Artigos
Usucapião urbano familiar e o princípio da moradia digna e proteção dos filhos
RESUMO
O direito de família é um dos temas mais polêmicos e relevantes do direito brasileiro, seja pela sua antiguidade ou pelos conflitos emocionais, afetivos e patrimoniais que marcam a sua existência. Assim, estamos diante de um novo e polêmico preceito legal que conjuga o direito de família e direitos reais, que está previsto no artigo 1.240-A do Código Civil consistente na Usucapião Urbano Familiar, tema que nos propomos a estudar. Este trabalho traça um histórico da família e da usucapião, além de esmiuçar o texto legal trazendo as características do instituto e real intenção do legislador. A finalidade deste estudo é demonstrar a necessidade de assegurar aos filhos do casal a proteção, e a moradia digna que são fundamentos da dignidade da pessoa humana prevista Constitucionalmente. A metodologia empregada é a releitura bibliográfica, com enfoque nos direitos e princípios constitucionais e infraconstitucionais que orientam o tema, além da apresentação de posicionamentos doutrinários divergentes. Embora a doutrina majoritária defenda a impropriedade deste preceito legal, sob o argumento de sua inconstitucionalidade, restou demonstrado que ele atende satisfatoriamente o interesse dos filhos do casal, seja garantindo dignidade humana e protegendo o direito de moradia, por meio da ponderação de bens e valores e da proporcionalidade, em detrimento do direito individual de propriedade daquele que abandonou o lar conjugal e não tratou de resolver a questão patrimonial no prazo hábil de dois anos.
Palavras-chave: Dignidade. Família. Moradia. Usucapião.
ABSTRACT
Family law is one of the most controversial and relevant topics of Brazilian law , either for their antiquity or the emotional , affective and property conflicts that mark its existence . Thus , we face a new and controversial legal precept that combines family law and property rights , which is provided for in Article 1240 -A of the Civil Code in Urban consistent Usucaption Family theme we propose to study . This work traces a history of the family and adverse possession , and scrutinize the legal text bringing the features of the institute and real intention of the legislature . The purpose of this study is to demonstrate the need to ensure the couple's children protection , and decent housing that are the foundations of human dignity Constitutionally provided . The methodology is bibliographic rereading , focusing on rights and constitutional and infra-constitutional principles that guide the subject , beyond the presentation of divergent doctrinal positions . Although the majority doctrine defend the impropriety of this legal provision on the grounds of its unconstitutionality, remained satisfactorily demonstrated that it serves the interests of the couple's children , is guaranteeing human dignity and protecting the right to housing, through the weighting of goods and values and proportionality , to the detriment of individual property rights that he left the marital home and did not try to resolve the equity issue in a timely manner within two years.
Keywords: Dignity. Family. House. Prescription.
INTRODUÇÃO
A ideia de escrever sobre usucapião surgiu ao tomar conhecimento da inovação trazida pela Lei nº 12.424/2011, no sentido de demonstrar que o instituto da Usucapião Urbano Familiar atende ao requisito constitucional de moradia digna e tem aplicação satisfatória na atualidade com relação à proteção dos filhos.
Assim trabalha-se com a hipótese de que o artigo 1.240-A ao Código Civil garante moradia digna ao cônjuge e, principalmente aos filhos abandonados, amenizando as consequências do lar desfeito com o rompimento do vínculo familiar.
Nesse sentido, a pesquisa/releitura bibliográfica (teórica) busca conhecer mais sobre a usucapião urbano familiar, sua finalidade, e os motivos que levaram os legisladores a acrescentar este instituto ao ordenamento jurídico, com destaque no enfoque constitucional da matéria e os posicionamentos doutrinários conflitantes.
