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Novo CPC: O Princípio da Cooperação à luz da pulsão de morte. Freud explica?
“Cooperai-vos, uns com os outros”...
Por mais que não exista um mandamento bíblico ipsis litteris como esse, observa-se pela redação do art. 6º do Novo CPC que haverá, em breve, a determinação expressa de que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
E em que consistiria essa cooperação? Quais seriam esses sujeitos?
Leonardo José Carneiro da Cunha [1] e Eduardo Talamini[2] compartilham a ideia de que a cooperação adviria do direito material, especialmente por influência das cláusulas gerais como boa-fé e abuso do direito (movimento de eticização do processo).
Vale destacar que a cooperação – ou colaboração – processual é tão antiga quanto o próprio processo, e tem sua gênese intimamente ligada ao princípio do contraditório.
Como consta na literatura de Ovídio Batista e Fábio Luiz Gomes[3], desde o direito romano primitivo, a presença do demandado no processo era questão imposta, que ensejava, até mesmo, sanção pelo pretor romano - havia uma disposição que “obrigava” a presença do demandado no litígio, mesmo que este, por rebeldia, não quisesse nele atuar.
Essa “obrigação” decorria da necessidade da formação bilateral da relação processual, a fim de que o julgador, na presença do demandado dito “rebelde”, pudesse obter as informações e elementos necessários para a resolução do conflito, dada a característica da dialeticidade do processo.
O juiz, na sua função de julgar, deveria sempre buscar os fatos e, a partir deles, proferir seu julgamento. A busca dos fatos tornava-se necessária porque o juiz não os viveu. Quem os viveu foram as partes e, pela ausência da qualidade de onisciência do julgador, os fatos necessitam a ele ser entregues. Natural, portanto, que fossem elas as fornecedoras diretas deles, em uma estreita colaboração/cooperação com o juiz – o que era/é imprescindível para a própria função do julgador.
Dessa forma, a necessidade de cooperação para com o julgador, desde o direito romano primitivo, é uma característica vinculada aos processos embasados no contraditório - cooperação, para com o julgador, a fim de permitir a ele o exercício da função jurisdicional[4].
Nesse ponto, residiria o denominado princípio da cooperação no processo, princípio natural a todo processo litigioso como aduz Francesco Carnelutti[5].
Pensando dentro da atual sistemática do CPC/73, é possível afirmar que, com base no modelo constitucional do processo (Estado Democrático de Direito), o princípio do contraditório deve ser pensado a partir da cooperação e do diálogo entre as partes, a fim de que o Estado-juiz decida somente após terem sido disponibilizadas as mais amplas possibilidades de participação no processo[6].
E o que mudou, então, a partir da sistemática do Novo CPC?
Aparenta ser consenso dentre os juristas de que houve um verdadeiro reforço desse modelo constitucional do processo, tendo como diretriz a cooperação no sentido das partes para com o julgador – e vice-versa, como uma verdadeira “via de mão-dupla” -, aumentando (e melhorando, por assim dizer), o campo do diálogo entre tais[7], a fim de que haja a plena prestação jurisdicional, com a realização do direito material.
Ao analisar o instituto, muitos citam as lições do jurista e professor português Miguel Teixeira de Sousa, que explicita a cooperação como uma soma de deveres – principalmente destinados aos magistrados - que envolve desde prestar esclarecimentos[8], como também de consultar[9] a parte quando necessário, prevenindo-a[10] e a auxiliando[11]. Nessa linha, esclarecedoras sãos as lições de Daniel Mitidiero[12].
Assim, como dito, aparenta ter havido um verdadeiro reforço do modelo constitucional de processo, onde a cooperação se daria entre as partes e o juiz.
Mas, e as partes “entre si”? Haveria, também, o dever (ou ainda a possibilidade) da aplicação da cooperação processual entre elas?
Em que pese o próprio código prever algumas hipóteses de cooperação entre as partes adversas - como, por exemplo, na escolha comum de perito para a realização da perícia “consensual” [13]-, a quase totalidade das vozes se dá no sentido da impossibilidade natural da cooperação entre elas.
Essa impossibilidade é tão antiga como a própria cooperação processual: a situação assumida pelas partes, dentro de um conflito materializado pelo processo, principalmente no que se refere ao estado psicológico delas, não condiz com uma postura normalmente altruística, onde uma parte visaria a cooperar com a outra, de forma honesta, sincera e fidedigna.
