERÊNCIAS
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