Assim, a abordagem passará por temas como: histórico da família; aquisição da propriedade por meio da usucapião; usucapião urbano familiar e artigo de Lei que garante esse direito, além de tratar da culpa extirpada do sistema pela Emenda Constitucional 66/2010; análise da questão constitucional e princípios que amparam esse direito; correntes pró e contra ao instituto; e por fim defendendo e aplicabilidade do instituto com fundamento no direito à moradia digna e a proteção aos filhos por meio da ponderação de bens/valores e a proporcionalidade.
Para implementar a tese perseguida, será utilizada a revisão de literatura a cerca do tema, de modo que não há a intenção de se provar algo novo, e sim, condensar o que já foi escrito, assim as conclusões já são implicitamente conhecidas e esperadas sendo somente confirmadas.
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1 HISTÓRICO
1.1 A origem da família
Do ponto de vista cristão, a mais antiga entidade familiar de que se têm notícias foi formada pelas figuras históricas de Adão e Eva. Somente mais tarde em Roma passou a falar em família nos moldes conhecidos, conforme destaca Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 50) “em Roma, a família pautava-se numa unidade econômica, política, militar e religiosa, que era comandada sempre por uma figura do sexo masculino, o pater famílias”.
A figura masculina, como líder familiar é uma cultura que atravessa gerações e evidente o importante papel que o homem exerceu e até hoje exerce no núcleo familiar como chefe que orienta as decisões mais importantes do grupo.
Fato é que desde o seu surgimento, a família já se mostrava propensa a trazer consigo vários conflitos, o que foi objeto de observação por Gagliano e Pamplona Filho (2013, p. 38) que a esse respeito filosofam: “a família é sem sombra de dúvida, o elemento propulsor de nossas maiores felicidades e, ao mesmo tempo, é na sua ambiência em que vivenciamos as nossas maiores angústias, frustrações, traumas e medos”. Corrobora desse entendimento Maria Helena Diniz:
Deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo. (...). É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano (DINIZ, 2011, p. 27).
Não há como negar que no passado a única entidade familiar respeitada pelo povo e pela igreja era aquela derivada do casamento, mas esse conceito radical encontra-se ultrapassado e Dias (2013, p. 10) relata que “cada vez mais a ideia de família afasta-se da estrutura do casamento. O divórcio e a possibilidade do estabelecimento de novas formas de convívio revolucionaram o conceito sacralizado de matrimônio”.
Nesse cenário evolutivo o casamento civil e religioso tão prestigiado pela Igreja Católica deu espaço à união estável que mesmo mal vista por anos, não se pode negar sua existência, como pondera Dias (2013, p. 173) “apesar da rejeição social e do repúdio do legislador, vínculos afetivos fora do casamento sempre existiram. (...) Tantas reprovações, contudo, não lograram coibir o surgimento de relações afetivas mesmo sem amparo legal”.
Sabe-se que o Estado somente deixou de interferir na constituição e dissolução do casamento em 1977, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 9/1977, e a partir daí cada família passou a decidir sobre a união e dissolução de seus lares, prova disso é que hoje a Constituição Federal em seu artigo 226 e parágrafos, oferece tutela ampla à família. Outro marco histórico evolutivo se deu em 2011 com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união homoafetiva como um modelo legítimo de entidade familiar aplicando a esses casais os preceitos da união estável.
Como não poderia ser diferente, as relações familiares fazem e se desfazem a todo momento e o rompimento do vínculo familiar gera uma série de direitos e deveres aos cônjuges, e um deles é o previsto no artigo 1.240-A do Código Civil, totalmente atrelado ao direito de família com caráter protetivo, que será aqui estudado.
1.2 A Origem da usucapião
O termo usucapião trata-se de um vocábulo de origem latina, do gênero feminino, derivado da palavra usucapio, do verbo capio ou capere que significa tomar pelo uso, ou ainda adquirir pelo uso, e sua essência é perseguir um direito real sobre coisa alheia, adquirindo sua propriedade mediante posse mansa e pacífica da coisa, e o preenchimento dos requisitos legais. Tem sua fonte primária no Direito Romano, e no Brasil foi tratada pela primeira vez na Consolidação elaborada por Teixeira de Freitas, de modo que, seu texto cuidou para que aquele que possuísse de má-fé não se beneficiasse em detrimento do proprietário legítimo.