A tendência das partes, em razão dos ânimos acirrados por uma disputa[14], muitas vezes, visa apenas ao resultado final do processo – resultado positivo –, sem que haja uma preocupação maior, de ordem moral, com meios realizáveis para que tal fim seja alcançado. Como se, por ser um jogo, ou, ainda, uma batalha travada entre as partes[15], a regra seria “não ter regras”, valendo tudo para a obtenção da vitória.
E da onde viria essa impossibilidade de uma cooperação plena dentro do processo? Aqui, pegando emprestado um dos conceitos basilares da psicanálise para responder a questão, pode-se citar como fundante para a impossibilidade dessa cooperação plena a figura das pulsões, mais precisamente a pulsão de morte.
Antes que o leitor tenha uma resistência aceitável à terminologia, comecemos pela pulsão: o que seria uma pulsão? Em brevíssima síntese, Freud ensina que há no ser vivente uma força vital que faz com que o ser se mova[16]. Faz com que ele queira respirar, namorar, escrever livros e artigos, alimentar-se. É uma força que poderia ser denominada como força vivente[17]: “... carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente ...”[18]
Assim, no texto “além do princípio do prazer” (1920)[19], aliado a figura das pulsões de vida[20] - já trabalhada por ele em textos anteriores -, Freud introduz a ideia da pulsão de morte: “O quadro da última teoria freudiana das pulsões, designa uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõem às pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico”[21].
Essa pulsão, quando dirigida para o “exterior da psique”, manifestaria sob a subespécie da pulsão de agressão[22], cuja finalidade seria a da destruição do objeto externo – como se decorresse dessa pulsão todo o dinamismo de atos de um sujeito pensado a partir da vasta dimensão de sentimentos destrutivos possíveis do ser humano (raiva, ira, ódio, etc.).
Para Freud, ambas as pulsões (de vida e morte) estariam não apenas interligadas, mas sim amalgamadas, acompanhando o sujeito por toda a sua vida – em toda e qualquer manifestação consciente deste sujeito, haveria uma certa dose de ambas as pulsões: “Aquilo com que deparamos nunca são, por assim dizer, moções pulsionais puras, mas misturas de duas pulsões em proporções variadas”[23].
Nesse sentido, tem-se como natural do ser humano, classificado como sujeito do inconsciente, ter suas porções ou doses de manifestação conscientes decorrentes da pulsão de morte. Essas “doses” seriam aguçadas quando presentes ambientes de rivalidade ou conflituosos, como, por exemplo, o processo judicial.
É claro que não se justificaria, apenas por ser da substância do sujeito do inconsciente a existência dessa pulsão perpétua, a exteriorização de toda e qualquer manifestação destrutiva. Se faz necessário o devido controle dessas doses seja para ser possível a vida em sociedade, seja ainda dentro de um processo, uma vez que não se poderia permitir eventuais abusos.
Todavia, a cooperação “plena”, imposta ao sujeito em um ambiente conflituoso, mesmo que em algum momento possa se legalizado no nosso sistema, estaria contrária a essa substância própria do sujeito, haja vista a impossibilidade de ser “erradicada” a atuação desse tipo de pulsão.
O que pode ser possível, a partir desse cenário psicanalítico, é a atuação mitigada do princípio da cooperação entre as partes – longe de se atingir a plenitude -, visualizando-se, para tanto, algumas hipóteses de “trabalho em conjunto” possíveis.
Desta breve reflexão, conclui-se que, se o comportamento das partes em juízo fosse uma narrativa, a cooperação processual entre as partes viria após o ‘capítulo 01’ – capítulo onde fossem coibidas as posturas processuais ímprobas e de má-fé -, e antes do capítulo Y – capítulo, sem número ainda definido, mas que representaria o limite entre a utópica cooperação plena de partes adversas e a supressão total da pulsão de morte.
PS: nessa narrativa caberia ainda um capítulo cujo título abordaria o tema da “Conciliação”.
Rodrigo D'Orio Dantas é Psicanalista formado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (CEP-SP). Advogado, mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil na mesma universidade.
REFERÊNCIAS
[1] In http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-cooperacao-no-processo/ (consultado em 05/10/2015).
[2]http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI226236,41046-Cooperacao+no+novo+CPC+primeira+parte+os+deveres+do+juiz (consultado em 05/10/2015).
[3] SILVA, Ovídio Batista da; GOMES, Fábio Luiz. Princípios Fundamentais do Processo Civil. SP:RT, 4ª ed., p. 56.
