Artigos
A liberdade de não casar e o julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694 pelo STF
Começaram a namorar. Ela foi ao apartamento dele algumas vezes. Como dormia na residência do namorado algumas noites por semana, começou a deixar sua escova de dente naquele copinho que fica na pia do banheiro. Para seu conforto levou também suas pantufas para se deslocar dentro de casa no inverno. As coisas permaneceram assim por certo lapso temporal. Do ponto de vista jurídico, se poderia cogitar estarem já presentes elementos objetivos configuradores da união estável. Prevalecendo a tese de que à união estável devem ser imputados os mesmos e idênticos efeitos do casamento, a celebração deste não dependeria mais de prévia habilitação, proclamas, escritura pública, etc. Nada disso. Se a união estável for equiparada de forma uniforme e completa ao casamento, a sua celebração se daria, considerado o exemplo acima, com o emparelhamento das escovas de dente e com dois pares de pantufas colocadas ao lado da cama.
Dito de forma direta e menos metafórica, a equiparação pura, simples e total da união estável ao casamento liquida com os dois institutos jurídicos e fundamentalmente com a liberdade de não casar. Não é sem razão que muitos estão buscando no chamado "contrato de namoro" uma espécie de habeas corpus preventivo contra a intromissão do Estado, que invasivamente, por meio de regulamentação excessiva, casa pessoas, quando elas estão como que a dizer: "a gente só quer amar, só quer amar...".
Necessário, de início, afirmar a plena concordância com a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar com efeito de repercussão geral o Recurso Extraordinário nº 878.694. Ao tempo da redação desse texto, o julgamento do referido recurso ainda está em andamento, porém, foi suspenso em razão do pedido de vistas do Ministro Dias Toffoli. Mas, o resultado do julgamento, ainda que ao final não seja por unanimidade, já parece certo. Sete Ministros já votaram acompanhando o relator,[1] Ministro Roberto Barroso que julgou inconstitucional o art. 1.790 do Código Civil, para dar provimento ao recurso extraordinário, com a "afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: 'No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002'." O texto consta da proposta de Ementa consignada no voto do relator que já circula na Internet.
De fato, muitos civilistas que se dedicam com afinco ao Direito Sucessório já, há muito, apontavam as incongruências do art. 1.790 do Código Civil que produzia inegável discriminação ao direito sucessório dos conviventes,[2] depois que em relação a essa matéria avanços importantes haviam sido conquistados pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96 (Lei dos Companheiros e Lei dos Conviventes, respectivamente assim denominadas). O foco da presente reflexão não se põe sobre o mérito do julgamento do Recurso Extraordinário 878.694 que, em função da repercussão geral a ele imputada, consagrará relevante tese que vinculará os tribunais de todo o País. Depois que o Código Civil de 2002 havia esfacelado tal direito, fez-se justiça à companheira e ao companheiro sobreviventes, em matéria de direito sucessório.
Em que pese a convergência do subscritor desta reflexão com a tese que está se consagrando vencedora nesse importante e paradigmático julgamento do Supremo Tribunal Federal, uma questão ou um problema vem a lume com a referida decisão. Não falta quem, agora, pergunte: não havendo mais regulação do direito sucessório do(a) companheiro(a) no Código Civil, porque o único e canhestro artigo que regulava a matéria foi banido do ordenamento em razão de sua inconstitucionalidade, então, a(o) companheiro(a) supérstite ocupará a mesma e idêntica posição jurídica do cônjuge em matéria sucessória ou, o acórdão do STF com repercussão geral somente diz respeito à ordem da vocação sucessória, antes prevista no art. 1.790, sendo aplicável agora aos companheiros os critérios do art. 1.829, como faz expressa referência o voto do Ministro Relator? Ou, formulando a questão com maior precisão e concretude: Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, o(a) companheiro(a) ficaria absolutamente e em toda extensão equiparado ao cônjuge, em matéria sucessória, sendo por isso mesmo, guindado também à condição de herdeiro necessário, e, portanto, presumidamente incluído no rol do art. 1.845 do Código Civil que dispõe: "São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge"?