Trata-se de um marco do direito de propriedade previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso XXII. Conceito simplificado encontramos na obra de Venosa (2011, p. 207) que define: “usucapião o modo de aquisição da propriedade mediante a posse suficientemente prolongada sob determinadas condições”. Sobre a posse já se pronunciou Venosa (2011, p. 208):
A posse é o fato que permite e possibilita o exercício do direito de propriedade. Quem não tem a posse não pode utilizar-se da coisa. (...) Estabeleceram-se então os seguintes requisitos para a usucapião, mantidos na lei e na doutrina modernas: res habilis (coisa hábil), iusta causa (justa causa), bona fides (boa-fé), possessio (posse) e tempus (tempo).
Dessa forma, o direito busca agraciar com a usucapião aquele que usa adequadamente o bem, fazendo com que ela atinja a sua função social, em detrimento daquele que mesmo sendo o legítimo proprietário deixa seu bem abandonado, nesse contexto, Araújo (2013) define a usucapião como instituto paradoxal, pois na mesma medida que cria, destrói, simultaneamente, o direito de propriedade.
Há no Brasil previsão legal da aquisição da propriedade seja móvel ou imóvel por meio da usucapião em nosso texto constitucional que abriga duas modalidades, urbana e rural, cada uma delas com subdivisões, requisitos e prazos diferenciados às quais não serão aqui abordadas pela lógica do objeto de estudo.
2 USUCAPIÃO URBANO FAMILIAR
2.1 A Lei nº 12.424/2011e o artigo 1.240-A do Código Civil
O foco deste trabalho é a inovação legislativa trazida pelo artigo 9º da Lei 12.424/2011 que regulamenta o programa Minha Casa, Minha Vida do Governo Federal, e acrescentou o artigo 1.240-A ao Código Civil, modalidade de usucapião especial urbana, com foco no direito de família, com a seguinte redação:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011).
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2o (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). (BRASIL. 2002, s.p.).
Assim, detalhadamente será tratado o artigo supracitado a fim de esmiuçar sua essência e a intenção do legislador ao apresentar o projeto de lei que culminou com a implantação deste polêmico artigo no Código Civil.
2.2 Características e a questão da culpa
Convém esclarecer que, a usucapião familiar, direito real de propriedade umbilicalmente ligado ao direito de família, com prazo reduzidíssimo tem o fito de garantir primordialmente o direito à moradia, conforme leciona Araújo (2013, p. 368), “(...) a previsão da usucapião em prazo abreviadíssimo representa autêntico desdobramento da usucapião especial urbana, especialmente quando visualizada dentro do contexto normativo em que foi inserida”.
Para Ribeiro e Fonseca (2012), o prazo considerado reduzido do instituto não se trata de uma novidade, pois tem sido uma tendência a redução de prazos no ordenamento jurídico brasileiro. Além do prazo, para se beneficiar do instituto é necessário que aquele que busca o direito, permaneça na posse direta do bem por dois anos sem oposição, e com exclusividade e ainda divida a propriedade com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família. Nesse sentido Ribeiro e Fonseca lecionam:
Apesar da expressão “utilizando-o para sua moradia ou de sua família” sugerir que a moradia poderia ser utilizada pela família do interessado (sem a posse direta deste), essa não nos parece a melhor interpretação. Apesar da utilização do “ou” como conjunção alternativa, em qualquer situação, o interessado deve exercer posse direta sobre o imóvel (RIBEIRO, FONSECA, 2012, p. 230).
Outro requisito é a área de 250 m2, que na lição de Ribeiro e Fonseca (2012) já vem previsto na usucapião do artigo 183 da Constituição Federal e do artigo 1240 do Código Civil, e se refere ao tamanho do terreno ou da área construída, não podendo um ou outro exceder o limite.