[4] “A função jurisdicional somente poderá ser desempenhada satisfatoriamente pelo magistrado, se este contar com a colaboração das partes (autor e réu) através da formulação de suas razões, o fornecimento de informações e a produção de provas. O contraditório presta-se justamente, de início, para a manutenção do processo como fenômeno dialético, necessário para que ambos os litigantes tenham no decorrer da atividade processual as mesmas condições para a defesa de seus interesses, já que sujeitos parciais da relação jurídica processual.” Gil Ferreira de. Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa no Processo Civil Brasileiro. SP:Juarez de Oliveira, 2003, p. 156/157
[5] Carnelutti, Francesco. Como se faz um processo. SP:JGEditor, 2003, p. 69.
[6] Bueno, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Teoria do direito processual civil. SP:Saraiva, 2007, vol. I, p. 108.
[7] Mazzola, Marcelo. In: http://justificando.com/2015/06/08/dever-de-cooperacao-no-novo-cpc-uma-mudanca-de-paradigma/. (Consultado em 05/10/2015).
[8] Nas causas em que se tratar de matéria complexa, o juiz poderá designar audiência para que as partes integrem/esclareçam as suas alegações (Novo CPC, art. 357, § 3º).
[9] A proibição de proferir decisões surpresas (Novo CPC, art. 10).
[10] A oportunização obrigatória à parte para que corrija vício sanável antes de ser proferida decisão sem julgamento de mérito (Novo CPC, art. 317).
[11] A possibilidade se ampliar o prazo quando se tornar complexo o seu cumprimento (Novo CPC, art. 139, IV e 437, § 2º).
[12] “ O princípio da colaboração estrutura-se a partir da previsão de regras que devem ser seguidas pelo juiz na condução do processo. O juiz tem deveres de conhecimento, de diálogo, de prevenção e de auxílio para com os litigantes. Esses deveres consubstanciam as regras que estão sendo enunciadas quando se fala em colaboração no processo”. Marinoni – Arenahrt – Mitidiero. Código de processo Civil comentado. SP:RT, 2015, p. 102.
[13] “Manifestações seguras do princípio da cooperação nessa perspectiva estão no dever de declinar o endereço para onde as intimações deverão ser encaminhadas, atualizando-o ao longo do processo (art. 77, V); na viabilidade genérica de realização de ‘negócios processuais’ (art. 190); na possibilidade dos advogados efetivarem intimações ao longo do processo (art. 269, §1º); na identificação consensual das questões de fato e de direito pelas partes e sujeito à homologação judicial (art. 357 2º) e na escolha em comum, pelas partes, do perito para a realização da chamada ‘perícia consensual’ (art. 471), apenas para citar alguns dos diversos exemplos”. Bueno, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. SP:Saraiva, 2015, p. 86.
[14] Francesco Carnelutti afirma que o processo poderia ser comparado a uma disputa. In: Gioco e Processo. Rivista di Diritto Processuale, Pádua, Parte II, p. 302-306, 1959.
[15] “O processo é, de certo modo, um campo aonde se trava batalha, no sentido figurado. A lide exprime uma luta, em que as partes, cada uma de seu lado, tudo fazem para tirar vantagens, para ver triunfante a sua pretensão, o seu direito. Pela própria existência do conflito de interesses nela contido, o processo é campo propício para desenvolvimento da astúcia, vizinha próxima da fraude, da má-fé. Não é de admirar que cada um dos contendores procure sacar do processo o máximo de proveito pessoal.” Milhomens, Jônatas. Da presunção de boa-fé no processo civil. RJ:Forense,1961, p. 42.
[16] Para Freud, as pulsões são forças internas portadoras de excitação, das quais o organismo não pode escapar, sendo mobilizadoras do funcionamento do aparelho psíquico. Para essa proposta teórica, a pulsão de vida é de caráter construtivo e tende a autoconservação - age em função de manter o prazer e evitar o desprazer.
[17] As pulsões sexuais, juntamente com as pulsões sublimadas e as pulsões de autoconservação, foram reunidas sob o nome de Eros, e, dessa forma, foram colocados a serviço da vida e do amor (Rocha, Zeferino, 2000. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, p. 99)
[18] ROUDINESCO, Elisabeth; LAPON, Michel. Dicionário de Psicanálise. RJ: Zahar, 1998. p. 628.
[19] Freud, Sigmund. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 11/75..
[20] Englobaria as Pulsões de autoconservação e as Pulsões sexuais.
[21] Laplanche Pontalis. Vocabulário de psicanálise. SP:Martins Fontes, 2001, p. 407.
[22] “Designa para Freud as pulsões de morte enquanto voltadas para o exterior. A meta da pulsão de agressão é a destruição do objeto”. Laplanche Pontalis. Op. Cit., p. 397.
[23] Laplanche Pontalis. Op. cit., p. 410.
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