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Vingança pornográfica – violência moral e psicológica contra as mulheres
O Brasil é uma catedral do atraso quando se trata de respeito e consideração pelas mulheres. Os costumes são medonhos.
Um relatório da ONU, publicado em março/2015, que avaliou a igualdade de gênero em 167 países, concluiu que levaremos 81 anos para atingir a igualdade no mercado de trabalho e 50 anos para atingir a igualdade parlamentar.
Um prognóstico bastante otimista, no meu entender.
Digo isso porque, no mercado de trabalho, nós, mulheres, temos alguns dos piores empregos e, mesmo quando ocupamos os mesmo cargos que os homens, ganhamos em média 30% menos. E esse fosso salarial é um fenômeno mundial.
Já no meio parlamentar, apenas 9.9% dos assentos no parlamento brasileiro são ocupados por mulheres. Um número bastante decepcionante.
Além disso, no ambiente doméstico e familiar, ainda há um longo, longuíssimo caminho a se percorrer, em busca da igualdade de gênero.
E uma das facetas mais cruéis dessa desigualdade é justamente a violência doméstica contra a mulher - um conflito acobertado pelo manto do silêncio, no mundo inteiro.
Por que esse silêncio? Porque o algoz não é um monstro, um vilão estranho e temível, escondido em becos escuros.
Quem ofende, humilha, bate, castiga e até mata é alguém que frequenta o universo dos afetos mais próximos da vítima: o marido, o companheiro, o amante, o namorado, o pai, o filho, o irmão, o ex.
Segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Avon em 2011, 6 em cada 10 brasileiros conhecem alguma mulher que foi vítima de violência doméstica.
Ou seja, mais da metade da população conhece um caso assim. Mas geralmente não se mete. Quem aqui nunca ouviu que “em briga de marido e mulher, sapo de fora não mete a colher?”
É uma frase machista, gravada no nosso imaginário, que busca minimizar a importância da violência do homem contra a mulher, que é uma verdadeira doença social.
Sim, estudos apontam que o problema dos homens agressores não é psicológico ou psiquiátrico, não é caso para terapia, mas um problema sociológico. Uma doença social. Os agressores são gente como a gente, o machista nosso de cada dia.
No MS, no mês de fevereiro/15, houve um caso rumoroso de violência doméstica, onde um homem, antes de matar a sua ex-mulher, pediu licença para os vizinhos!
A ex-mulher se encontrava justamente na casa desses vizinhos, fugindo dele.
Aí ele chegou e disse: - “Olha, vocês me deem licença, mas eu vou matar aqui a Fulana, e ela sabe o porquê!”
E efetivamente executou a mulher a tiros, na presença de todos.
Quando é assim, não falta uma testemunha bem-intencionada para dizer na Justiça que o assassino era ótimo, super tranquilo, e que nunca fez mal a ninguém. A não ser, é claro, à sua falecida esposa, que certamente não partilhava da mesma opinião que a testemunha.
Por conta disso, os EUA estão em uma reflexão tremenda sobre os programas para homens agressores. Atualmente, eles fazem palestras de reeducação, mas com pouco resultado. No Brasil, é muito raro ter programa desse tipo. Depende de uma mudança social maior, que ainda está por vir.
Os programas que poderiam ter algum êxito são aqueles que contassem com antropólogos e sociólogos capacitados em gênero. Seria um começo.
Porque ninguém muda da noite para o dia, ainda mais quando o meio social não dá suporte. É um processo lento.
Então, os casos se somam, mas como ocorrem entre quatro paredes - um espaço privado, onde muitos acreditam que o Estado não deve intervir -, essas ocorrências acabam quase invisíveis para as autoridades. Mas elas estão lá, cada dia mais.
A edição da Lei Maria da Penha representou um movimento legislativo claro no sentido de tirar esses casos da invisibilidade e de assegurar às mulheres agredidas o acesso à reparação, à proteção e à justiça.