Importante consignar ainda que para a plena aplicabilidade do instituto, é necessário que os cônjuges dividam não apenas o teto, mas sim a propriedade do imóvel constante da matrícula perante o Cartório de Registro de Imóveis, não importando segundo Ribeiro e Fonseca (2012) o regime de bens, desde que tenha sido adquirido por ambos, antes do casamento ou da união estável, pois aplicável ao companheiro em razão do reconhecimento pela Constituição Federal de 1988, da união estável como entidade familiar.
A questão mais polêmica desse instituto reside no “abandono do lar”, pois segundo Yussef Said Cahali (2005) o divórcio embora danoso à família, e em especial aos filhos não é a causa da ruptura da vida conjugal e sim a consequência de uma sociedade conjugal mal constituída, despreparada ou degenerada pelas condições do mundo moderno, assim, saber o que configura ou não o abandono do lar, vai muito além e depende do caso concreto.
Não basta que os requisitos já elencados sejam cumpridos, é preciso ainda que aquele que permanecer no imóvel o utilize para sua moradia ou de sua família, e ainda é importante esclarecer que é vedada a concessão desse direito mais de uma vez à mesma pessoa, o que segundo Ribeiro e Fonseca (2012) impede a especulação imobiliária que desnaturaria o espírito da norma.
Sabido é que essa inovação legislativa foi duramente criticada por alguns juristas, pelo fato de reacender os conflitos com relação à culpa de cada cônjuge na separação, questão superada pela aprovação da Emenda Constitucional 66/2010 que afastou de uma vez por todas a necessidade de aferição da culpa para encerramento do vinculo, seja ele afetivo ou patrimonial.
Num passado não muito distante, essa questão da culpa era intensificada por força da imposição da Igreja Católica que via no casamento uma instituição eterna que jamais poderia ser desfeita, senão pela culpa de um dos cônjuges. Mas a lei não fala em culpa segundo esclarecem Ribeiro e Fonseca (2013, p. 231): “Para configuração do abandono de lar é imprescindível que o cônjuge ou companheiro deixe o lar conjugal de forma não constrangida, sem consentimento ou provocação do outro, e sem intenção de retorno”.
Segundo Araújo (2013, p. 370) “O instituto não se volta para os casais que estão separados provisoriamente por problemas de relacionamento. A separação fática sem o ‘animus de rompimento’ não caracteriza o abandono”.
Nesse aspecto até parece razoável a preocupação majoritária, mas a inércia pura é que conduz ao direito, assim ainda é comum aquele que ficou no imóvel, alugar o mesmo e procurar um espaço menor para a família, nesse ponto Farias e Rosenvald (2010) esclarece que ninguém pode adquirir o direito de propriedade pela habitação no local por outra pessoa, pois tal tentativa fere o propósito constitucional.
A melhor saída é resolver em tempo hábil toda a questão patrimonial, até porque a nova modalidade de usucapião do artigo 1240-A do Código Civil não viola a regra do artigo 197, inciso I do mesmo dispositivo legal, que prevê que não corre a prescrição entre os cônjuges na constância do casamento. Aliás, Araújo (2013) comenta que a separação temporária e transitória não deve ser computada para fins de permitir a fluência do prazo, pois apenas a separação definitiva é que constitui o marco inicial da prescrição.
Por fim, considerando a existência de polêmica a respeito da constitucionalidade do artigo 1.240-A do Código Civil, necessária uma análise do mesmo à luz dos princípios constitucionais supremos que serão tratados adiante.
3 A QUESTÃO CONSTITUCIONAL E OS PRINCÍPIOS
3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Sabido que há a possibilidade de realizar uma interpretação em benefício de ambas as partes sob o prisma constitucional, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana que Ingo Wolfgang Sarlet assim descreveu:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável (...). (SARLET, 2001, p. 60).