É a partir desse questionamento que se pretende colocar em discussão a própria concepção jurídica de união estável. Uma decisão da Corte Constitucional dessa magnitude põe em curso uma série de questionamentos que, por certo, nem sequer foram cogitadas nas discussões do caso em julgamento. Que os companheiros precisavam ter seu direito sucessório restaurado não resta dúvida. O que se põe sobre a mesa de debates, agora, é o tema da liberdade e do direito de autodeterminação que as pessoas efetivamente devem ter em relação aos efeitos que querem ver defluir de suas relações de conjugalidade sejam estas estabelecidas por meio do casamento ou da união estável.
I. Por uma Construção Autóctone da União Estável
Certamente deve ser lugar comum o entendimento de que a conjugalidade decorrente da união estável seja mais livre, flexível, informal do que aquela decorrente do casamento. A simples equiparação da união estável ao casamento a transforma em um arremedo de casamento, um casamento menor, retirando-lhe as peculiaridades de um instituto autóctone, que encontre sua razão de ser em si próprio em sua função histórica no sistema jurídico e não em regras próprias de outro instituto como o do casamento.
Gradativamente, a união estável, que constitui um fato social, uma conjugalidade informal, uma família sem matrimônio, foi sendo amoldada ao casamento, foi sendo absorvida e encampada pelo casamento. Faltou não só ao legislador, mas, também, tem faltado a alguns civilistas que se debruçam sobre o estudo do Direito de Família ousadia para pensar a união estável desvinculada do império do paradigma do casamento. Ao se lançar mão dos moldes do casamento para o tratamento da união estável se produz uma deformação desta última.[3]
O codificador foi o primeiro a produzir esse desserviço à união estável. O caput do art. 1.723 é uma reprodução quase exata do art. 1º da Lei 9.278/96 (Lei dos Conviventes), que tão bem concebeu e configurou juridicamente a união estável. Nesse primeiro passo andou bem o codificador. Mas, em seguida, desandou. Introduziu um § 1º ao art. 1.723, trazendo para a órbita da união estável os impedimentos do casamento. Presente qualquer uma das hipóteses de impedimento que tornam absolutamente nulo o casamento, com apenas uma única exceção, a união estável não se configura. No máximo, existirá o famigerado e discriminatório concubinato, liquidado pela Lei 9.278/96 e ressuscitado pelo art. 1.727 do Código Civil.
Esta é apenas uma mostra de como a legislação está maltratando a união estável. Porém, o tratamento inadequado não é somente da parte do legislador. No senso comum, tudo está levando a crer que a união estável se constitui por meio de um contrato fixado em escritura pública. O próprio CNJ por meio do Provimento Nº 37 de 07/07/2014, regulou o registro de união estável, no Livro "E", o qual deve ser feito pelo oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Trata-se, portanto, de uma espécie de casamentozinho. Agora, tem até um espaço especial para o seu registro no Registro Civil das Pessoas Naturais.
Evidente que a união estável, no Brasil, é um instituto diverso do Pacto Civil francês. O fato jurídico (lato sensu) constitutivo da união estável não é o contrato. No sistema jurídico brasileiro a união estável é um fato social que o Direito colhe para imputar-lhe efeitos jurídicos. Há razões históricas para que assim seja. A união estável, no Brasil, não é majoritariamente uma manifestação de refutação às formalidades e ao rigor do casamento, como ocorre em outros países. Aqui a união estável é um modo de constituir família para milhares ou milhões de pessoas que sequer cogitam sobre casamento. São famílias que simplesmente existem como tais, independentemente, de qualquer formalidade. Nos grandes bolsões de pobreza dos centros urbanos, esse modelo de família talvez seja o prevalecente.