Mas uma lei nunca é suficiente para mudar a maneira como as pessoas pensam.
Não basta o esforço legislativo, tem que haver uma mudança na cultura.
E a nossa cultura ainda é eminentemente patriarcal. São os homens que literalmente governam o mundo.
O interessante é que existem mais mulheres do que homens – somos 52% da população mundial. Mas os cargos de poder e prestígio ainda são ocupados pelos homens.
A nigeriana Wangari Maathai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, em 2004, se expressou muito bem e em poucas palavras quando disse que, quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.
E o lugar feminino – o doméstico – tornou-se, em virtude da dependência da mulher em relação ao homem, para seu sustento e de sua prole, um espaço de submissão, onde o controle social se dá principalmente pela regulação moral da sexualidade feminina.
Ao longo da história, as mulheres foram mantidas sob um rígido código moral, bem diferente do reservado aos homens.
Querem um exemplo histórico disso?
Praticamente todo mundo já ouviu a célebre frase: “À mulher de César não basta ser honesta, ela tem que parecer honesta”.
É uma das frases mais repetidas de todos os tempos e tem sido aplicada às mais diversas situações, mas a maioria não sabe dizer de onde veio.
A frase original remonta a um escândalo ocorrido em Roma, por volta do ano de 60 A.C., envolvendo o homem mais poderoso do mundo, sua jovem e bela mulher e um nobre e atrevido pretendente.
Para que se entenda o contexto desta frase no artigo, é preciso retroagir uns anos na história.
Julio Cesar, o Imperador romano, havia sido acusado falsamente na juventude de ter tido uma relação homossexual com o rei Nicomedes, da Bitínia, a fim de garantir o apoio dele a uma empreitada romana – mentira essa que foi explorada por seus adversários durante décadas.
César, então, seguiu o conselho da sua mãe, Aurélia, de responder a estes adversários seduzindo as suas esposas de modo público e notório. O que ele fazia com reconhecido êxito.
Além das inúmeras amantes, Cesar também teve várias esposas - entre elas, Cornélia, Pompéia e Calpúrnia -, razão pela qual temos duas versões para a origem dessa frase.?
A primeira versão teria ocorrido com a segunda esposa de Cesar, a bela Pompéia, durante uma festa da deusa romana Bona Dea.
Essa era uma festa reservada exclusivamente às mulheres, da qual os homens não podiam participar.
De acordo com a história, Pompeia organizou essa celebração e um nobre chamado Clódio (um jovem rico e atrevido, que estava apaixonado por Pompeia) se disfarçou de mulher, de tocadora de lira, e entrou clandestinamente na festa, na esperança de se aproximar e tentar seduzir a bela Pompéia.
Mas como Clódio se perdeu pelos corredores do palácio, ele acabou sendo descoberto por Aurélia, a mãe de Cesar, e foi desmascarado e preso antes de sequer chegar perto de Pompeia.
Após o julgamento no Tribunal (sim, houve um julgamento, porque Cesar queria se divorciar da mulher), foram ambos, Pompéia e Clódio, inocentados da acusação.
Mesmo assim, César se separou da mulher afirmando que ela era inocente, mas que a imagem pública dele, Cesar, ficaria maculada se sua esposa, além de honesta, não parecesse honesta.?
A segunda versão teria ocorrido com a esposa Calpúrnia.
De acordo com a história, César, que mantinha um caso amoroso com Cleópatra em Alexandria, teria encarregado um aliado de voltar a Roma e espalhar o boato de que Calpúrnia o estava traindo.
Ao argumento do aliado de que isso era mentira, César foi enfático na ordem para espalhar o boato.
Alguns meses depois, retornando a Roma, César entrou em casa, chamou a esposa e disse-lhe que queria o divórcio. Tendo Calpúrnia indagado o motivo, ele lhe respondeu: “porque dizem que estás me traindo”.