Corrobora com esse entendimento Gagliano e Filho (2013, p. 76) ao defender que: “(...) dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade”.
Nesse prisma, não parece razoável alguém alegar que aquele que perdeu apenas o patrimônio tenha tido sua dignidade humana violada, frente àqueles que perderam o teto, a moradia e o conforto do lar, perdendo mais que isso, a sensação de proteção e apoio mútuo típico de um ambiente familiar.
3.2 A proteção integral as crianças, adolescentes e jovens
Quanto aos princípios inerentes ao direito de família, importante trazer à baila o Princípio da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, previsto no artigo 227, caput da Constituição Federal de 1988 e artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/90, que prevê que a condição da criança e do adolescente deve ser sempre levada em conta, oferecendo às crianças e adolescentes prioridade absoluta. Sobre o tema pondera Eliane Araque Santos:
Crianças e adolescentes são sujeitos especiais porque pessoas em desenvolvimento. O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a serem protegidos pelo Estado, pela sociedade e pela família com prioridade absoluta, como expresso no art. 227, da Constituição Federal, implica a compreensão de que a expressão de todo o seu potencial quando pessoas adultas, maduras, tem como precondição absoluta o atendimento de suas necessidades enquanto pessoas em desenvolvimento (SANTOS, 2006, p. 130).
Não obstante as críticas em torno dessa modalidade de usucapião é preciso reconhecer que houve por parte do legislador certa preocupação em resguardar crianças e adolescentes grupo geralmente exposto a vários tipos de abuso.
3.3 O melhor interesse da criança e do adolescente
Outro princípio de ordem familiar é o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, previsto no artigo 227, caput da Constituição Federal de 1988, e também nos artigos 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A esse respeito Lima (apud DILL, CALDERAN, 2010) ponderam que o dever de criação abrange as necessidades biopsíquicas do filho, vinculadas à satisfação das demandas básicas, tais como os cuidados na enfermidade, a orientação moral, o apoio psicológico, as manifestações de afeto, o vestir, o abrigar, o alimentar, o acompanhar física e espiritualmente ao longo da vida.
Importante frisar que, para que sejam garantidos todos os direitos inerentes à formação da criança e do adolescente, não se faz necessária a coabitação com ambos os pais, desde que estes cumpram seus papéis de forma efetiva.
3.4 A proibição de retrocesso social
A proibição de retrocesso social tem sua origem na jurisprudência europeia, e no Brasil seu estudo foi atribuído à José Afonso da Silva e diz respeito à vedação implícita à supressão ou redução de direitos fundamentais sociais já alcançados e garantidos a níveis inferiores. Segundo Narbal Antônio Mendonça Fileti ele tem o:
[...] propósito de ampliar, progressivamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas (incluindo as orçamentárias), o grau de concretização dos direitos fundamentais sociais. Não se trata de mera manutenção do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social (FILETI, 2009, s.p.).
No plano concreto, este princípio foi observado de modo que há o reconhecimento de uma perda patrimonial por um lado mais a garantia do mínimo existencial ao núcleo familiar do outro. O juiz federal Sérgio Renato Tejada Garcia em artigo sobre o tema leciona:
O princípio da vedação de retrocesso, também conhecido como princípio da aplicação progressiva dos direitos sociais, constitui-se em proteção do núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas, vedando quaisquer medidas tendentes a anular, revogar ou aniquilar esse núcleo essencial sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios (GARCIA, 2010, s.p.).
Aplicando esse princípio na ótica da usucapião familiar vislumbramos que só haverá prejuízo àquele que abandonou o lar se este permanecer inerte, não havendo, pois punição conforme defendido por outros doutrinadores e sim uma perda patrimonial consentida.