Diante desta constatação impõe-se a necessidade de considerar a união estável um fato social, com os elementos caracterizadores já assentados pela doutrina: afetividade, durabilidade, continuidade, ostensibilidade ou publicidade, com a presença objetiva de fatores que evidenciem a intenção de constituir família.[4] A união estável existe ou não dependendo da constatação, no caso concreto, da presença desses seus elementos configuradores. Logo, é possível haver um contrato de união estável, feito por escritura pública e registrado no tal Livro "E" do Registro Civil de Pessoas Naturais e esta "união estável" não existir e não produzir qualquer efeito jurídico. E isso por uma razão simples: a união estável não tem a mesma natureza do casamento não se origina da celebração de um contrato. Por outro lado, ninguém pode dizer que um casamento regularmente celebrado e devidamente registrado não existe nem produz efeito algum porque os cônjuges "não vivem em casamento".
É de todo evidente ser impróprio transferir para a união estável os impedimentos do casamento, de tal sorte que, se presentes impeçam a configuração da união estável. O § 1º do art. 1.723 é uma aberração jurídica. A união estável é um fato. Se ele existe não se pode dizer que não existe. Negar a existência de uma família formada união estável entre pessoas que têm impedimento para o casamento corresponde a estabelecer um estatuto nefasto de exclusão.
Necessário assentar, também, que não só a natureza jurídica da união estável é distinta da do casamento, mas, igualmente, seus efeitos devem ser diversos. Como já afirmado, no Brasil, por razões históricas e sociais, esta forma de conjugalidade não pode ser confinada à manifestação da autonomia privada, formalizada em um pacto de união estável. Ela se constitui antes e independentemente da formalização do referido pacto. Este se presta tão somente para modular os efeitos patrimoniais deste tipo de relação familiar. Não é impossível, mas parece raro e mesmo estranho que uma união estável somente tenha início depois da celebração de um pacto que a regule.
Ainda que a união estável seja um fato social ao qual o Direito imputa efeitos, não é razoável nem muito menos recomendável que ocorra cerceamento da liberdade das pessoas em relação aos efeitos que querem para os relacionamentos amorosos e familiares que desejam estabelecer. Dito de outra forma: a regulação da união estável deve ser subsidiária.[5] Aos conviventes deve ser aberto o mais amplo espectro de possibilidades de regular sua própria relação e os seus efeitos. A norma deve ser protetiva para os vulneráveis, para os que carecem da regulação do Estado, para não ficarem ao desamparo. Todavia, a regulação da união estável não deve constituir uma camisa de força, que imponha às pessoas que não querem se casar os mesmos e idênticos efeitos do casamento.
A igualação da união estável com o casamento leva, necessariamente, ao cerceamento da liberdade de não casar. Assim, à união estável deve ser conferido um amplo campo de liberdade para modulação de seus efeitos, de modo que se os conviventes não fiquem subjugados a uma inexorável regulação do Estado sobre a relação que estabeleceram. A regulação está posta, todavia, de forma subsidiária. Os direitos que dela decorram devem ter natureza dispositiva e não obrigatória.
É possível um exemplo simples. Estabelecida união estável entre pessoas de idade avançada, um homem e uma mulher com mais de setenta anos. Há quem sustente que a esta união estável aplicar-se-ia o regime legal da separação de bens, previsto no art. 1.641 do Código Civil, de sorte, que eles não poderiam estabelecer qualquer pacto estabelecendo os efeitos da união estável. Logo, seria forçosa a absurda conclusão de que não poderiam sequer adotar, por meio de um pacto de união estável, o regime da separação de bens, para evitar a incidência da Súmula 377 do STF, visto que não desejam qualquer comunicação de bens em decorrência da união estável. Note-se que a simples transposição das normas atinentes ao casamento para a união estável podem gerar efeitos nefastos, cerceando a liberdade de uma união que deve ser livre e regulada apenas subsidiariamente, se os conviventes não dispuserem da forma que lhes aprouver.
Os exemplos poderiam se multiplicar, mas, necessário fixar atenção no problema colocado para esta reflexão: com a decisão do Supremo Tribunal Federal, o(a) companheiro(a) ficará absolutamente e em toda extensão equiparado ao cônjuge, em matéria sucessória, sendo por isso mesmo, guindado também à condição de herdeiro necessário, e, portanto, presumidamente incluído no rol do art. 1.845 do Código Civil, que dispõe "são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge"?