A esposa fiel argumentou que isso era não era verdade. Ao que ele retorquiu: “à mulher de César não basta ser honesta, ela tem que parecer honesta”.?
Independente de qual versão seja a verdadeira, o caso mostra com clareza solar o machismo dominante, pois temos 2 pesos e 2 medidas: enquanto Cezar tinha várias amantes de forma pública e ostensiva, a mera suspeita de traição que pesou sobre sua mulher levou-a ao ostracismo e ao repúdio do marido.
Vejam que é na moral sexual da mulher que a cultura machista concentra mais intensamente a carga de discriminação, gerando desigualdade.
A vigilância social sobre a vida sexual das mulheres foi progressivamente mitigada a partir da segunda metade do século XX, mas ainda subsiste hoje, de forma velada, tanto no senso comum, como na escola, na igreja, no mercado de trabalho, na mídia, no sistema de justiça, na família, etc.
As famílias zelam até hoje pela virgindade das filhas mulheres, que tem que “se dar ao respeito”.
E em pleno século XXI, ainda existe no imaginário masculino “mulher para transar” e “mulher para casar”.
A mulher é impedida de exercer livremente a sua sexualidade, da mesma forma que os homens, pois, se assim o fizer, será julgada pelo meio social.
Uma das formas de controle sobre a sexualidade da mulher é a estigmatização através da linguagem.
Os apelidos pejorativos são numerosos – piranha, galinha, safada, vagabunda, biscate -, mas a abreviatura que virou palavrão ainda é o signo mais agressivo utilizado para depreciar a mulher por sua conduta sexual: puta.
Numa mesma situação, o homem é pegador e a mulher, puta.
Para combater esse problema, que é histórico e cultural, a Lei Maria da Penha conferiu uma proteção importante à integridade psicológica da mulher, prevendo vários tipos novos de violência, entre os quais a Violência Moral.
A Violência Moral é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria contra a mulher.
Por óbvio, essas condutas vêm sendo enquadradas nos clássicos crimes contra a honra do Código Penal, de calúnia, difamação e injúria. Todos crimes privados, mesmo na Lei Maria da Penha.
Esse modelo acaba inviabilizando a punição dos crimes.
No Brasil, mesmo que as injúrias sejam reiteradas trata-se de crime de ação penal privada. E o problema com isso é que o ônus fica todo com a vítima, que tem que procurar um advogado e ajuizar a queixa-crime em seis meses. E geralmente as vítimas não são orientadas a fazer isso nas Delegacias de Polícia, a procurar as Defensorias Públicas ou um advogado particular, para ajuizar a queixa-crime. E a decadência é implacável.
Além disso, os tipos penais em vigor são insuficientes para abarcar a moderna noção de ofensa moral e psicológica contra a mulher.
Principalmente se pensarmos nos casos de VINGANÇA PORNOGRÁFICA, ou em inglês “REVENGE PORN”, que consiste no compartilhamento pela internet de fotos e videos íntimos, com o propósito de causar a humilhação extrema da vítima.
Imagine você, nu, na internet, em pleno ato sexual! E você não autorizou a divulgação das imagens ou do video!
Pois é, as mulheres são as principais vítimas desse tipo de conduta.
Segundo uma pesquisa feita pela ONG Safernet, em 2014, 81% desses casos foram com mulheres.
Esse material erótico é muitas vezes capturado e armazenado com o consentimento da parceira, que nutria, porém, a expectativa de privacidade sexual.
O ex viola essa confiança e divulga o material na internet, geralmente por motivo de humilhação ou vingança.
Como o conteúdo disseminado na internet é de propagação fácil e incontrolável, ele causa danos graves e, por vezes, irreparáveis às vítimas, como demissão, reprovação escolar, banimento social, mudança de cidade e até o desenvolvimento de doenças psíquicas que podem levar à depressão e ao suicídio, especialmente entre as mais jovens.
No ano passado, 3 jovens brasileiras se suicidaram por conta de vingança pornográfica, sendo 2 delas por enforcamento.