4 CORRENTES PRÓ E CONTRA A USUCAPIÃO URBANO FAMILIAR
Assunto tão polêmico não poderia deixar de trazer opiniões divergentes à exemplo do argumento favorável ao novo instituto, lançado pelo professor Adriano Marteleto Godinho (2011, s.p.), em seu artigo: “A medida teria o mérito de extinguir o regime de condomínio incidente sobre um imóvel que, até então, pertence conjuntamente a duas pessoas que já não mantêm a condição de casadas ou companheiras”.
Coaduna desse entendimento o professor Douglas Phillips Freitas (2011) que descreve como interessante o novo artigo, pois levanta a possibilidade do estudo da prescrição no direito de família o que não era até então discutido. Outro ponto por ele levantado, é que a simples menção “abandonou o lar” contido na letra da lei por si só não reacende a discussão de culpa, pois considerando a evolução social e a vedação do retrocesso, inócua essa análise, devendo o termo ser entendido como “separação de fato” que é o que autoriza a aquisição do direito.
Não obstante àqueles que são a favor do instituto, encontramos uma grande parcela que discorda a exemplo de Dias (2013, p. 344), que se filia a corrente da inconstitucionalidade da norma, e pondera que “a lei busca assegurar o uso social da propriedade, protegendo o direito à moradia. Mas dispõe de nítido caráter protetivo, ao punir quem abandona o lar”.
Também se posiciona contra o professor Roberto Rosio Figueredo, vejamos:
O novo regramento torna ainda mais doloroso e difícil o processo de divórcio, acrescentando armas para o embate familiar em busca da aquisição da propriedade imóvel pertencente ao casal, dificultando as chances de restauração do casamento ou união estável (FIGUEREDO, 2011. s.p.).
Opina também contra a usucapião familiar, em breve passagem do seu artigo o professor universitário Adriano Marteleto Godinho:
Em tempos em que se prega a extinção da discussão sobre a culpa para a dissolução dos casamentos e uniões estáveis, esta nova previsão pode acirrar as disputas entre casais, agora em busca da aquisição da propriedade integral do imóvel em que residiam antes da ruptura do relacionamento (GODINHO, 2011, s.p.).
O escritor Afonso Feitosa (2012), em palestra sobre o tema, reconhece a dificuldade de lidar com a nova lei após a edição da EC 66/10, mas orienta que há a possibilidade de obstar o decurso do prazo de dois anos por meio da notificação do outro cônjuge ou ainda a propositura da ação de separação de corpos com brevidade.
Sob outro prisma, Cardoso (2011), descreve o instituto como negativo para os cônjuges, pois acabam por evitar o rompimento da relação por medo de perder o bem o que criaria um cenário propenso à violência doméstica, pois não haveria mais qualquer sentimento senão o desejo de resguardar o patrimônio.
Assim, as opiniões se dividem, mas a primeira impressão é que há divergências e o caso concreto é fundamental para definir o melhor caminho.
5 DIREITO DE PROPRIEDADE x MORADIA DIGNA/PROTEÇÃO AOS FILHOS
Sabido é que o direito de propriedade tal qual o direito à moradia encontra previsão constitucional, e são considerados cláusulas pétreas, que não podem sofrer alterações por meio de emendas. Dessa forma, os direitos e garantias individuais, estão divididos em dimensões. Logo no grupo de direitos individuais e coletivos com previsão no artigo 5º temos o direito de propriedade. Já no artigo 6º da Constituição Federal estão contemplados os direitos sociais entre eles a moradia.
Assim, ambos os direitos discutidos nesse contexto (propriedade e moradia) encontram-se no mesmo patamar de direito fundamental e há um conflito pelo fato da Constituição Federal amparar ambos ao mesmo tempo, e diante da existência de conflitos de direito fundamental, sabe-se que simples aplicação da norma jurídica não faz sentido sendo necessária profunda interpretação da norma.