II. A Questão dos Herdeiros Necessários
Na vigência do Código Civil de 1916, tão somente os descendentes e os ascendentes estavam incluídos na lista dos herdeiros necessários. Com a entrada em vigência do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente foi guindado à condição de herdeiro necessário, emparelhando-se com os descendentes e com os ascendentes. Herdeiro necessário é aquele que não pode ser excluído da sucessão por força de disposição de última vontade do autor da herança. Ao herdeiro necessário fica assegurada a legítima ou reservatória. Portanto, ao elevar alguns herdeiros legítimos da condição de facultativos à condição de necessários, a lei limita a liberdade de testar do autor da herança.
A diferenciação entre herdeiros legítimos facultativos e necessários tem sua razão de ser vinculada ao dever de sustento que existe entre os familiares. Os pais têm o dever de sustento em relação aos seus filhos, da mesma sorte que os filhos devem ter o dever de sustento em relação aos seus pais. Não são raros os casos em que, na velhice, as pessoas não tenham como prover sua própria mantença e passem a depender do socorro dos filhos. É dessa relação de dependência e dever de mútua solidariedade que surge a restrição legal à liberdade de testar. A fortuna acumulada por aquele que tinha o dever de sustento, ao menos em parte, deve ser obrigatoriamente transferida àqueles que, nos termos da presunção legal, dele dependiam, isto é, os descendentes e os ascendentes.
Em razão dessa presunção legal de dependência e dever de mútua ajuda, havendo herdeiros necessários, o autor da herança não pode dispor da totalidade de seu patrimônio para quem ele desejar. A transmissão de metade de seu patrimônio líquido fica assegurada aos descendentes e na ausência destes, seus aos ascendentes. Ocorre que, o Código Civil de 2002 incluiu o cônjuge no rol dos herdeiros necessários. Não faltam aqueles que sustentam que esse foi um passo dado na contramão daquilo que a marcha dos fatos e circunstâncias históricas indicavam.[6] Muitas normas protetivas para a mulher faziam absoluto sentido à época do Estatuto da Mulher Casada. Era o ano de 1962. Mencione-se, por exemplo, o instituto dos bens reservados.[7] Em determinado momento histórico faz sentido a normatização protetiva, em outro, o que poderia ser proteção converte-se em cerceamento à liberdade ou mesmo perde o sentido.
Nesta direção, pode-se afirmar que a inclusão do cônjuge na condição de herdeiro necessário, atualmente, revela-se incongruente por algumas razões. Essa relação de dependência decorrente do modelo de família em que o marido figura como provedor e a mulher como administradora doméstica tende fortemente a ceder lugar a uma relação cada vez mais paritária, no sentido de autonomia econômica e independência profissional. Tanto assim é que, cada vez menos, por ocasião dos divórcios, são fixados alimentos em favor de qualquer um dos cônjuges. E, geralmente, quando devidos os alimentos, são estabelecidos a termo, isto é, por certo lapso temporal. Vê-se, portanto, que o cônjuge não pode ser enquadrado com justeza na presunção legal de dependência do falecido de modo a assegurar a ele o direito à reservatória, como aos descendentes e aos ascendentes.
Além, deste primeiro fator, há outro. A maioria dos casamentos é celebrado pelo regime da comunhão parcial de bens, vale dizer, pelo regime legal dispositivo, supletivo, de modo que, com a morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é devida a meação em relação ao bens adquiridos onerosamente na constância do casamento. O mesmo, com maior amplitude ainda, ocorre para o cônjuge sobrevivo, casado pelo regime de comunhão universal de bens.