Uma vez que ocorre o vazamento desse conteúdo, é quase impossível deter a sua propagação.
Há sites especializados em divulgar esse tipo de material. Em minutos, milhares de pessoas têm acesso, salvam e compartilham.
As imagens circulam, rendem comentários os mais agressivos, ficam na rede para sempre.
As vítimas têm que lidar com isso para o resto das suas vidas, pois as imagens estão ali, sempre a um google de distância.
E enquanto as vítimas são expostas a esse linchamento moral, dentro e fora das redes, os agressores ficam preservados pelo anonimato virtual.
Infelizmente, é na impunidade que a vingança pornográfica encontra um poderoso estímulo para se propagar pelas redes.
A falta de leis específicas e de delegacias especializadas faz com que o tempo de resposta da Justiça seja inversamente proporcional à rapidez com que um vídeo íntimo se espalha pela internet.
Segundo as vítimas, “buscar por justiça é muito frustrante. O rapaz vai lá, posta fotos e videos, a menina fica com vergonha de denunciar e, mesmo quando denuncia, ele não vai preso, nada acontece”.
De fato, ninguém vai preso por esse crime no Brasil.
O que diz a lei brasileira?
A legislação brasileira permite o enquadramento dessa conduta sob a ótica da responsabilidade civil (dano moral e material) e criminal.
Na ESFERA PENAL, como não tem tipo penal adequado, essa conduta acaba sendo enquadrada no delito de perturbação da tranquilidade ou no crime de difamação, que possuem penas brandas demais para a gravidade da conduta.
O delito de perturbação da tranquilidade tem pena de prisão simples de 15 dias a 2 meses; e o crime de difamação tem pena de detenção de 3 meses a 1 ano, e multa.
Além disso, ambos os tipos penais são obsoletos, inadequados para a vingança pornográfica, porque não acompanharam a evolução dos tempos e das tecnologias de informação e comunicação.
A perturbação da tranquilidade está prevista na Lei de Contravenções Penais, um Decreto-lei de 1941! É um tipo penal genérico, que não contempla a singularidade da matéria.
E a difamação, crime contra a honra previsto no Código Penal de 1940, por óbvio, também não alcança as dimensões da cyber cultura.
Com relação à difamação, temos ainda um problema adicional: prosseguir tipificando essa conduta como difamatória, vale dizer atentatória à honra, é reforçar o viés machista com que a vida sexual da mulher é julgada no meio social.
Ela está difamada por quê? Por que estava fazendo sexo com o namorado? Se for por isso não deveria, pois isso não desqualifica a honra de mulher nenhuma.
Vejam que o bem jurídico a se proteger não é a honra da vítima, mas, sim, a sua integridade psicológica, por ter tido a sua intimidade e privacidade violadas e expostas à apreciação pública na rede, onde não se tem qualquer controle da disseminação.
Para suprir a lacuna penal nos casos de vingança pornográfica, há vários Projetos de Lei atualmente em trâmite no Congresso Nacional.
Um deles é de autoria do ex-Deputado Federal Fábio Trad, que cria o novo tipo penal de “Violação de Privacidade”.
A pena proposta é de 2 (dois) a 6 (seis) anos de reclusão, mais compatível com a gravidade da conduta e a extensão dos danos causados às vítimas.
Esse projeto está em apenso a um outro Projeto de Lei, de 2013, de autoria do então Deputado e ex-jogador Romário, que foi recentemente aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Familiar da Câmara dos Deputados e deve seguir para o Senado.
Esse segundo projeto é o que tem maiores chances de aprovação.
Ele cria o novo tipo penal de “Divulgação Indevida de Material Íntimo”, que criminaliza a conduta de quem divulga fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato sexual, sem autorização da vítima.
A pena proposta é de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção e multa, podendo haver aumento de um terço se o objetivo for vingança ou humilhação da vítima.
Para justificar o projeto de lei, o então Deputado Federal, hoje Senador Romário, assim se pronunciou: “Nossa sociedade costuma julgar as mulheres. É como se o sexo denegrisse a honra delas.”
E continuou: “A postura da sociedade, principalmente dos homens, é muito cruel. As mulheres que têm sua vida íntima exposta começam a ser abordadas de forma vulgar, recebem até convite para prostituição”.
Perfeito, Romário! Bola dentro!
A grande desvantagem do projeto do Romário em relação ao do Fábio Trad é que ele não resolve o problema do consenso na captura das imagens.
Isso porque, nos casos de vingança pornográfica, a captura da imagem geralmente é consentida. Na maioria das vezes, quem captura a imagem é a própria vítima. Mas ela tinha a expectativa de privacidade. Não esperava que a sua nudez fosse exposta na rede para todo mundo ver.
O projeto do Fábio Trad enfrenta isso no parágrafo único, dizendo que é crime mesmo que a vítima tenha consentido na captura.
Já no projeto do Romário, como isso não está claro, pode dar margem a atipicidade. Pode abrir as portas para uma série de anulações, em grau de recurso.
Tribunais machistas poderão dizer que foi a vítima quem enviou a foto, e, a partir do momento que a enviou, perdeu a expectativa de privacidade.
Se houvesse alguém com interesse no Congresso Nacional poderia mesclar as duas redações.
Alguns questionam se a “Lei Carolina Dieckman”, aprovada em 2012, serviria para enquadrar a vingança pornográfica.
Não serviria. Aquela lei tipificou a conduta de quem invade computador alheio e subtrai dados, para obter vantagem ilícita. Mas não previu especificamente a conduta de “vingança pornográfica”, quando não há a invasão e subtração das imagens, mas sim a veiculação sem consentimento.
Essa lei pega hackers e técnicos que bisbilhotam as máquinas que consertam, mas não atinge ex-namorados.
Então, é uma lei com pouco efeito prático, que poderia ter previsto a vingança pornográfica, mas não o fez.
Por fim, para auxiliar a vítima, temos ainda o Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, que acelera a remoção desse tipo de conteúdo, ao prever punição a provedores (como Google e Facebook) que não removerem videos ou imagens íntimas, após notificados pela pessoa que foi exposta ou por seu advogado.
Se não o fizerem, serão considerados corresponsáveis pela violação da intimidade decorrente da divulgação.
Ouço muitas mulheres dizerem que a responsável por essa exposição indesejada, por essa violação da intimidade, é a própria vítima, que permitiu a captura das imagens. Elas dizem não entender porque alguém se deixaria filmar fazendo sexo.
Ora, é muito fácil julgar a vida sexual de quem está exposto.
É preciso entender que as vítimas se deixam filmar por acreditarem estar inseridas em um contexto de confiança e que aquele momento ficará somente entre os envolvidos.
Quando a confiança é quebrada, elas têm de enfrentar a pressão social. E não podem ser revitimizadas pela sociedade.
Se o casal tem o fetiche de se filmar, qual o problema? A filmagem é apenas uma das muitas preferências e fetiches sexuais. E o que precisamos fazer é justamente garantir o direito à privacidade, inclusive o de gostar de filmar.
É preciso ter em mente que o vilão da história é a pessoa que divulgou indevidamente as imagens.
Quem divulga tem o claro objetivo de humilhar, de denegrir a imagem do outro.
Por isso, mal visto pela sociedade deveria ficar o criminoso, jamais a vítima.
É necessária uma mudança de mentalidade, inclusive na hora de reagir ao problema. As vítimas não devem se abater, mas sim virar o jogo, porque o criminoso cresce na medida em que a vítima se oprime. Elas devem ter a consciência de que foram alvo de um crime e acusar publicamente o seu agressor.
Em Goiânia, houve um caso emblemático de vingança pornográfica, que foi o da Fran, uma jovem de 19 anos, que virou símbolo de humilhação em praça pública e virtual.