Utiliza-se em casos tais a ponderação de bens como critério de solução de tensões entre direitos fundamentais, que segundo Canotilho (apud PACHECO, 2007) decorre da necessidade de encaixar o direito ao caso concreto, como meio de solucionar as tensões existentes entre bens juridicamente protegidos.
Corrobora com esse entendimento Luciano Sampaio Rolim:
(...) em alguns casos de colisão, a realização de um dos direito fundamentais em confronto é reciprocamente excludente do exercício do outro. Nesta hipótese, o princípio da proporcionalidade indica qual o direito que, na situação concreta, está ameaçado de sofrer a lesão mais grave caso venha a ceder ao exercício do outro, e, por isso, merece prevalecer, excluindo a realização deste (colisão excludente). (ROLIM, 2002, s.p.).
Dessa forma, mostra prudente por meio da ponderação e da proporcionalidade reconhecer que o direito à moradia deve ser resguardado em detrimento do direito de propriedade, pois sabe-se que é conhecida a previsão do direito à moradia digna como um direito humano desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 corroborado pelo Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966 e ainda ampliado para a Constituição Federal de 1988, sendo inserido no bojo do artigo 6º por meio da Emenda Constitucional nº 26 de 14/02/2000.
É do conhecimento geral que muitas das previsões constitucionais deveriam ser implementadas por políticas públicas, mas considerando a real impossibilidade, cabe ao particular fazer o que se encontra ao seu alcance, pois a perda da moradia é drástica e Dias (2013) a descreve como a quebra da última proteção humana.
Diante de tais ponderações, não obstante as críticas e entendimentos divergentes nos arriscamos neste trabalho a defender que, do ponto de vista principiológico constitucional, o instituto da usucapião urbano familiar garante a dignidade da pessoa humana, a moradia digna e a proteção dos filhos. Tal conclusão decorre da existência de princípios em colisão com outros direitos, onde estão em confronto o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito social à moradia e o direito individual à propriedade, tidos como cláusula pétrea, tão importantes quanto princípios, e neste caso, impõe a ponderação de bens defendida pela doutrina majoritária.
Assim dada a incompatibilização entre os mesmos, a dignidade da pessoa humana há de prevalecer conforme passagem do livro de Alexandre Ernesto de Almeida (2011) que brilhantemente fecha esta tese à qual me filio, de que não há princípio que melhor representa a ideia de direito e justiça encontrado no direito brasileiro senão o da dignidade da pessoa humana.
CONCLUSÂO
A família que é a base da sociedade, envolve conflitos que ultrapassam gerações e persistem até os dias de hoje, sejam eles afetivos, emocionais e patrimoniais onde se encaixa a figura da usucapião urbano familiar.
É certo que quando se fala em propriedade mexe muito com o homem moderno, todavia, não se pode esquecer que a sobrevivência humana de forma digna supera qualquer questão patrimonial e não deve ser relegada a um segundo plano.
Assim, embasando nos princípios constitucionais e aqueles previstos na legislação infraconstitucional, notadamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, foi possível ao fim defender a tese de forma satisfatória respondendo a questão central proposta de demonstrar que o instituto atende o princípio constitucional de moradia digna e mais que isso confere proteção aos filhos.
Por fim, fica registrada a importância da análise do instituto com base no lado mais fragilizado que são os filhos, deixando de lado a forte tendência ao capitalismo, sob pena de violação das garantias constitucionais já conquistadas, utilizando a ponderação dos valores em discussão, bem como, a proporcionalidade das medidas que devem ser tomadas em um caso prático sob a análise do julgador.
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Paulo Henrique Garcia Andrade[1]
Adalgisa da Silveira Sousa[2]
[1] Advogado militante na Comarca de Quirinópolis-GO, Coordenador e Professor de Processo Civil do Curso de Direito da Faculdade Quirinópolis – FAQUI, Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil.
[2] Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Advogada militante na Comarca de Quirinópolis-GO, Egressa da Faculdade Quirinópolis – FAQUI.
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