Todavia, o problema maior da elevação do cônjuge à condição de herdeiro necessário se revela nos casos de famílias recompostas. Havendo filhos de casamentos ou outras relações anteriores, os nubentes querem que do novo casamento não decorra qualquer efeito de natureza patrimonial e este é um desejo legítimo. Por essa razão adotam o regime convencional da separação de bens, por meio de pacto antenupcial. Se ocorrer o rompimento do casamento pelo divórcio, de fato, não surgirá nenhum dever de partilha de bens decorrente do regime de bens adotado. Todavia, se um deles falecer, não poderá deixar testamento dispondo da totalidade dos bens para os filhos do casamento anterior. Se assim dispuser por testamento, este será ineficaz na parte que atingiu a legítima ou reservatória, que fica assegurada ao cônjuge sobrevivente em decorrência do disposto no art. 1.845 combinado com o art. 1.829, inciso I, ambos do Código Civil.
Essa inaceitável restrição à liberdade, levou o Superior Tribunal de Justiça a uma canhestra interpretação do art. 1.829 do Código Civil. A interpretação daquele Tribunal contrariava a larga e já consolidada interpretação doutrinária e jurisprudencial, liquidando o sistema estabelecido para os casos de concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido, porque o cerceamento à liberdade se apresentava como não razoável, não plausível, na verdade inadmissível. O Superior Tribunal de Justiça retrocedeu daquela solução que, de fato, não era só contra legem de forma localizada, posto que contrariava o sistema sucessório codificado.
Todavia, a elevação do cônjuge à condição de herdeiro necessário não deve prevalecer. Um conjunto significativo de constatações está a recomendar que se dê um passo atrás, para que se possa avançar em matéria de sucessão conjugal. Se o cônjuge voltar a ser herdeiro facultativo, todas as dificuldades e turbulências que já foram objeto de discussão em razão da ordem da vocação sucessória e da concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes do falecido desaparece. E não são perceptíveis consequências ou efeitos negativos que desaconselhem tal reforma.[8] Nada seria alterado na ordem de vocação sucessória, nem tão pouco no sistema de concorrência. Simplesmente, o cônjuge deixaria de ser herdeiro necessário. É certo, contudo, que tal mudança, que de forma alguma será um retrocesso, depende de alteração legislativa, que em uma incisão simples e nada invasiva, cortaria o cônjuge do rol de herdeiros necessários estabelecida pelo art. 1.845 do Código Civil.
Se para o caso do cônjuge essa modificação que se mostra tão benéfica dependeria de emenda legislativa, a sucessão do companheiro é passível de ser revolvida pela via interpretativa ou hermenêutica.
III. Companheiro é companheiro: mas seria herdeiro necessário?
Se da leitura que a doutrina e a jurisprudência fizerem do acórdão que resultará do julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694 pelo STF se concluir que o(a) companheiro(a) restou, absolutamente, equiparado(a) ao cônjuge, em matéria de direito sucessório, presumir-se-á, de forma inexorável, que é herdeiro necessário, mesmo que não conste como tal no rol do art. 1.845 do Código Civil. Sustenta-se, nesta breve reflexão, que tal entendimento se mostrará inadequado e com consequências inaceitáveis para quem não quer casar.
É imprescindível seja assegurado às pessoas um campo de reserva para a autodeterminação de suas vidas, mormente, no que se refere ao campo existencial ou coexistencial. A liberdade de não casar, isto é, de não desejar que os regramentos estritos do casamento incidam sobre uma determinada conjugalidade sem casamento é um valor a ser preservado. Os conviventes ao estabelecem uma pacto de união estável, regulando os efeitos patrimoniais desta conjugalidade devem ter maximizada sua liberdade.[9] Se para o casamento existe a regra segundo a qual "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver" (art. 1.639 do Código Civil), tal norma deve ser exponenciada em relação à união estável.
A forma que as pessoas, especialmente aquelas com a carreira profissional já estabilizada e vida econômica encaminhada, encontravam para evitar o cerceamento que a lei impõe aos casados, em matéria sucessória, era a opção pela união estável, com o estabelecimento do regime de separação de bens, por meio de pacto de união estável e a feitura de testamento. Esse era ainda um último caminho que restava àqueles que não queriam a transmissão patrimonial forçada post mortem, em razão de o cônjuge ter sido elevado à condição de herdeiro necessário.
