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Uma visão contemporânea e afetiva, do obsoleto artigo 1.830, do Código Civil.
Não há nenhum fim. Não há nenhum começo. Há apenas a paixão da vida. – Frederico Fellini.
Resumo: O presente artigo demonstrará a existência do princípio da afetividade no direito sucessório, bem como a possibilidade de desconstituição de direito sucessório por ausência de afeto comprovado, a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010 e a conseqüente eliminação do lapso temporal de 02 (dois) anos de separação de fato como requisito ao divórcio, repercute na aplicação do artigo 1.830, do Código Civil.
Palavras Chave: Afeto – Afetividade – Direito Sucessório – Sucessões – Artigo 1.830 – Extinção – Emenda Constitucional 66/2010.
Abstract: The present article evidences the existence of the principle of affection in Inheritance Law, as well as the possibility of deconstitution of inheritance rights by the absence of proven affection, after the enactment of Constitutional Amendment 66/2010 and the consequent elimination of the period of two years as an exigence to reach "in fact separation" as a requirement to divorce, reflecting the application of Article 1,830 of the Brazilian Civil Code.
Keywords: affection - Inheritance Law - Article 1830 - Extinction - Constitutional Amendment 66/2010.
I – Introdução.
Não seria clichê e nem tampouco nostálgico, afirmar que todo começo tem seu fim, várias mentes brilhantes já conseguiram perceber e reproduzir o óbvio ululante. No direito não poderia ser diferente com os relacionamentos, ainda que se mantenha acesa a brasa da paixão intensa, a única certeza que temos da vida acaba sendo “a morte”, interrompe nossos planos e acaba colocando ponto final nas mais ardentes e belas histórias de amor, fenômeno – a extinção – que o seio jurídico apelidou de dissolução da vida conjugal.
Há aqueles mais apressados, que insistem em desistir antes mesmo de sequer começar uma história bem vivida, sepultando de pronto a sociedade conjugal com a faca afiada do divórcio, às vezes o rancor explode os limites da razoabilidade e os cônjuges decidem se “separar de fato” para evitar a menor conversa entre ambos, deixando o direito se encarregar de resolver o restante dos problemas a serem enfrentados.
O ponto central deste artigo gira em torno desta última forma de rompimento, a separação de fato e os efeitos que ela carrega para o direito sucessório, ou melhor, o efeito que a ausência de afeto transmite ao direito sucessório.
II – Princípio da Afetividade no Direito das Sucessões.
Atualmente, muito se discute sobre os efeitos que a existência de afeto transmite para o Direito das Sucessões, tendo em vista o modelo e jeitinho brasileiro de adotar uma criança. As maiores Cortes de Julgamento de todo o país tiveram oportunidade de se manifestar positivamente sobre a filiação baseada no princípio da afetividade, merecendo destaque o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
FILIAÇÃO. ANULAÇÃO OU REFORMA DE REGISTRO. FILHOS HAVIDOS ANTES DO CASAMENTO, REGISTRADOS PELO PAI COMO SE FOSSE DE SUA MULHER. SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA HÁ MAIS DE QUARENTA ANOS, COM O ASSENTIMENTO TÁCITO DO CÔNJUGE FALECIDO, QUE SEMPRE OS TRATOU COMO FILHOS, E DOS IRMÃOS. FUNDAMENTO DE FATO CONSTANTE DO ACÓRDÃO, SUFICIENTE, POR SI SÓ, A JUSTIFICAR A MANUTENÇÃO DO JULGADO.
Acórdão que, a par de reputar existente no caso uma “adoção simulada”, reporta-se à situação de fato ocorrente na família e na sociedade, consolidada há mais de quarenta anos. Status de filhos.
Fundamento de fato, por si só suficiente, a justificar a manutenção do julgado.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 119.346/GO, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 01/04/2003, DJ 23/06/2003, p. 371)
Por mais que tenha enfrentado certa resistência, não é incomum a jurisprudência hodierna imprimir o direito de filiação fundada no afeto, lecionando os doutrinadores sobre o peso do amor nas relações familiares, ultrapassando com ligeira pressa os fundamentos biológicos e registrais.
A palavra filho não admite qualquer adjetivação. A identidade dos vínculos de filiação divorciou-se das verdades biológica, registral e jurídica, ou seja, aquela criança – normalmente carente – que passa a conviver no seio de uma família, ainda que sabendo da inexistência de vínculo biológico, merece desfrutar de todos os direitos atinentes à filiação. A pejorativa complementação “de criação” está mais que na hora de ser abolida. Ainda resiste a jurisprudência em admitir a quem foi criado como filho – daí filho “de criação” – que proponha ação declaratória de paternidade afetiva, o que nada mais é do que uma forma de buscar adoção. Ao menos já foi reconhecido o direito do pai “de criação” de receber a indenização pela morte de quem criava como filho. (Dias, Maria Berenice, 2010, p. 493)
No mesmo sentido ensina o civilista, Gagliano (2013, p.639): Independentemente do vínculo sanguíneo, o vínculo do coração é reconhecido pelo Estado com a consagração jurídica da “paternidade socioafetiva” E nessa linha, é possível, do ponto de vista fático e – por que não dizer? – jurídico, o reconhecimento de uma pluralidade de laços afetivos, com a eventual admissão de uma multiparentalidade. Acompanhando a mesma esteira de raciocínio leciona, Fachin (2008, p.24): Prepondera, pois o laço afetivo. A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade.
Como visto, a possibilidade de filiação sustentada no afeto conseqüentemente refletirá na seara dos direitos sucessórios, na medida em que a Constituição Federal no seu artigo 227, §6°, veda o tratamento desigual entre os filhos, não se justificando ainda qualquer tipo de descriminação entre filhos biológicos ou filhos afetivos, em respeito também ao princípio da dignidade da pessoa humana exteriorizado no artigo 1°, III, da Carta Republicana.
Desta forma, apresenta-se como um facho de luz à constituição dos direitos sucessórios, sustentando-se na base invisível dos “fatos jurídicos afetivos”, padecendo e necessitando de comprovação para a subsunção ao direito das sucessões. A existência do princípio da afetividade norteia a aplicação de boa parte do direito sucessório, ou de quase sua totalidade, haja vista que a inexistência comprovada de afeto pode culminar no rompimento dos direitos sucessórios, como acontece no divórcio e na separação de fato.
III- Aplicação Contemporânea do artigo 1.830, do Código Civil.
Sabemos que o artigo 1.830, do Código Civil, foi redigido sob a égide da Constituição Federal promulgada em 1988, em harmonia com a redação vigente nesta época, condicionou o direito à sucessão do cônjuge com a existência de afeto entre os consortes, existindo três hipóteses para o rompimento deste direito: “a separação judicial, o divórcio e a separação de fato há mais de dois anos”, nestas três possibilidades fica claro que a inexistência do afeto e dissolução da sociedade conjugal fulminam a possibilidade de constituição de direito sucessório.
Ocorre que a Constituição Federal estipulava um prazo de mais de 02 (dois) anos de separação de fato, para que pudesse a sociedade conjugal ser dissolvida pelo divórcio, instituto que encerra a vida conjugal nos termos delineados pelo artigo 1.571, do Código Civil. Entretanto a exigência constitucional deste prazo de 02 (dois) anos foi retirada na promulgação da Emenda Constitucional n° 66/2010, dando voga ao que ficou conhecido como “divórcio a jato”, na exata medida em que resolveu extinguir e revogar os prazos para quem deseja encerrar o matrimônio celebrado.
E o princípio da afetividade nos mostra tranquilamente que o legislador se pautou nesta norma para editar o artigo 1.830, do Código Civil, retirando a possibilidade de sucessão do cônjuge que na seara dos “fatos jurídicos”, já não possua afeto com o autor da herança. Na verdade, anteriormente o legislador acreditava que o prazo razoável para extinção do afeto e possível reconciliação antes do divórcio era de 02 (anos), já no mundo hodierno, temos visto reconhecimentos de uniões estáveis para um curto lapso de tempo -; há registros de uniões que duraram apenas dias, assim como muitos casamentos inclusive.
Sem afeto não se pode dizer que há família. Ou, onde falta o afeto, a família é uma desordem, ou mesmo uma desestrutura. O afeto ganhou status de valor jurídico e, conseqüentemente foi elevado à categoria de princípio como resultado de uma construção histórica em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis. Afinal, o desejo e o amor são o esteio do laço conjugal e parental. [...] Quando não há mais comunhão de vida e de afeto, não se justifica a mantença da conjugalidade. (Pereira, Rodrigo da Cunha, 2015, p.553)
Com efeito, não podemos permitir que seja originado direito sucessório para o antigo cônjuge, em detrimento e concorrência com herdeiros exclusivos do autor da herança (descentes ou ascendentes), o direito sucessório deve se curvar ao princípio da afetividade do mesmo modo e forma que julgamos sua harmonia no direito das famílias.
São inúmeras as provas e normas demonstrando que o direito das sucessões se pautou pelo princípio da afetividade para desenhar o deslinde sucessório, a própria ordem de vocação hereditária representa a vontade afetuosa com a máxima de que “os mais próximos excluem os mais remotos”, sendo insculpida no artigo 1.833, do Código Civil, mas também existem normas que baseiam na inexistência do afeto, para explicitamente excluir o herdeiro da sucessão, quando o herdeiro houver acusado caluniosamente em juízo, quando incorrerem em crimes contra a honra do autor da herança e também na mera participação ou tentativa de crime de homicídio contra a vida do falecido.
IV – Conclusão.
Neste liame, fica evidenciado o respeito ao princípio da afetividade, pois o legislador positivou a exclusão expressa ao direito de herança no artigo 1.814, I e II, do Código Civil, aos herdeiros que são capazes de praticar uma conduta que demonstrem a ausência suprema de afeto com o autor da herança.
Desta forma, a retirada do prazo de 02 (dois) anos de separação de fato como requisito para a realização do divórcio e conseqüente extinção formal da sociedade conjugal, implica na conclusão direta da possibilidade e aplicação do princípio da afetividade em conjunto com o artigo 1.830, com a finalidade de retirar direito sucessório do cônjuge que já esteja separado de fato em tempo inferior a 02 (dois) anos, bastando à comprovação fática da inexistência do afeto entre o antigo casal, talvez até pelo início de um novo relacionamento ou todos os outros meios permitidos em direito para comprovar o intuito definitivo da separação, haja vista a revogação do prazo anterior pela promulgação da Emenda Constitucional n° 66/2010.
Afinal, após a leitura deste artigo, se os “fatos jurídicos afetivos” não influenciassem diretamente o direito moderno das sucessões, você diante da anunciada ressurreição do filho de Deus, não chamaria o Cristo para a sucessão de seu pai afetivo José?
Se sim, ótimo! Se não, é uma pena, sua causa será tão eterna quanto o amor celestial, pois o D.N.A. do divino Espírito Santo, ainda não foi codificado pelas nossas Ciências Biológicas.
João Henrique Miranda Soares Catan
Associado IBDFAM n° 5858
Referências:
DIAS, Maria Berenice, Manual de direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
FACHIN, Luiz Edson, Comentários ao Novo Código Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2008.
GAGLIANO, Pablo Stolze, Novo Curso de Direito Civil, Volume 6, São Paulo: Saraiva, 2013.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Dicionário de Direito de Família e Sucessões, São Paulo: Saraiva, 2015.
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