Em um primeiro momento, à medida que o seu video varreu a internet, ela sofreu uma onda de linchamento moral sem precedentes, a ponto de um gesto feito pela jovem ter se viralizado na rede como um meme pejorativo.
Em resposta a isso, uma campanha de apoio à Fran surgiu nas redes sociais, na qual o seu papel de vítima foi restabelecido. Solidariedade é ainda o que nos salva.
Espero sinceramente que essa moça tenha retomado a sua vida e o seu trabalho e que o responsável pelo vazamento das imagens seja exemplarmente punido, tanto na esfera criminal, como na cível.
Sim, porque, na ESFERA CÍVEL da vingança pornográfica, nada impede que a vítima ingresse com uma ação de indenização por dano moral e material contra o agressor.
De fato, como a imputação penal atual é branda demais, só resta à vítima buscar a responsabilização civil do agressor.
O problema é que, apesar do dano moral ser extenso e inegável a quem tem sua imagem e intimidade assim expostas na internet, principalmente às mulheres, ainda temos algumas decisões que invertem a culpa nesses casos e julgam a moral da mulher, ao invés de punir efetivamente o agressor.
Em um caso mineiro recente - que deixo à consideração e reflexão dos senhores, pois não me cabe rejulgar o caso -, uma moça processou o ex-namorado por ele ter divulgado fotos íntimas dela para amigos e familiares.
Em primeira instância, ele foi condenado a pagar uma indenização por dano moral de R$ 100 mil.
O réu recorreu para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e reduziu a indenização de R$ 100 mil para R$ 5 mil.
O relator do processo já havia proposto a redução do valor do dano moral para R$ 75 mil, mas reforçou que não se poderia considerar a vítima culpada pela situação.
Porém, o revisor discordou e reduziu a indenização para R$ 5 mil. Segundo ele, por ter ousado posar daquela forma, em um relacionamento curto (de 1 ano) e à distância, a moça provava que tinha um “conceito moral diferenciado, liberal”, que “não cuidava da própria moral”.
Esse foi o voto vencedor. Um julgamento ocorrido em 10 de junho do ano passado.
Não se iludam. Enquanto não houver igualdade na sexualidade não haverá igualdade no mercado de trabalho.
Nós, mulheres, queremos igualdade no trabalho, mas vivemos em um país onde uma dupla sertaneja grava uma música fazendo apologia à vingança pornográfica. E não duvidem de que, de onde esses sujeitos saíram, há muito mais gente que pensa como eles.
Nós, mulheres, queremos ganhar o mesmo que os homens, mas não podemos nem andar na rua sem ser incomodadas, dançar na balada com as nossas amigas sem ser agarradas, dizer não sem correr o risco de ser agredidas ou mortas.
Nós, mulheres, queremos ocupar posições de liderança, mas deixamos passar comentários machistas que julgam outras mulheres, tais como: “Ah, ela deve estar de TPM", ou “Fulana é mal comida, mal trepada”, ou ainda "ela deve ter dado para alguém para estar onde está".
Enquanto somente as mulheres tiverem que “se dar ao respeito” não teremos as mesmas oportunidades em setor nenhum.
Enquanto não soubermos que o mesmo machismo que mata é aquele nos faz ganhar menos não poderemos combatê-lo.
Somos essencialmente desunidas pois fomos criadas para encarar as outras mulheres como rivais da atenção masculina.
Mas uma coisa é certa: enquanto não nos unirmos como mulheres, como irmãs e como parceiras, continuaremos relegadas à condição de desigualdade que nos assola a cada uma dentro do seu universo particular.
Para buscar a igualdade de gênero, temos que parar com as lutas internas e incluir os homens, pois não podemos sonhar com mudanças no mundo se metade da humanidade estiver excluída delas.
(Monica Barros Reis, advogada e Presidente da Comissão de Violência Doméstica e Familiar do IBDFAM/MS)
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