Considere-se a hipótese de uma mulher que não quer ter filhos. É uma profissional exitosa que constituiu um patrimônio significativo. Seu pai já falecido, não deixou pensão por morte para sua mãe, que já tem idade avançada e da filha tornou-se dependente, em termos econômicos. A personagem dessa construção hipotética deseja constituir família, viver uma conjugalidade, mas, não quer casar-se, porque se falecer antes que sua mãe deseja que todo seu patrimônio seja transferido à genitora, para que esta tenha como manter-se. Pois bem, se o(a) companheiro(a) vier a ser considerado(a) herdeiro(a) necessário(a), nem união estável poderá essa hipotética mulher estabelecer, visto que ao companheiro sobrevivente seria assegurado a metade de todo seu patrimônio, porque concorrerá com a ascendente da morta independentemente do regime de bens adotado na união estável.
Essa é apenas uma das várias hipóteses do inaceitável cerceamento da liberdade de não casar, decorrente do fato de se considerar o companheiro herdeiro necessário. Se duas pessoas resolvem se casar há na lei limitações às quais se submetem, porque além de ser um negócio jurídico revestido de solenidade o casamento é minudentemente regulado. É, porém, necessário assegurar espaço para quem não deseja submeter-se aos efeitos estritos do casamento, isto é, àqueles que optam pela união estável.
A união estável não pode ser reduzida a uma espécie de subcasamento, com inequívoco cerceamento da liberdade[10] e das condições efetivas de autodeterminação das pessoas em questões vitais, relativas às situações subjetivas existenciais e coexistenciais com reflexo secundários na esfera patrimonial, mas igualmente relevante.
Antes da declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, muitos autores já vêm sustentando que o companheiro é tão herdeiro necessário quanto o cônjuge. Esta é a posição assumida por Cristiano de Farias e Nelson Rosenvald, que afirmam:
O art. 1.845 é de uma clareza meridiana ao prescrever que os herdeiros necessários são os descendentes, ascendentes e o cônjuge sobrevivente. Como se vê o companheiro e os colaterais até o quarto grau foram tratados, pelo texto de lei em vigor, como herdeiros facultativos e, por conseguinte, podem ser excluídos da sucessão por meio de testamento, uma vez que não possuem direito à legítima.
(...)
Todavia, entendemos que se o cônjuge for tratado como herdeiro necessário, o companheiro deve ser compreendido como tal, por força da proteção constitucional dedicada à união estável (CF, art. 226, §3º). Não visualizamos, com absoluta honestidade, qualquer argumento para colocar o companheiro supérstite em posição inferior ao cônjuge. Até mesmo porque conforme dados oficiais do Governo brasileiro, disponíveis na internet, a maioria das famílias do País é formada pela união estável, e não pelo casamento.[11]
Note-se que o argumento centra-se simplesmente na mera equivalência. Não se trata, como querem os autores citados, de colocar o companheiro em situação inferior à do cônjuge. Trata-se antes de prestigiar a diversidade dos institutos e de conceder maior âmbito de liberdade a quem vive em união estável. A simples igualação dos institutos é que se configura como critério de simplificação de complexidades, com resultados indesejados como se procurou demonstrar neste abreviado ensaio alinhado sob a perspectiva da liberdade, em seu sentido positivo.
O julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694 pelo Supremo Tribunal Federal, certamente se consagrará com louvável construção jurisprudencial de superação de injustiça, discriminação e preconceito. O futuro acórdão — que está, no momento da escrita deste texto, ainda em construção —suscitará diversas questões. Uma delas é a que se buscou pontuar nesta reflexão incipiente, mais com o intento de provocar o debate do que assentar uma tese interpretativa.
Em suma a proposição que se coloca para o debate pode ser assim enunciada: A declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil pelo Supremo Tribunal Federal e a consequente aplicação, por analogia, do regramento da ordem da vocação sucessória do cônjuge (art. 1.829) para o(a) companheiro(a) não implica a equiparação absoluta entre casamento e união estável em matéria sucessória, de sorte que o(a) companheiro(a) não é herdeiro(a) necessário(a), mas, sim, facultativo, considerado o rol taxativo fixado pelo art. 1.845 do Código Civil.
Marcos Alves da Silva[1]*
[1]* Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Civil integrante do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) do Centro Universitário de Curitiba - UNICURITIBA. Professor da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Professor da Fundação Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR). Vice-Presidente da Comissão Nacional de Ensino de Direito de Família do IBDFAM. Advogado em Curitiba - PR.
[1] Os Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia acompanharam o voto do relator Ministro Luís Roberto Barroso.
[2] Sobre o tema ver um dos pioneiros de sua abordagem: VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice e PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001 p. 225-237. Igualmente importante a obra de Luiza Nevares, professora e advogada que fez sustentação oral pelo IBDFAM, na condição de amicus curiae, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 878.694 perante o Supremo Tribunal Federal: NEVARES, Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Também sobre o tema entre outros se destaca o artigo: FACHIN, Luiz Edson. A inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 48 - out/dez, 2011. p. 241-258. Em seu livro sobre o direito hereditário do cônjuge e do companheiro Zeno Veloso faz ampla e detalhada crítica ao art. 1.790 do Código Civil: VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
[3] Sobre a crítica da concepção da união estável a partir dos moldes do casamento ver: SILVA, Marcos Alves da. Da monogamia: sua superação como princípio estruturante do direito de família. Curitiba: Juruá, 2013. p 130-140. A citação faz referência ao texto intitulado: "União estável: por uma conjugalidade desvencilhada do casamento".
[4] Paulo Lôbo destaca três elementos básicos que devem ser reconhecidos para caracterização de uma entidade familiar: "Em todos os tipos há características comuns, sem as quais não configuram entidades familiares, a saber: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do móvel econômico; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; c) ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese, n. 12, p. 42.)
[5] Sobre o tema merece especial destaque artigo da lavra do Presidente do IBDFAM: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em nome da liberdade, união estável tem de se manter diferente do casamento. Disponível em: CONJUR. http://www.conjur.com.br/2015-out-04/processo-familiar-liberdade-uniao-estavel-diferente-casamento#author - Acesso em: 11.09.2016.
[6] Sobre o tema ver: SILVA, Marcos Alves da. Cônjuge: herdeiro desnecessário. In: TEPEDIDO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson; LÔBO, Paulo. (Org.) Direito civil constitucional: a resignificação da função dos institutos fundamentais do direito civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito, 2014. p. 509-526. Também Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk e Rosalice Fidalgo Pinheiro evocando as críticas de Diogo Leite Campos, sem subscrevê-las na totalidade, alertam que "transformar o cônjuge em herdeiro forçado é acentuar ainda mais a comunhão patrimonial, perante um casamento cada vez mais flexível e temporário". Em seguida, sublinham: "o sentido da regra, contida no art. 1845 do Código Civil, perde-se em seus efeitos. Neste ponto, a crítica abre-se para enunciar, com Diogo Leite Campos, que a proteção do cônjuge sobrevivo é um interesse social legítimo, mas que deve ser assumido em termos sociais. Deixar que o casamento valha do ponto de vista pessoal, impondo-lhe rígidas consequências patrimoniais, no plano sucessório, é uma contradição jurídica e social". (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski e PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O direito de família na Constituição de 1988 e suas repercussões no direito das sucessões: convergências e dissensões na senda da relação entre Código Civil e Constituição. In: CONRADO, Marcelo e PINHEIRO, Rosalice Fidalgo (Coord.) Direito privado e constituição: ensaios para uma reconstrução valorizada da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 440 e 441). Semelhante posição é adotada por Euclides de Oliveira que, comungando do mesmo entendimento, assevera que à "colocação do cônjuge como herdeiro necessário, cabe adiantar séria crítica por constituir cerceio à liberdade testamentária e dificuldades no planejamento sucessório dos próprios cônjuges, quando da pretensão do titular dos bens fosse a de manter seu patrimônio dentro da classe de seus sucessores parentes, especialmente quando tem filhos de anterior união, tendo optado, em razão disso, pelo regime de separação convencional absoluta de bens." (OLIVEIRA, Euclides de. Direito de herança: a nova ordem da sucessão. 2. ed. São Paulo: Saraiva. 2009. p. 55-56 )
[7] O assim denominado Estatuo da Mulher Casada deu a seguinte redação ao art. 246 do Código Civil de 1916: "A mulher que exercer profissão lucrativa, distinta da do marido terá direito de praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e a sua defesa. O produto do seu trabalho assim auferido, e os bens com êle adquiridos, constituem, salvo estipulação diversa em pacto antenupcial, bens reservados, dos quais poderá dispor livremente com observância, porém, do preceituado na parte final do art. 240 e nos ns. Il e III, do artigo 242.
Parágrafo único. Não responde, o produto do trabalho da mulher, nem os bens a que se refere êste artigo pelas dívidas do marido, exceto as contraídas em benefício da família".
[8] Registre-se que existem importantes vozes que sustentam o acerto da elevação do cônjuge à condição de herdeiro necessário: Ana Luiza Maia Nevares apresenta a seguinte justificativa para a elevação do cônjuge à condição de herdeiro necessário: "Na família nuclear, o cônjuge é o único componente estável e essencial, uma vez que os filhos, em determinado momento, irão se desprender daquela entidade, formando a sua própria comunidade familiar. Por esta razão, o Código de 2002 alçou o cônjuge a herdeiro necessário em propriedade plena (CC/02, art. 1.845)" (NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 74). Por seu turno, Zeno Veloso postula que a elevação do cônjuge à condição de herdeiro necessário resulta de amadurecida reflexão. Diz o civilista: "Como já existem pessoas querendo mudar o Código Civil, para retirar do cônjuge a condição de herdeiro necessário, convém advertir que essa qualidade atribuída ao cônjuge não foi fruto do acaso, de mera simpatia, mas o resultado de uma lenta e segura evolução, e já vinha sugerida pelas mais autorizadas vozes da doutrina brasileira, além de representar a solução seguida nas legislações das nações civilizadas, como acima indiquei, embora com algumas variações, diferentes medidas e valores." (VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 28) Em que pese a sempre autorizada, reconhecida e respeitada opinião do autor em matéria sucessória, a força do tempo e dos fatos não pode ser desconsiderada em homenagem a construções pretéritas e nem tão pouco o Direito pátrio deve ser servil à legislação das ditas "nações civilizadas". Responder ao tempo presente com soluções legislativas que atendam a demanda por liberdade parece ser hoje uma necessidade cogente. O direito sucessório dos cônjuges deve ser tutelado apenas subsidiariamente, caso não queiram eles exercitar a liberdade de dispor que lhes aprouver em relação ao patrimônio, inclusive para depois da morte.
[9] Sobre a inerente liberdade na união estável, escreveu Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk: "A Constituição de 1988 não é, pois, nessa matéria, simples artífice da criação de um novo modelo jurídico de família. Para além disso, ela gerou uma ampliação da liberdade juridicamente protegida em matéria de família, sobretudo no que tange à união estável, que deixa de ser pensada apenas em termos de liberdade negativa para ter juridicamente reconhecida a liberdade positiva que em seu âmbito pode ser exercida". (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 331)
[10] Sobre a liberdade aplicada às relações familiares, sinaliza Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk: "Essa liberdade é mais ampla: é a liberdade que se vive, na qual se constroem compromissos recíprocos que não cabem normalmente em um contrato ou em um pacto, mas se constituem no comportamento que forja a vivência comum. Exercer a liberdade com caráter normativo não é só contratar: é também viver a liberdade (positiva) em relação, e dela poder extrair posições juridicamente sustentáveis e oponíveis. A liberdade positiva vivida não é menos jurídica do que a liberdade positiva inserida em um negócio jurídico". (RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 335).
[11] FARIAS, Cristiano de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Sucessões, (V. 07). São Paulo: Atlas, 2015. p. 26.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM